Maria Clara Spinelli e Shi Menegat vivem protagonista em ‘Elas por Elas’. Abordagem trans avançou nas novelas? Veja!


Historicamente, a abordagem a personagens transexuais sempre foi cercada de preconceito e estereotipação. Pela primeira vez na Globo haverá a personagem de uma mulher trans como protagonista. Mas, importante questionar: a teledramaturgia é inclusiva? Shi Megenat (na primeira fase) e Maria Clara Spinelli vivem a personagem Renée na releitura de “Elas por Elas”, e têm a primazia de tal importância numa novela da emissora carioca. Deve ser celebrado, outrossim, o fato de a personagem não ser estereotipada nem marginalizada, o que é, de alguma forma, frequente na teledramaturgia. Antes delas, a Manchete trouxe Cláudia Celeste à frente de uma trama, porém, alvo de preconceito, a emissora precisou diminuir a importância da personagem Dinorá, por conta da baixa audiência. Mesmo a Globo, que costumava colocar pessoas trans nos núcleos de humor, avança ao dar à Maria Clara e Shi a oportunidade de interpretar uma personagem que é, sobretudo, uma mulher forte e que vive seus conflitos. Para o jornalista e Mestrando em Comunicação com ênfase em cultura LGBTQIAPN+, Mario Camelo (UFG), fica a torcida “para que ao haver uma pessoa trans protagonista de novela, possa ajudar a nossa sociedade a naturalizar também a presença dessas pessoas no convívio social. (…) Elas são plurais, protagonistas e dignas de espaços de brilhar”

*por Vítor Antunes

O prefixo trans, no latim, quer dizer “para além de”. Por diversas e reiteradas vezes, as personagens trans nas novelas precisaram ir além do preconceito. Desde as primeiras retratadas nas tramas, em muitas vezes transitando pela marginalização, finalmente é chegada a vez de ver uma personagem/protagonista trans em uma novela em que a transexualidade é um elemento que a compõe com extremo respeito. No caso de “Elas por Elas“, a personagem Renée, vivida por Shi Menegat (na primeira fase) e Maria Clara Spinelli, é a primeira protagonista trans de novelas da Globo. E, uma das poucas, ainda dentro da própria Globo, a não estar numa condição servil ou prostituída, ou ainda num núcleo de humor. Antes de Maria Clara e Shi, esse papel pioneiro coube à atriz Cláudia Celeste (1952-2018), na novela “Olho por Olho“, da TV Manchete. Porém, diferente de Renée, a personagem de Cláudia era uma prostituta.

Historicamente tem sido mais recorrente haver personagens trans em novelas. Mas isso nem sempre aconteceu. Em 1977, quando foi convidada a fazer a novela “Espelho Mágico” a própria Cláudia Celeste foi expulsa da novela quando a Censura Federal descobriu que ela era travesti e que havia sido condecorada com o título de Miss Brasil Gay 1976. Cláudia também teve seu papel diminuído em importância em “Olho por Olho” (1988) por pressão popular. No ano seguinte, Rogéria (1943-2017) fez uma participação em “Tieta”, com um pouco mais de aceitação da audiência, ainda que sua personagem fosse um tanto estereotipada e/ou exótica. Para Mario Camelo, jornalista e mestrando em Comunicação pela UFG (Universidade Federal de Goiás), “a história das pessoas trans e travestis, não somente na teledramaturgia brasileira, é marcada pela marginalização. As personagens trans quase sempre estiveram relacionadas a esse contexto, interpretando prostitutas, dançarinas da noite, e afins, ou no lugar de alívio cômico. A partir de 2012, tornou-se mais habitual ver uma ou duas pessoas trans no elenco das telenovelas, especialmente nos últimos cinco anos”.

Para Shi Menegat “é muito importante este protagonismo. A gente está vendo novas narrativas, novas histórias sobre corpos que sempre existiram. Então, eu fico muito feliz de a gente estar construindo esse projeto coletivamente, com muitas pessoas incríveis, ajudando a pensar isso de um jeito muito consciente. Eu, como uma pessoa não-binária, cresci sem ouvir falar em não-binariedade e isso fez com que eu demorasse para me identificar com algo que nem sabia que poderia. Me sinto também privilegiada por poder estar nesse lugar [protagônico] junto com Maria Clara. Isso se deve a conquistas recentes e a lutas históricas – com muito ainda a ser feito. Acho que a novela acrescenta um marco bonito, especialmente pra televisão brasileira, para que o público veja que somos pessoas concretas, reais e diversas”. Já Maria Clara Spinelli se diz “muito honrada em poder continuar um caminho, uma trajetória iniciada por elas [as pioneiras]. Eu tento fazer isso, e com a maior dignidade possível. Quando elas estiveram aqui já era um tempo muito mais duro do que hoje e é algo muito difícil ainda para mim. Imagino o que elas viveram”.

