Matheus Nachtergaele vive Molière no teatro, faz paralelo com Brasil atual, e fala do sucesso de ‘Cine Holliúdy’


“Meus colegas são pessoas de teatro que estão esperando para poder viver disso de novo. Eu mesmo, que não gosto de dividir o teatro com outros trabalhos, acabei tendo de fazê-lo junto com o “Cine Holliúdy” – a fim de que todos pudessem estar em cena”, revela o ator, que observa: “Para o povo brasileiro, que não tem grana suficiente para ter TV a cabo, streaming e afins, a gente acha que é valiosa a nossa presença na TV”. E propõe ainda uma “revolução pela alegria” no país

*Por Vítor Antunes

No teatro, Matheus Nachtergaele vive Molière (1622-1673) e, segundo ele, faz um paralelo com o Brasil atual, que ainda respira os reflexos da ascensão da ultradireita. Em “Cine Holliúdy”, na Globo, é o político populista Olegário. Dois momentos na versátil carreira do ator, que transita em vários gêneros da interpretação. Mas, ele nos revela, que estar nos dois trabalhos simultaneamente é por amor a todo um elenco de teatro. “Meus colegas são pessoas de teatro que estão esperando para poder viver disso de novo. Eu mesmo, que não gosto de dividir o teatro com outros trabalhos, acabei tendo de fazê-lo junto com o “Cine Holliúdy” – a fim de que todos pudessem estar em cena”. Além destas empreitadas, o trabalho do artista pode ser conferido em “Cabras da Peste”, que estreou na Netflix durante a crise sanitária provocada pelo Covid, assim como “Carro Rei” de Sérgio Oliveira e Renata Pinheiro, que está nos festivais e, em breve, nos cinemas. E mais: em “Clube dos anjos”, de Claudio Defanti, que teve première em Gramado e estará nos cinemas.

A montagem de Molière, uma comédia musical, da autora mexicana Sabina Berman é, nas palavras do ator, “uma peça ágil, embora longa. Um épico histórico. Um grande tour-de-force para mim”, descreve. Inicialmente um curta-metragem transformado em longa, mas cujo sucesso fez transformá-lo em série, “Cine Holliúdy” estreou nas telinha da ‘aldeia global’ em 2019, como uma série de 10 episódios. Matheus esteve em todas as temporadas e, agora grava a terceira, simultaneamente ao teatro.

Molière era um comediógrafo e ator do século XVII, um dos maiores da historiografia teatral. Com a ascensão de Racine (1639-1699), foi menosprezado e quase esquecido. Ao morrer, não pode ser enterrado em cemitérios comuns por que ser ator era algo indigno. Fora sepultado um cemitério para não batizados e só no século XIX seus restos mortais foram transladados para o famoso Cemitério Père-Lachaise, em Paris. Na peça que leva o nome do autor teatral, Matheus Nachtergaele o vive e tanto ele como o elenco consideram importantíssima essa volta ao teatro. “Nós estreamos entre o golpe que destituiu Dilma Rousseff e o pleito que elegeu Bolsonaro. As últimas montagens, ainda em 2018 traziam, inclusive, como pano de fundo sonoro, um comício bolsonarista do interior de São Paulo, naquela que foi a nossa última apresentação. Faz quatro anos que não a montávamos e, coincidentemente, ela encontra sua remontagem às voltas das eleições de 2022”.

Matheus Nachtergaele é Olegário em Cine Holliúdy (Foto: Estevam Avellar/TV Globo)

Matheus Nachtergaele em cena de “Molière” (Foto: Victor Iemini)

Segundo conta-nos Matheus, a peça dialoga com o Brasil contemporâneo, que aglutina palavras para traduzir novas essências e elementos novos: “A peça conta de maneira brincante a relação das artes com o poder, com o clero, que está sempre junto desses comandos poderosos. Hoje em dia, talvez a Igreja Católica não esteja ligada tão fortemente aos poderes, mas o neopentecostalismo-miliciano que vivemos hoje, talvez seja a representação fiel do que aconteceu com Molière. Sinto que o fato de a peça haver sido escrita por uma mulher, e uma mulher latina, é muito importante para dar à montagem tons contemporâneos, no que tange aos direitos dos homens e das mulheres e das novas orientações sexuais. A peça já se anunciava como antifascista e, agora, creio que ela vá ganhar contornos mais definidos, diante de um possível reflorescimento de Brasil. A peça começa ágil, brincante, sexual, safada e depois termina profunda, filosófica e trata sobre o que realmente importa nesta vida. É uma montagem muito bonita”, elogia.

