Matteus Cardoso, ator de “Mar do Sertão”, rejeita a neutralização de sotaques para nordestinos no audiovisual


Matteus Cardoso, o Joel Leiteiro de “Mar do Sertão” fala sobre como foi estrear na Globo vivendo um personagem que dialoga com a sua própria condição de existir. Ambos são nordestinos e, inclusive, falam de modo semelhante. Artista opina sobre o que acha da pasteurização dos sotaques do Nordeste, bem como a suavização do acento regional para produções nacionais. Cardoso aborda a importância do posicionamento definitivo de sua homossexualidade em casa, diante de um pai religioso e homofóbico que o expulsou de casa e como lida com a tolerância às diferenças

*por Vítor Antunes

Mar do Sertão” chega ao fim dia 17. Dentre as personagens que se destacaram pelo bom humor foi Joel Leiteiro, vivido por Matteus Cardoso. O ator revela a importância de haver uma novela que dá protagonismo aos nordestinos e respeita a sua prosódia. Nesta entrevista ezclusiva, ele também se diz contrário à neutralização dos sotaques, algo que se interpõe aos atores nortistas e nordestinos nos trabalhos em TV e cinema. O ator vê nisso um apagamento identitário, “moldagem do nosso sotaque aos sons sudestinos. De modo que os atores nascidos nestas regiões acabam adaptando-se ao acento carioca e paulista, usam-no diariamente e fazem com que os produtores de elenco os desidentifique como nordestinos”. Critica também os brasileiros não-nordestinos que classificam os nativos daquela região como pessoas de segunda categoria.

Além do trabalho na novela, o ator durante o nosso bate-papo revela seus novos projetos. Um deles, propõe a discutir a importância do trabalho do artista no Brasil, tido como  desimportante, especialmente por alguns segmentos da sociedade. Trata-se de “O Manual de Sobrevivência do Artista Brasileiro“, uma comédia musical realizada pelo próprio Matteus e que conta, também, com o ator potiguar Robson Medeiros.

Sob outro tema, Matteus relata os problemas que enfrentou diante do fato de ser um homem gay habitando uma casa liderada por seu pai, um pastor evangélico, que não só apenas não tolerava a sua sexualidade, como não admitia sua profissão. Ainda que tenha hoje uma melhor relação com o pai, Cardoso relembra que “ao optar publicamente por viver como um homem gay recebeu, do meu pai, “um prazo para deixar a casa. Ou seja, houve uma expulsão”. Mesmo com estes traumas, o ator diz dialogar bem com sua figura paterna.

Matteus Cardoso: ator de “Mar do Sertão” exalta sua ancestralidade nordestina na trama das 18h (Foto: Márcios Farias)

QUANDO O SERTÃO VIROU MAR 

Com o término das gravações de “Mar do Sertão“, Matteus Cardoso voltou para o Rio Grande do Norte, sua terra Natal. Contou-nos ele que os artistas nordestinos que compunham o elenco ficaram todos no mesmo apart-hotel, na Barra da Tijuca, o que ele intitulou como sendo um “núcleo de resistência nordestina no Rio de Janeiro”. Entre as farinhas d’água, bolos de massa puba, e tapiocas, Cardoso destaca que ainda que tenha sentido um acolhimento comunitário, tanto pela Globo, como pelos colegas com os quais trabalhara, há, junto ao Brasil, um olhar de soslaio para com o Nordeste: “Existe uma noção na cabeça do brasileiro não-nordestino de que somos cidadãos de segunda categoria. Então, às vezes notamos que um motorista de aplicativo nos trata mal ou uma atendente de loja que, aos nos ouvir, recusa-se a nos atender”. E ele prossegue dizendo que “o preconceito e/ou xenofobia por ser nordestino também é estrutural. Tanto que há muito tempo atrás disseram-me muito bonito para ter o sotaque que tenho”.

São micro-violências que nós vivemos quando estamos fora do Nordeste. São coisas que não nos limitam, mas que nos fazem seguir em frente. Pude viver nesse último tempo uma vida muito privilegiada de artista nordestino no Rio de Janeiro, morando num espaço e convivendo com colegas de trabalho que também experienciavam dessa vida especial, mas fora dali, no dia a dia, percebemos constantemente (a xenofobia) – Matteus Cardoso

Uma das coisas às quais muitos atores daquela região se queixam deve-se à profunda segmentação dos personagens aos quais são escalados. Trata-se dos nordestinos-vivendo-nordestinos. O que, na ótica do ator, deve-se a uma característica própria do mercado do audiovisual. “Quando os produtores de elenco vêm escalar artistas aqui no Nordeste, eles já vêm procurando por artistas desse pedaço do Brasil. Não vêm procurar sudestinos aqui, obviamente. É uma visão da indústria, consolidada. Marcélia Cartaxo e outros de nossos grandes atores estiveram nesta caixinha dos “atores-regionais” não por causa deles ou por não conseguirem fazer outros papéis, mas por esta percepção da indústria do audiovisual, ver neste um espaço para ocuparmos”.

Mar do Sertão” se destaca por trazer um grande elenco de nordestinos. Mesmo aqueles que não são automaticamente associados ao estado em que nasceram, como Déo Garcez e Renato Góes – o primeiro é maranhense e o segundo, pernambucano.  Além disto, boa parte dos artistas nativos daquela região do país possuía uma prosódia próxima àquela sua. Cardoso salienta que seu personagem “não fala necessariamente como a mim. O que foi legal em fazê-lo é que pude construir o meu sotaque para Joel, inventá-lo mesmo. Eu nasci na capital, mas Joel, a contrario de mim, é um vaqueiro do interior. Fui atrás de ouvi-los falar. Ainda que isto não faça tanta diferença aos ouvidos sudestinos, para a gente faz. Além disto, a produção orientou-nos a usar como referência o acento de João Pessoa (PB), mas com muita liberdade para criar em cima disso. No meu caso foi um processo de criação de personagem importante, como seria se eu tivesse de fazer um carioca ou paulista”.