Maria Clara Spinelli e Shi Menegat dividem a mesma personagem em “Elas Por Elas” (Foto: Divulgação/Globo)

SEMPRE SEMPRE MAIS

Elas por Elas” simboliza a evolução na representação e na representatividade das pessoas LGBTQIAPN+ na teledramaturgia. Distante da estereotipação a qual corpos trans costumam ser retratados nas novelas. Renée (Maria Clara Spinelli/Shi Menegat) será uma mãe de família, devotada. Longe da recorrência marginal e/ou hiperssexualizada presente em outros folhetins. “Essa personagem, esse trabalho tem todo um lado maternal, de cuidadora que eu talvez nem achasse ter e ele veio em mim com muita força”, diz Maria Clara. E prossegue: “É um ganho muito grande pra mim. A maternidade, ela está em mim eu nem sabia que tão fortemente. Tudo isso emprestei à Renée. Quanto a mim, quanto a eu ser mãe, acho que é uma responsabilidade muito grande e talvez por pensar muito nisso eu nunca tenha tido filhos. Quem sabe um dia, mas eu acho que por enquanto não é pra mim e não sei se um dia será”. Não binária, Shi aponta achar “lindo ver a comunidade podendo falar sobre família e se projetar em papeis sociais que foram muito negados, e que sempre estão tentando tirar-nos o direito. Mas eu, particularmente, não penso nem em maternidade nem em paternidade”.

Mesmo estas perguntas sobre maternidade/paternidade, e ainda, sobre a possibilidade de pessoas trans fazerem uma novela sob esta prerrogativa, seriam impensáveis há alguns anos atrás. Entre as décadas de 1970 e 1990, em ao menos três ocasiões houve tentativas de colocar pessoas com algum relevo em novelas. Como informado anteriormente, coube à Claudia Celeste esta primazia. Na ocasião, sua personagem, Dinorá, era uma prostituta. Dez anos depois, a mesma emissora colocou Roberta Close em “Mandacaru”. Sua personagem também era uma prostituta. Porém, até mesmo o convite à atriz veio embalado de preconceito. Soma-se a isso um fato público de que um ator que fazia par romântico com ela recusou-se a beijá-la.

Não chamei [Roberta Close à novela] como atriz, mas como evento – Walter Avancini, diretor de “Mandacaru” (Veja, Maio de 1998)

Roberta Close em “Mandacaru”. Ator recursou-se a beijá-la (Foto: Divulgação/TV Manchete)

Houve casos nas novelas em que personagens trans foram vividos por pessoas cis, como em “Explode Coração“, quando o ator Floriano Peixoto deu vida à Sarita Vitti. Na época não se sabia nem como categorizá-la dentro da – então limitada – sigla GLS. A primeira personagem assumidamente trans nas novelas da Globo foi Ramona, vivida por Cláudia Raia. Que, tal como Floriano Peixoto, era uma atriz cis-hétero. Algo que se repetiria anos depois em “A Força do Querer“, com Carol Duarte interpretando Ivan. Ela, uma mulher cis-lésbica. Para o jornalista e mestrando em comunicação Mário Camelo trata-se de “transfake, que é quando pessoas cisgêneras interpretam personagens trans. Esta é mais uma marca da marginalização diária que essa população vive, e que se reflete no audiovisual, tanto que até hoje, mesmo depois de tudo o que discutimos, o transfake continua acontecendo. É o caso do filme pernambucano “Agreste”, lançado neste ano e que traz um homem cis interpretando um personagem trans que é o protagonista do filme. Ou seja, por mais que a população trans avance rumo aos espaços de poder, ainda não adotamos isso em sua totalidade. Ainda há muito que se caminhar…”, pondera. Para Menegat, “Problematizo [o transfake] na medida em que não vemos o contrário acontecendo, nem com essa frequência.”

Segundo Mário, “ver uma atriz como a Maria Clara Spinelli, premiada, segura, muito boa, com anos de carreira, extremamente profissional, e que já tem um histórico na TV de personagens com nuances muito interessantes, assumir um papel de protagonismo é um grande orgulho para a comunidade e para os ativistas da causa. É mostrar que as pessoas trans podem, sim, ser protagonistas e que podem ser dignas de espaços de poder. Espero, sinceramente, que ver uma pessoa trans protagonista de uma novela, ajude a nossa sociedade a naturalizar também a presença no convívio social”.

Espero que a novela – que nunca será capaz de abranger todas as nuances de uma pessoa trans, pois, afinal ainda é totalmente pautada no heterocentrismo – seja respeitosa e que traga narrativas reais, narrativas que não mostrem comicidade, nem marginalização, afinal, as pessoas LGBTQIAPN+ e, especialmente as pessoas trans, elas não são engraçadas o tempo todo, elas não são apenas um recorte social de marginalização, elas são plurais, protagonistas e dignas de espaços de brilhar – Mário Camelo, jornalista e mestrando em Comunicação

Ainda que Renée seja abertamente uma pessoa trans, a personagem que a originou na versão original de 1983, não. Carmem (Maria Helena Dias [1934-2023]) era uma mulher cis. A ela, Spinelli rende-se em homenagens: “O meu trabalho é uma singela e respeitosa menção a essa grande atriz que eu admiro tanto. Que honra poder fazer um remake de uma personagem que foi feita por Maria Helena Dias. Tomo muito cuidado, inclusive, em não assistir a obra original para não acabar absorvendo muito de sua interpretação”.