Matheus Nachtergaele e Débora Veneziani (Foto: Victor Iemini)

Em se tratando da peça, são 38 pessoas em cena, entre músicos, atores e técnicos. Algo equivalente a um show. De modo que perguntamos a Matheus sobre a importância de leis de incentivo que possam fomentar produções como esta, e, em específico, diante num movimento pandêmico, no qual atores ficaram por quase dois anos sem trabalhar. “Há um grande engano e uma tendência maldosa a se distorcer o que significa o apoio da Lei Rouanet. O dinheiro do governo não cai direto nas nossas contas. Nós recebemos um certificado que nos credencia fazer as captações. Depois teremos de prestar contas ao governo para cada centavo gasto. É claro, que quem tem mais nome capta mais facilmente e quem tem menos nome capta com mais dificuldade. São as agruras do capitalismo e da competição. No nosso caso, muita gente viveu da peça e voltará a viver dela. A prestação de contas é detalhada, a gente divide o cachê de maneira muito igualitária e ninguém fica rico, muito pelo contrário. Trabalha-se muito por amor”.

Matheus conta que a peça foi idealizada por Renato Borghi, que é um ícone tropicalista. Este, bem como Zé Celso Martinez Corrêa, são o veio teatral do tropicalismo, tido como a última revolução estética das artes brasileiras. No campo musical, o tropicalismo contou com Gal, Gil, Bethânia e Caetano Veloso, estando este último presente na trilha sonora estrelada por Nachtergaele. Segundo explicou-nos o ator, cada país que monta a peça adapta à sua maneira. Diante do fato de Borghi ser um dos pilares do movimento tropicalista, Caetano foi o escolhido. A peça conta também com o jovem Diego Fortes, “um curitibano nerd modernaço, que estava morando em Berlim, que veio para cá para fazer teatro conosco”.  Lançando mão do conceito antropofágico que norteou o tropicalismo, Matheus cita Oswald de Andrade (1890-1954) dizendo que “a alegria é a prova dos nove”.

Nachtergaele cita o fato de que a peça vinha sendo montada de forma exitosa no pré-pandemia e teve de ser paralisada em razão desta: “Nós vínhamos fazendo o espetáculo antes da pandemia e com muito sucesso, com casas lotadíssimas tanto em São Paulo como no Rio. Até que chegamos àquela temporada de catástrofes, abalos políticos e a peste. Tivemos que parar já que o Renato Borghi, o idealizador da peça, é um senhor de 80 anos. Não havia a remota possibilidade de a gente reestrear sem que estivéssemos minimamente vacinados. exulta.

Matheus Nachtergaele, Renato Borghi e Rafael Camargo (Foto: Victor Iemini)

O ator celebra também o fato de ter tido bons parceiros de cena. Desta vez trata-se de Borghi, que em suas palavras é “Um homem de TEATRO, com todas as letras maiúsculas, alguém que parece estar sendo extinto, que é aquele que viveu para e do teatro a vida toda. Além dele, contracenei com Fernanda Montenegro e Antonio Abujamra (1932-2015), em “A Gaivota”, do Tchekov; com Nelson Dantas (1927-2006); com Paulo Autran (1922-2007); com Paulo José (1937-2021) e Ankito (1924-2009), em “A Controvérsia” de Jean Claude Carrière; com Ruy Polanah (1922-2008) … Minha última alegria desse calibre foi estar com o Renato Borghi, com quem, ao mesmo tempo tenho uma aula e uma troca, em razão de ele ser um dos mais vocacionados atores do Brasil.