Ele prossegue dizendo “não ter medo da estereotipação, porque não sou eu quem coloca essa atribuição em mim, mas a indústria que associa o fato de eu ter nascido no Nordeste como o suficiente para me inserir neste clichê. Sou totalmente contra o que chamam de neutralização do sotaque, que na verdade não é uma suavização, mas uma moldagem dele aos sons sudestinos”, dispara.

Desde que foi lançado nas redes sociais, o nome de seu personagem, e isto somado à beleza do ator, acabou gerando uma grande mobilização na Internet. Posts bem-humorados e maliciosos do ator fazendo trocadilhos com o nome e a profissão de Joel garantiram o sucesso do artista junto ao público. “Era preciso haver alguém ali que estivesse aberto ao cômico, ao exagero, à chanchada. Joel Leiteiro provoca comicidade no banho que toma, na toalha que fica na mão da namorada, no desconhecimento da própria beleza. E como eu sou um twitteiro inveterado e esta é a minha rede social favorita, (a brincadeira) deu certo. Gosto dessa avacalhação, desse deboche, da energia informal existente no Twitter e o público gostou também”.

Matteus Cardoso é o Joel Leiteiro em “Mar do Sertão” (Foto: Estevam Avellar/TV Globo)

UM ARTISTA QUE TEM ALGO A DIZER

Matteus, sem dúvida, é um dos artistas que não foge de ser opinativo. E, em consonância com a sua opinião, o ator encaixa-se “em duas das três cotas da opressão brasileira: por ser gay e nordestino. Quando eu circulava pelo Rio, sentia-me muito mais julgado em andar com meu namorado pela rua que estando em meu estado, o Rio Grande do Norte. Quando eu ia à praia na Zona Oeste carioca percebia, também, que os casais demonstravam muito menos afeto em público, além de serem muito mais heteronormativizados”.

O Rio é uma cidade militarizada e evangeliquizada – Matteus Cardoso

Diante da complexidade em ser um corpo gay e artista dentro de um lar composto por um pastor evangélico, o ator fala sobre os desafios em ter de lidar com esta estrutura familiar. “Hoje tenho uma relação melhor com meu pai. Sou seu filho único, e quando optei por, publicamente, viver a minha homossexualidade, fui expulso de casa. Ele me deu um prazo para deixar aquela moradia. Hoje, a gente está bem, consegui me estabelecer como um artista que viaja o país, consegui pagar o meu aluguel e isso amoleceu o seu coração. Ele continua sendo um servo fiel da sua religião, bem como continuamos tendo nossas divergências, ainda que eu o respeite e o admire enquanto líder religioso. Hoje não tenho ligação com a fé evangélica, mas tenho uma relação boa com meus pais, graças a Dionísio [deus da mitologia grega]”.

Matteus Cardoso estreou na profissão fazendo peças religiosas (Foto: Marcios Farias)

O artista também se diz grato ao pai por haver estreado no teatro através dele e das peças que eram encenadas na igreja. “Brinco dizendo que comecei a trabalhar encenando, no palco, as novelas da Record. As igrejas fazem muito desse papel, de revelar artistas, já que o Governo não se vê responsável por isso”.

Para Matteus, posicionar-se politicamente é algo que é inerente à profissão. “A arte é sempre política. O artista passa sua ideologia o tempo todo. O que eu vejo é que, ainda  que tenhamos sido perseguidos nos últimos seis anos – entre o Governo Temer e a gestão Bolsonaro – acabou sendo costume crer que o artista é um ente que vaga pela natureza e pela sociedade, se alimentando não sei do que e produzindo não sei como”. Por esta razão, Cardoso diz que seu “projeto de vida atual é colocar nos palcos uma peça que escrevi na pandemia: ‘Manual de Sobrevivência do Artista brasileiro'”,  que aborda a condição a qual vivem os artistas nacionais.

Matteus Cardoso tirou proveito do nome de seu personagem para divertir-se na Internet (Foto: Márcios Farias)

O REINO UNIDO E INDEPENDENTE DO NORDESTE 

Em 1996, a escola de samba carioca Império da Tijuca lançou mão do enredo “O Reino Unido e Independente do Nordeste”, cujo carnavalesco era, curiosamente, o ator Miguel Falabella. Perguntamos a Matteus se, havendo esse reino hipotético, quem seria o Rei, a Rainha e o Ministro da Cultura. Ele foi enfático: “O Rei do Brasil já é nordestino e é o Lula, a Rainha, a meu ver seria Janja e a Ministra da Cultura, Margareth Menezes. Para mim, este reino mágico está mais próximo do que parece”, falou.

E um de seus espetáculos de maior sucesso, “A Invenção do Brasil“, o nome não seria esse, mas “A Invenção do Nordeste“. Para o ator é insubstituível e indissociável a noção de que somos um país de muitas identidades e de povos. “É legal viver numa época em que podemos olhar para a diversidade e fazê-la existir não para que isso cause mais divergências, mas que se chegue à equidade”. Talvez, nesse Reino inventado/encantado, Matteus pudesse ser o porta-voz da Pátria nordestina. Com um Hino Nacional escrito por Caetano Veloso e arranjado Gilberto Gil. E no qual 13 de Dezembro, dia do nascimento de Luiz Gonzaga, fosse feriado nacional.