Matador de aluguel machista em “Terra e Paixão”, Paulo Roque reflete sobre saúde mental e representações nordestinas


A morte do capanga Sidney trouxe luz a inúmeras discussões nesta entrevista exclusiva relacionadas à saúde mental. “A gente usou o corpo exausto, próximo ao pânico e ao medo. No estúdio, a construção de suar e de se provocar foi sensacional. A cena dá um simbolismo sobre a discussão da saúde mental, sobre o que nos afeta no dia a dia, sobre o que o sistema faz com a gente”. Além disso, o ator lança luz sobre narrativas nordestinas estereotipadas no audiovisual. Paulo, que é cearense, recordou da imposição da “neutralização do sotaque” dele de origem quando chegou ao Rio de Janeiro há anos atrás. Mas comemorou “Mil Dias – A Saga da Construção de Brasília”, série do History Channel finalista do Grande Prêmio Brasileiro de Cinema em 2019, e do personagem nordestino, assim como ele, na vida real

O ator Paulo Roque reflete sobre o tópico da saúde mental de personagens machistas e nordestinos, como Sidney em "Terra e Paixão"

*por Luísa Giraldo

À luz do matador de aluguel Sidney, a atuação de Paulo Roque fez o público arquejar com as cenas de tensão da novela “Terra e Paixão”, da TV Globo. Ao longo da trama, o artista propôs uma faceta complexa de um dos antagonistas, embora tentasse abordá-la com o máximo de humanidade possível. Apesar da morte recente, o personagem marcou a narrativa ao propor reflexões relacionadas ao machismo e preconceitos estruturais, às relações de poder e à morte encomendada. Ciente da visibilidade, Paulo aproveita a oportunidade para refletir sobre os desafios apresentados em papéis de assassinos, a abordagem da saúde mental dos antagonistas e estereótipos do audiovisual nas narrativas nordestinas. Paulo descreve a importância de “Mil Dias – A Saga da Construção de Brasília”, série do History Channel finalista do Grande Prêmio Brasileiro de Cinema em 2019, e do personagem nordestino, assim como ele, na vida real.

Paulo observa que a transformação dos personagens nas novelas se dá aos poucos, à medida que a história se desenrola. “A gente sabe apenas sobre as origens deles e pequenas coisas sobre ele. Tento sempre humanizar os meus personagens. Sem justificar as maldades, mas acho que cada um tem os seus porquês. Acredito que o Sidney, como um cara que precisou ganhar vida, topava esses tipos de serviço para os patrões. O interessante é que fui moldando o personagem junto com os escritores”, lembra, ao fazer menção ao talento de Walcyr Carrasco, autor de “Terra e Paixão”.

O artista revela que a diferenciação das personalidades dos assassinos de aluguel, Sidney e Ramiro, interpretado por Amaury Lorenzo, surgiu a partir de uma percepção dele das dinâmicas dos dois personagens. Em cena, o intérprete percebeu que Ramiro tinha traços de uma pessoa mais ingênua, enquanto que Sidney possuía uma postura mais rígida e distante.

Sidney em "Terra e Paixão", o ator reflete sobre a "nordestinidade latente" em seus personagens

Sidney em “Terra e Paixão”, o ator reflete sobre a “nordestinidade latente” em seus personagens (Foto: Priscila Nicheli)

“Ramiro foi um cara com uma índole grosseira machista e bruta, mas tem uma inocência grande. Então, comecei a buscar um outro lado: de um cara sem inocência e mais ‘ralado’ [da vida]. Essa transformação veio na primeira cena com o Tony Ramos, o Antônio Lacerda, dá ordem para o Ramiro dar um susto em uma personagem. O Ramiro não pôde fazer porque estava ligado a ela, por isso, o Antônio mandou o Sidney fazer o serviço. Nessa hora, percebi que poderia ser uma virada, que eu poderei mostrar um pouco mais a maldade e força desse personagem”, opina.