Embora eu tenha feito pouco teatro, eu o faço “muito”, em intensidade, em peças grandes. Quando vou pra cena é algo como ir para o sagrado, no sentido que, para mim este é o meu oficio – Matheus Nachtergaele

CINE HOLLIÚDY E OS OUTROS “CINES”

A produção de Cine Holliúdy tentou gravar também durante a pandemia, mas a cautela os fez interromper as gravações. “O Cine Holliúdy foi reexibido logo depois da pandemia, no horário nobre depois da novela das nove. Tentamos retomar as gravações ainda que com protocolos, por duas semanas, mas a curva de contaminação estava alta e ainda não havia vacina. De modo que tivemos de interrompê-la, e retomamos em março, com gravações em tempo recorde. Um dia antes de estrear a gente fez a última cena da temporada 2 e, no dia seguinte, estávamos na três. Iremos neste ritmo até dezembro”. Como dissemos anteriormente, o ator ressalta o fato de não gostar de dividir trabalhos simultâneos, “mas nessa espera toda eu preferi fazê-la bonita. Vou permanecer gravando quase que diariamente e vou aos palcos nos sábados e domingos fazer o Molière. Primeiro por que já fizemos a peça por muitos meses antes da pandemia, então é como andar numa bicicleta refinada. Já quanto ao “Cine”, ele vem de uma sequência muito boa”.

Cine Holliúdy” mora no Globoplay, uma da plataformas de streaming, mas se popularizou ainda mais ao ser exibido na TV aberta. Perguntamos ao ator como ele enxerga estas novas plataformas e ele disse ser “um ator para todos os palcos. Então, estou aprendendo, curtindo e saboreando estes novos formatos”.

O Brasil ainda é um país para a TV aberta por muitos motivos e alguns deles não são os melhores. Para o povo brasileiro, que não tem grana suficiente para ter TV a cabo, streaming e afins, a gente acha que é valiosa a nossa presença na TV” – Matheus Nachtergaele

Matheus Nachtergaele é Olegário em “Cine Holiudy” (Foto: Cadu Pilotto/Tv Globo) )

NOS SUBÚRBIOS DO CORAÇÃO: “NÃO SEI. SÓ SEI QUE FOI ASSIM”

Gravado em 1999, “O Auto da Compadecida” é um dos maiores sucessos do Cinema Nacional. A retomada da produção cinematográfica começou depois de “Carlota Joaquina, a Princesa do Brazil”, de Carla Camuratti, e encontra seu ápice n’O Auto, que marca definitivamente a reconciliação do público com o cinema brasileiro, nas palavras de Matheus:

Eu tenho a sensação de que naquele momento, quando da estreia do Auto, fomos responsáveis por fazer o Brasil se apaziguar com seu cinema. Ele é um passaporte do público ao coração do cinema nacional” – Matheus Nachtergaele

Matheus nos conta que “O Auto da Compadecida”, de Ariano Suassuna (1927-2014) é “a obra teatral mais montada no Brasil desde a sua estreia. Ela nunca deixou de ser montada, tanto em sua forma profissional como na amadora. E ser o representante audiovisual do “Auto” é uma grande honra. A minha vida, a do Selton Mello  e a do Guel Arraes mudou muito depois desse filme. Continuamos fazendo o nosso trabalho, mas somos jogados direto no coração do Brasil.

Brinco com o Selton dizendo que a gente jamais passará fome. Se um dia formos encontrados na sarjeta, maltrapilhos, tristes, abandonados, haverá uma pessoa que nos levará para casa, nos dará um lugar para tomarmos banho e receberemos comida. Somos representantes do sobrevivente brasileiro, da alegria, da persistência e da fé do povo” – Matheus Nachtergaele.

