* por Vítor Antunes
Afastada das novelas da Globo desde quando atuou em “Uga Uga” (2000), Maria Ceiça estará de volta à casa. Desde 2005, a atriz estava na Record, quando fez duas fases da trilogia “Mutantes”, além das novelas bíblicas na emissora paulista. A volta de Ceiça à Globo encontra uma emissora muito mais aberta à diversidade étnica. Em “Elas por Elas” não só uma das protagonistas é preta como um dos co-protagonistas também o é, além de haver um núcleo importante de pretos na trama. Na versão original da novela não havia ao menos um no elenco. “Olha, é uma felicidade. Esta é uma forma de a gente estar presenciando uma transformação. Eu, particularmente, vejo que em algumas novelas atrás eu era a única personagem negra da trama, e era uma personagem que não tinha família, não tinha história. Nesta, sendo uma releitura, os autores estão pegando personagens existentes e transformando. Desta forma eles mostram ser possível”.
Duas das novelas às quais Ceiça trabalhou na Globo traziam temas que hoje têm grande protagonismo. Um deles é o feminicídio. Baseado no conto “A Morte da Porta Estandarte“, de Aníbal Machado (1894-1964), a novela “Felicidade” trouxe com destaque e importância à morte da personagem Tuquinha Batista. A porta-bandeira da escola de samba Estácio de Sá era assassinada a facadas na quadra da agremiação por seu companheiro Tide (Maurício Gonçalves) . Ainda que tenha gerado alguma discussão na época, hoje a abordagem seria problematizada de outra maneira. Além disto, em 1997, a atriz esteve em “Por Amor“, também de Manoel Carlos, que trazia um debate curioso sobre o racismo: Wilson (Paulo Cesar Grande) era casado com Márcia (Maria Ceiça), ele admitia-lhe o amor, mas não o fato de ter um filho preto. Além disso, havia uma recorrência de agressão dele a ela. “Tenho uma gratidão muito grande por essas personagens e pelo Manoel Carlos. São personagens maravilhosos, complexos. Márcia mesmo era uma artista plástica [e vivia esses conflitos]. Não era previsível, organizada”.
ELAS TÊM COR
Na primeira versão de “Elas por Elas” não havia sequer uma atriz preta no elenco. Não apenas isso. Não havia ator, criança, ninguém. Simplesmente, parecia quem em 1982 não havia ator preto contratado na Globo. Numa leitura superficial sobre os elencos, é possível estabelecer que das seis novelas exibidas pela casa naquele ano, incluindo “Elas por Elas” – A saber “O Homem Proibido“, “Sétimo Sentido” , “Paraíso” , “Sol de Verão” e “Final Feliz“, eram apenas cinco os atores pretos. Um em “Sétimo Sentido”, e dois em “Sol de Verão” e “Paraíso”.
Sobre esse momento simbólico, a atriz diz ser “uma felicidade incrível, uma realização, porque é possível, é arte. E arte pode ser feita por branco, preto, oriental, PCD… A dramaturgia contempla isso e quem bom! Ótimo estar numa novela que tem toda essa gama de personagens, de cores maravilhosas, nada de estereótipo, tratando como brasileiros normais, isso é muito feliz e é revolucionário na televisão. Esta novela vem no rastro de outras novelas significativas de representatividade como “Vai na Fé” e “Amor perfeito“, que são um sucesso”.
Sucesso a gente faz. Alegria a gente tem. Esta é uma realização, uma felicidade – Maria Ceiça
Sobre a sua personagem, ela diz que “Tia Marlene é uma mulher solar, uma mulher alegre que leva a vida com muito bom humor, que levanta a família, pois é chefe desse núcleo familiar. Ela criou a sobrinha e a sobrinha cria filha. Então, são – sem trocadilho – elas por elas ali naquele pequeno núcleo. Espero que a personagem agrade todo mundo, que as mulheres se identifiquem com Tia Marlene por que ela gosta de namorar, é uma mulher pra frente, sexy, que não está morta”, diverte-se.
… QUE ME MATE NO ESTÁCIO
A primeira personagem importante de Maria Ceiça nas novelas foi em “Felicidade”, na qual viveu Tuquinha Batista. Personagem eterna da literatura de Aníbal Machado, reinterpretado pelo não menos importante Manoel Carlos. A novela era baseada em vários contos do autor literário e “A Morte da Porta Estandarte” era um deles. Na época gerou discussão o fato de a moça vivida por Ceiça haver morrido assassinada pelo namorado à golpes de faca, numa novela das 18h, numa cena muito potente e intensa. Porém, não ganhou vulto a discussão sobre o feminicídio, cuja lei só viria a ser impetrada em 2015, 24 anos depois, portanto. Sobre a personagem, ela disse à repórter Helena Tavares, em 1992, do Jornal do Brasil: ” Tuquinha me abriu as portas para outros trabalhos e me abriu para um crescimento profissional”. Como a discussão sobre o assassinato de mulheres não era nem incipiente entre 1991 e 1992, falava-se da injustiça de uma menina tão brejeira e sonhadora morrer sem ter direito à felicidade.
Ela poderia encontrar o amor da sua vida e viver feliz para sempre – Maria Ceiça, em 1992
Sobre Tuquinha e Márcia, de “Felicidade” e “Por Amor”, respectivamente, diz que são “Personagens que têm dignidade, trabalham, são lutadoras. Tenho muita gratidão por elas e por ter, em todos esses anos feito essas mulheres e ver que gradativamente há cada vez mais famílias pretas nas novelas, vários negros, muita realidade sendo representada, gente de classe média e isso é muito muito bom”. Não há mais tempo para que, tal como nos Anos 1990, a negritude seja apenas um adjetivo, como os jornais intitulavam: “Maria Ceiça, a mulata da novela“. Mesmo a palavra “mulata” hoje é algo discutível. O sonho é uma escrevivência da pretitude. A quem quer escrever uma história, escreva-a em pretuguês, como diria Lélia Gonzalez. Mulher de fibra que abandonou o trabalho como funcionária da Light em 1986 em busca do sonho de ser atriz. Àquela mulher que na juventude só tinha um sonho para si, hoje, na maturidade não apenas realizou-o como é realizada por ele. Antigamente, afirmou ao jornal que “A minha determinação é tamanha que ninguém ousou impedir (…). Demorei para me encontrar e agora ninguém mais me segura”. E é verdade. Ninguém para a água. Ninguém segura o raio. Ninguém pode impedir uma mulher.
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