Para Shi Menegat o fato de ser pioneira “recai sempre em um certo peso, mas a gente precisa pensar que muitas portas foram abertas antes. A Renée ser uma pessoa trans é mais uma das características que a compõem lindamente, além de muitas outras que o público com certeza vai adorar. E a troca com a Maria Clara, com quem divido esta personagem, é maravilhosa. Ela é incrível, uma deusa, uma diva, uma pessoa maravilhosa. E ver esse afeto que ela tem, ver esse amor transbordar, é um carinho que vai apaixonar o Brasil”.

É muito importante essa consciência de que as conquistas nunca são individuais. A gente conquista, a gente quer conquistar pra que mais pessoas acessem, mais pessoas possam sonhar, mais pessoas possam acreditar e sabemos também que a gente vive em um mundo, em uma sociedade em que a exclusão ainda é uma regra – Shi Menegat

Shi Menegat: “A gente vive no mundo em uma sociedade em que a exclusão ainda é uma régua” (Foto: Mau Kessler)

O POTE DE OURO ALÉM DO ARCO-ÍRIS

Para o acadêmico Mário Camelo, por mais que seja simbólica a presença de Shi e Maria Clara na nova novela das 18h em um núcleo dramático, é importante problematizar que a inclusão de pessoas trans em narrativas de humor ou de sexualização não é algo tão distante assim. Na atual novela das 21h, “Terra e Paixão“, a personagem de Valéria Barcellos, Luana, trabalha e mora no prostíbulo/bar da trama. E, em 2019, na novela “A Dona do Pedaço“, a personagem Britney (Glamour Garcia) era alvo de transfobia recreativa e fazia piada consigo própria por não haver feito a redesignação sexual. Segundo Mário, “o que eu vejo, hoje, é que existem caixinhas para os personagens trans, e foi o que aconteceu com a Glamour Garcia em “A Dona do Pedaço“. Estamos falando de 2019, não tem muito tempo. Mas, de lá pra cá, a sociedade vem mudando muito. Me lembro bem da cena em que a personagem da Glamour revela para o namorado que é uma mulher trans. A reação dele é de revolta, de raiva, ele até simula um ato de violência contra ela. Ao se revoltar com a revelação, torna isso mais importante do que o amor que sentia pela sua namorada?”, questiona.

Revelação do capítulo de 22/08/2019, segundo a própria Globo: “Britney revela seu segredo a Abel. Britney é trans” (Foto: Divulgação/Globo)

Ainda segundo Mário, “personagens que trazem esses aspectos de comicidade, e essa transfobia tão clara para as narrativas sempre estiveram nas telenovelas, porque não podemos nos esquecer, que sempre foi considerado um produto que está num lugar muito heteronormativo: o mocinho, a mocinha, o casamento no final… São regras muito habituais da nossa sociedade binária, conservadora. E essas narrativas só depõem contra a existência e o movimento trans. Assim, acho que a telenovela até agora ainda representava um contexto muito difícil de inserir com veracidade boas narrativas de personagens transgêneros e LGBTQIAPN+ no geral. Atribuo isso ao fato de não haver autores, roteiristas e nem diretores trans. A Ancine (Agência Nacional do Cinema), assim como o Estado e o poder público, não fazem questão de sequer recolher os dados da presença dessas pessoas no mercado. Está na hora de os autores se informarem mais, de buscarem roteiristas trans, como Alice Marcone, e de procurarem entender as reais nuances e narrativas que envolvem essas pessoas para levá-las, de fato, à telenovela”.

Além da nova novela das 18h, Shi poderá ser vista no longa “O mensageiro”, dirigido pela Lúcia Murat, no qual interpretará um soldado na ditadura militar. Além disso, mergulhará em alguns projetos musicais. Finalizando, perguntamos à Shi se tal como o nome de Renée, sua personagem em ‘Elas por elas’, que significa renascida em francês, houve algum momento em que ela sentiu haver tornado a nascer: “Eu poderia dizer uma resposta bonita como “renasço todos os dias”, mas a verdade é que odeio essa pressão por constantes renascimentos ou por ter que ser sempre uma versão renovada e melhor de si. Não penso mais nessa ideia de ficar renascendo, porque parece que recomeço sempre do zero. Amo meu próprio nascimento e estou feliz com isso”.

Shi Menegat vive Renée em “Elas por Elas” (Foto: Mau Kessler)