Maria Casadevall fala de luta feminista retratada em “Coisa mais linda” e novo visual: ‘Ruptura com pacto social’


A atriz começou 2020 de cabelos raspados e explica o que motivou a decisão: ‘Era um desejo que já me acompanhava há algum tempo e que a partir de uma transformação lenta, pessoal e profunda foi se apresentando como forma de colocar para fora, no meu corpo, um pouco do que está acontecendo dentro dele” E mais: ela aproveitou essa intensa metamorfose para deletar todas as fotos de seu Instagram. “Estou sempre repensando em como ocupar aquele espaço de uma forma representativa e saudável, para mim e para xs outrxs, e que esteja alinhado, da forma mais fiel possível, o momento pessoal que estou atravessando agora, e o que estava exposto ali já não me representava mais”, explica

*Por Karina Kuperman

Maria Casadevall começou 2020 diferente. A atriz decidiu raspar os cabelos, o que gerou intenso burburinho. A atenção sobre o assunto, para ela, é algo que soa natural. “É claro que essa experiência atravessa de forma muito particular cada um dos corpos de mulheres que decidem passar por ela, mas um ponto em comum é que a raspagem do cabelo, para uma mulher, representa a ruptura com o pacto social, com a ideia construída e imposta de feminilidade. Por isso tive a oportunidade de trocar ideias com muitas mulheres sobre isso e as abordagens se transformaram de forma natural num papo profundo sobre escolhas e liberdades”, conta ela, que explica o porquê da decisão: “Era um desejo que já me acompanhava há algum tempo e que a partir de uma transformação lenta, pessoal e profunda foi se apresentando como forma de colocar para fora, no meu corpo, um pouco do que está acontecendo dentro dele”, diz Maria, que aproveitou essa intensa metamorfose para deletar todas as fotos de seu Instagram. “Estou sempre repensando em como ocupar aquele espaço de uma forma representativa e saudável, para mim e para xs outrxs, e que esteja alinhado, da forma mais fiel possível, o momento pessoal que estou atravessando agora, e o que estava exposto ali já não me representava mais”, explica.

Maria Casadevall de cabeça raspada (Foto: Reprodução)

Protagonista da série “Coisa mais linda”, enorme sucesso no Netflix, Maria acredita que a abordagem de questões que estão em pauta atualmente é algo que chama atenção na trama, que conta a história de quatro mulheres – com suas questões e lutas – no Rio de Janeiro em 1959.  “Acredito que o sucesso tenha se dado por ser uma série que aborda, de forma aparentemente distanciada, questões tanto na esfera pública, quanto privada, como, por exemplo, a equidade de gênero, o racismo, o classismo. Essas questões não são abordadas de forma didática, embora a linguagem seja simples, e aos poucos, através da dramaturgia, o público foi se identificando com aquelas mulheres e suas histórias, criando uma relação direta com suas próprias vidas, e com o momento atual de novas demandas sociais, e profunda transformação de uma sociedade que ainda permanece reproduzindo violência e preconceito de forma estrutural como a nossa”, analisa.

Maria fala sobre papel em “Coisa mais linda” (Foto: Caroline Curti)

A série apresenta tramas bem realistas e atuais, como a de uma mulher negra e trabalhadora e outra, de uma jornalista independente e bissexual que luta pela presença feminina na revista em que trabalha. “Abordar essas questões atualmente tem mesma importância que se tinha naquele tempo. Temos que lutar pela criação de narrativas que tirem mulheres e suas histórias da invisibilidade, e que desconstruam a ideia limitante da mulher universal e seus padrões ocupando sempre os mesmos lugares, fechando os olhos para realidades de raça e classe. É importante pluralizar, multiplicar as vozes e as narrativas, para que todas estejam representadas e possam se inspirar com as histórias apresentadas”, ressalta.

As protagonistas de “Coisa mais linda” são vividas por Maria Casadevall, Pathy de Jesus, Fernanda Vasconcellos e Mel Lisboa (Foto: Reprodução)

Apesar de ambientada entre os anos 50 e 60, questões como a luta contra o machismo de fato estão extremamente presentes nos dias atuais. “O distanciamento temporal da série convida o espectador a se envolver sem compromisso com aquela história, com a ideia de que ‘esse tempo já passou’, mas aos poucos o conteúdo vai se mostrando mais atual do que nunca, e revelando que as lutas daquelas mulheres que se apresentam ali, embora alguns direitos tenham sido conquistados na forma, como o divórcio e certa autonomia jurídica, a violência tanto física quanto simbólica contra as mulheres continua se reproduzindo no cotidiano, nas ruas, dentro de casa, nas relações e na linguagem tanto quanto nas instituições e nas esferas de poder”, diz.

Maria é Malu em “Coisa mais linda” (Foto: Reprodução)

Logo no começo da primeira temporada de “Coisa mais linda”, Malu, personagem de Maria, forja a assinatura do marido para conseguir um empréstimo no banco, o que demonstra claramente como ainda era forte o patriarcado há pouco tempo atrás. “Conquistas pontuais e importantes foram feitas e são reconhecidas, mas a luta é permanente pois as reparações históricas e mudanças a serem feitas são estruturais, e para que elas aconteçam, é preciso uma revisão total do nosso modelo de sociedade, da nossa prática de produção e consumo da nossa relação com a terra e com o alimento, da nossa relação de trabalho, e etc. Hoje o feminismo está passando por mais um levante histórico de sua trajetória e é importante que se reconheça a diversidade dentro do movimento, sem generalizações, tal como a liderança das mulheres negras e suas demandas historicamente negligenciadas pela branquitude ao longo dessa caminhada”, analisa.

Maria Casadevall (Foto: Caroline Curti)

Além desse trabalho, Maria também está no ar na segunda temporada de “Ilha de ferro“, que aborda a diferença da vida dos petroleiros na terra e no mar – onde passam semanas confinados na “ilha de ferro”, enfrentando riscos e desafios. “A preparação para essa série foi, sobretudo, um processo de escuta e disciplina. Estivemos com muitos profissionais da área enquanto éramos preparados através de treinamentos para uma possível embarcação daquele tipo, offshore de altíssimo risco. Ouvimos muitas histórias e demandas políticas e sociais também”, conta ela, que se apaixonou pela trama da série e, principalmente, de sua Julia.

Em “Ilha de ferro”, Maria vive Julia (Foto: Reprodução)

“A construção muito acertada do roteiro de explorar realidades duplas, que se apresentam de forma distinta no mar, e em terra. Essas personalidades desdobradas e sombrias que têm apreço pelo isolamento, e que interagem entre si em alto mar, criando afetos e relações profundas sob altos níveis de tensão e pressão. Como se por alguns instantes, a ‘vida real’ em terra não existisse. Além disso a personalidade da personagem Julia, apaixonada pelo seu ofício, firme em seu propósito político, e com um passado de muita mágoa foi também o que me causou uma forte atração por essa história”.