O ator prossegue dizendo que o filme é um divisor de águas em sua carreira, assim como crê ser nas de Selton Mello e Guel Arraes. Inclusive, o filme talvez seja um dos colaboradores a solidificar o rosto de Nachtergaele como nordestino, embora ele não seja. “Nasci em São Paulo, em plena Avenida Paulista, filho de um belga com uma brasileira”. Este é mais um dos inúmeros filmes que faz no Nordeste brasileiro, como os outros inúmeros que fizera com Claudio Assis, Petrus Cariry, Renata Pinheiro e Lírio Ferreira, além do próprio Guel, que é pernambucano.

E o que faz este paulistano ser (tão) sertanejo? “Fui sendo identificado pelo Nordeste. Talvez em razão de o meu tipo físico permitir essa identificação. E a minha arte também. Entendi que não era só de um sotaque que eu estava falando, mas dos subúrbios da gente, dos subúrbios do ser humano não só do ser humano brasileiro, mas do subúrbio como um todo. Fui para os subúrbios do Nordeste, região que é quase que um subúrbio do Brasil. Filmei nos subúrbios  das cidades brancas também, assim como nas favelas cariocas – que são uma espécie de sertão do Rio, bem como fui aos sertões paulistanos, filmar Mazzaropi (1912-1981).  Vou conhecendo meu país fisicamente nas viagens e as pessoas por dentro. Ao mesmo tempo em que eu vou percorrendo essas viagens físicas e humanas, reconheço os subúrbios que há em nós”, analisa.

Matheus Nachtergaele foi João Grilo em “O Auto da Compadecida” (Foto: Divulgação TV Globo)

TV: NOVELAS E SÉRIE 

Perguntamos ao ator, também, sobre a sua experiência em novelas, que é algo muito pontual – três, uma em cada horário historicamente destinado a este fim: “Cordel Encantado”, às 18; “Da Cor do Pecado”, às 19; “América”, às 21h. Sobre os folhetins, ele relata que os fez pouco por uma escolha artística, esta de não fazer muitos trabalhos simultaneamente, e não por falta de convites. “Se eu fizesse só novelas, ou principalmente novelas, eu as faria o ano todo. Convites não me faltaram. E eu tive muita delicadeza em recusar, em razão de eu ter feito muito cinema, e quando eu faço teatro eu vou-me embora nas turnês. (…). Eu preciso desse tempo para participar da feitura do cinema, que me é muito cara, mas eu nunca tirei o pé da TV. Fiz muitas séries, muitas minisséries, e, quase todo ano, eu integrava o elenco de uma. Nunca parei de fazer TV, mesmo num tempo em que eu estava muito ocupado. Quando eu dirigi “A Festa da Menina Morta”, por exemplo, eu fiz especiais de fim de ano na Globo”.

Eu amo a TV, pois vejo nela uma espécie de lona contemporânea, na qual o povo tem acesso ao conteúdo cultural. Seja qual for o gênero, eu me entrego a ele de coração (…), mas eu não consigo colar tanta novela. Fiz todas com muito prazer e experimentei o sabor de um grande sucesso no horário das sete, das oito e das seis e cada uma tinha um perfil diferente – Matheus Nachtergaele

Em “América”, Matheus foi Carreirinha (Foto: Marcio de Souza/Divulgação TV Globo)

A REVOLUÇÃO PELA ALEGRIA

Um dos trabalhos realizados por Matheus que usamos para encaminhar o fim da entrevista foi aquele no qual viveu o carnavalesco Joãosinho Trinta (1933-2011). Ele diz: “Eu vivi muito pouco o João diante de sua grandeza. Fizemos um filme para celebrá-lo. Eu estudei os desfiles e a obra do João e estivemos juntos uma vez só num papo longo e gostoso. Ele já estava com dificuldades, mas se dizia muito feliz por ser eu a representá-lo. E me disse que a maior revolução possível é aquela que há na alegria. É pela alegria. Eu colhi isso de João e passei para frente. Por causa dele, eu me entreguei mais, sem ressalvas”. Matheus é isso e sua proposta de “revolução pela alegria”. Se alguém perguntá-lo o que o fez fazer um país sorrir, talvez ele diga a máxima de um de seus maiores personagens: “Não sei. Só sei que foi assim”.