A partir desta cena, os escritores alinharam as atitudes do personagem à percepção de Paulo. As oportunidades de propor uma faceta mais maléfica e complexa de Sidney se mostraram no mesmo momento que o comparsa busca a redenção. Em consonância, o ator descreve que Sidney assumiu “as maldades e serviços cruéis e sujos no lugar de Ramiro”.

Assim que pego uma cena, procuro entender o que eu posso trazer para um personagem que já é construído e o que posso desconstruir dele. Quero a dualidade. Posso interpretar, por exemplo, um serial killer, mas que tem um amor pela mãe. Ele tem uma humanidade em algum lugar. A busca da transformação desses personagens, que são humanos repletos de defeitos, é o diferencial que torna o trabalho completo. Isso acaba reverberando na atuação e na tela, o que deixa mais verossímil para o público — Paulo Roque.

 

Relação Ramiro-Sidney com a homossexualidade e a saúde mental

Tocado pela parceria dos personagens Sidney e Ramiro, Paulo faz um contraponto ao indicar que a amizade é muito marcada pela lógica machista e homofóbica, sobretudo por parte do principal capanga da novela. Os preconceitos foram evidenciados quando Ramiro assumiu um relacionamento amoroso com Kelvin, feito por Diego Martins. Ao longo da narrativa, Sidney provocava o colega pela aproximação abrupta com o rapaz e implicava, principalmente, pelo apelido “Rams”, dado pelo namorado.

Ao site, o artista revela que Sidney voltará a aparecer na novela no formato de sonhos de Ramiro. Surpreendentemente, o capanga vai propor uma discussão de aceitação de um amor livre entre pessoas do mesmo gênero.

O artista Paulo Roque abre o coração sobre a sensibilidade nordestina em seus papéis no audiovisual

O artista Paulo Roque aborda a sensibilidade nordestina em seus papéis no audiovisual (Foto: Priscila Nicheli)

“Será que o Sidney vai ser preconceituoso? Será que vai criticar o amor do amigo? Porque até então, mesmo nesse estranhamento da brutalidade, eles eram parceiros. Essa era uma dúvida que o elenco tinha nos bastidores e que eu falava com Amaury. ‘Acho que eles são amigos e que o amor de Ramiro não os separariam. Eles são tão parceiros que ele tem dificuldade de matar o amigo. Não era apenas uma crise de consciência, mas um ataque de pânico por matar alguém que era parceiro dele, que já fez muita sujeira e serviços com ele.”

Em relação à tentativa de assassinato de Sidney por parte de Ramiro, Paulo reconhece que as origens do teatro auxiliaram os atores a encanar o estado de exaustão emocional e tensão. A cena em questão foi gravada durante a “última semana da diária”, após outras gravações de ambos os artistas. O intérprete reconhece que usou a própria exaustão física para representar o sofrimento sentido pelo matador na cena.

Paulo pontua o debate acerca da valorização da saúde mental. “A gente usou o corpo exausto, próximo ao pânico e ao medo. No estúdio, a construção de suar e de se provocar foi sensacional. O entendimento sobre a questão psicológica é muito interessante, até porque eu e Amaury estamos buscando isso e a gente tenta se inteirar sempre sobre isso. Como exemplo, o Sidney não reconhece que está tendo um ataque de pânico, mas sim algum tipo de fraqueza ou que ele se afrouxou. A cena dá um simbolismo sobre a discussão da saúde mental, sobre o que nos afeta no dia a dia, sobre o que o sistema faz com a gente”, critica.

A gente usou o corpo exausto, próximo ao pânico e ao medo. No estúdio, a construção de suar e de se provocar foi sensacional. A cena dá um simbolismo sobre a discussão da saúde mental, sobre o que nos afeta no dia a dia, sobre o que o sistema faz com a gente — Paulo Roque.

Antenado com os acontecimento político-culturais do país, o ator afirmou que a figura do artista deve estar sempre atualizado com o mundo e com a vida. Ele acredita que a arte, sobretudo o cinema e as produções audiovisuais, transmite os acontecimentos e realidades de forma proporcional, de forma a dar a dimensão real do mundo aos espectadores. A partir dela, são construídas críticas severas à sociedade e à política.

Paulo Roque participou da série "Mil Dias - A Saga da Construção de Brasília", finalista do Grande Prêmio Brasileiro de Cinema em 2019

Paulo Roque participou da série “Mil Dias – A Saga da Construção de Brasília”, finalista do Grande Prêmio Brasileiro de Cinema em 2019 (Foto: Priscila Nicheli)

 

Sensibilidade nordestina

Por outro lado, ao abordar o tópico da “sensibilidade nordestina”, Paulo recordou da imposição da “neutralização do sotaque” dele de origem. Quando o ator cearense chegou ao Rio de Janeiro, as oportunidades de trabalho o obrigaram a “limpar” a forma de falar, o que avalia como uma forma de apagamento de sua “nordestinidade latente”. Como legado do Ceará, o artista tenta empregar os costumes culturais e formas de ver o mundo por parte dos personagens.

Apesar de ter um sotaque menos acentuado, nunca deixei de trazer a minha nordestinidade. Foi um processo traumático saber que eu teria que tirar o sotaque para poder fazer os personagens. Mas, quando pego personagens com a pele nordestina, trata-se de uma revisitação a tudo e vem uma alegria e uma potência — Paulo Roque. 

Ainda no mesmo tópico, Paulo descreve a importância de “Mil Dias – A Saga da Construção de Brasília”, série do History Channel finalista do Grande Prêmio Brasileiro de Cinema em 2019, e do personagem nordestino que interpretou. A partir do quarto episódio, deu vida ao candango Domingos e confessou ter conquistado o papel por ter “encarnado” a essência nordestina durante os testes. Mesmo após o texto, o diretor Fernando Honesko pediu que ele não abandonasse o personagem e respondesse a perguntas espontaneamente – a performance fora do script fez com que ele conquistasse o trabalho. 

“É como um vulcão quando a gente consegue voltar para a essência nordestina. Estava com saudade disso desde que me mudei para o Rio, já que não conseguia fazer nenhum personagem do Nordeste. A riqueza de poder fazer e falar qualquer coisa [a partir de uma ótica nordestina] é linda, principalmente quando você revisita o lugar de onde vem”. 

O ator Paulo Roque confessa que teve que "anular" o sotaque nordestino para conseguir oportunidades de trabalho no Rio de Janeiro

O ator Paulo Roque confessa que teve que “anular” o sotaque nordestino para conseguir oportunidades de trabalho no Rio de Janeiro (Foto: Priscila Nicheli)

Segundo Paulo, a responsabilidade de encarnar um nordestino nas telas é amenizada pela oportunidade de propor imagens e mensagens corretas para o público brasileiro sobre as narrativas do Nordeste. Motivado pelas narrativas fidedignas, o ator pontua o esforço no uso da humanidade para a desconstrução dos estereótipos vinculados à população do Nordeste, sobretudo do Sertão. 

 

Cassimiro e a Flor da Dona Flor

Ao lado da atriz e roteirista Ângela Escudeiro, Paulo Roque protagonizou a série “Cassimiro e a Flor da Dona Flor”, ainda com data de estreia a ser marcada. Com a direção de Lilia Moema e roteiro de Ângela, os artistas se dedicaram na abordagem de uma representação sensível da paixão e do amor nordestino. O projeto aborda a essência e trajetória amorosa dos personagens Dona Flor e Cassimiro em uma dinâmica que envolve o Sertão brasileiro, os bonecos e a cultura do Nordeste.

“O mérito da sensibilidade deste trabalho é de Ângela Escudeiro pela escrita maravilhosa e olhar para mim. A gente já se conhecia um pouco, o que tornou a dinâmica dos dois fácil. Ela é uma excelente atriz e captou o amor nordestino malandro e repleto de malícia e, ao mesmo tempo, inocente. É o tipo de desafio que eu gosto de lidar: interpretar algo, mas não totalmente, e forma a brincar com as possibilidades que o personagem oferece e com as pessoas que a gente contracena”, explica o intérprete, ao se emocionar com a “atmosfera desse amor” a partir da sensibilidade e humanidade do seriado de dez episódios, já com teaser disponível no YouTube.