Marcus Montenegro: Empresário de artistas detona o etarismo na TV e os papéis frágeis destinados a grandes atores


Produtor de peças e empresário de mais de 300 artistas, Montenegro analisa o cenário artístico atual e tem uma perspectiva pouco favorável ao futuro não apenas das novelas, mas do streaming também. Marcus lamenta o desprezo que os grandes veículos destinam aos atores veteranos e a invisibilização deles nos produtos contemporâneos. Uma das críticas dele se direciona à novela “Família é Tudo”, que tem Arlete Salles como protagonista. Mas seria ela, efetivamente, protagonista? Para Marcus não. “É uma participação especial”. Montenegro também fala sobre seus projetos de resgate à memória e pesquisa teatral, como o livro “Ser Artista”, e as obras derivadas dele, como a série de podcast, a montagem teatral homônima e inúmeros outros projetos

*por Vitor Antunes

São décadas de vivência com a classe artística. A primeira peça produzida por Marcus Montenegro foi em 1987. A Montenegro Talents, agência cujo catálogo de atores é composto por cerca de 300 nomes, e ainda que haja alguns novos rostos, muitos dos seus associados são artistas altamente prestigiados e unanimidades nacionais como Francisco Cuoco e Irene Ravache. O que dá a ele um profundo lugar de fala no assunto do etarismo, especialmente na teledramaturgia. O produtor e empresário destaca que “desde 2015 quando há o desmonte do elenco da TV Globo, a emissora focou numa indústria de jovialização dos elencos e aí o etarismo começou a mostrar sua face. Tenho estudando telenovela há muitos anos. Os elencos foram construídos pelos atores maduros e a Globo deve seu sucesso a eles, que faziam umas novelas seguidas das outras. Antes, as tramas tinham 80% de seu elenco composto por artistas 40+. Hoje é o contrário”.

Arlete Salles está no ar como protagonista em “Familia é Tudo”, mas ela quase não aparece, ela faz quase uma participação especial. O papel é pequeno para protagonista – algo que é ocupado pelos personagens que são seus netos. Ary Fontoura estava num papel péssimo, que inicialmente era uma participação especial e passou a não ser nada em “Fuzuê”. O personagem só engrenou com a entrada da Ana Lúcia Torre. O público quer isso. Não se combate o etarismo só colocando o artista no ar, mas respeitando sua história, dando a ele boas cenas – Marcus Montenegro

Para Montenegro, um dos efeitos tácitos da saída de atores maduros das novelas é “a perda de referências pelas jovens gerações, que não podem ver os veteranos na teledramaturgia. Esse é um fato”. E o prognóstico, a seu ver, é desfavorável: “Isso só vai piorar. Muitos artistas morreram, e vemos um elenco de 50 anos cada vez em menor número e menos à altura dos talentos. As novelas turcas são uma ameaça. O público está migrando para elas por não se identificar com as novelas brasileiras, apesar de sermos referência neste tipo de produção. Estamos perdendo esse posto. Virou um caminho sem volta. Não há um executivo corajoso o suficiente para virar esse jogo”.

Antigamente, quando a Globo era unânime, arriscava mais. Hoje as produções são pueris. Não há mais espaço para adaptações da literatura brasileira, por exemplo. Se compararmos o que era feito anteriormente com o hoje é uma piada no que diz respeito à qualidade. Estamos passando uma vergonha e não entendo a razão de a TV, que era tão amiga da dona de casa, ter passado a ser maltratá-la, despespeitá-la – Marcus Montenegro

Marcus Montenegro sente falta de obras como “Escrava Isaura”, adaptações da literatura brasileira (Foto: Acervo/Globo)

Para Marcus, hoje os artistas não são sequer tão amados como antigamente. “Isso é fruto de um processo ruim do governo Bolsonaro, que massificou um discurso em cima da Lei Rouanet, somado à ascensão do mundo digital e a decadência das novelas em relação à audiência. Tudo isso provocou uma disparidade enorme”, analisa.

Outra observação de Montenegro se estende ao protagonismo dado aos realities e a seus ex-participantes. “Entendo que haja o BBB, mas não me conformo que ele recolha R$1bi, algo que é distante do que pagam de premiação. Além disso, parece que boa parte dos participantes não tem acesso à cultura ou a equipamentos culturais. Isso não é divertimento, não é ‘realidade’. Há participantes que não conhecem a melhor atriz brasileira, Fernanda Montenegro, sob a prerrogativa de serem pobres ou não terem recurso, mas eu, suburbano do Méier e de família pobre, sabia aos 10 anos quem era Henriette Morineau (1908-1990). Isso não está ligado a um poder econômico, mas à educação”.

Fernando Eiras, Beatriz Segall e Henriette Morineau em cena de “Água Viva”. Divas fizeram novelas como esta, de 1980 (Foto: Reprodução/TV Globo)

PAN-ÓPTICO

Um dos conceitos de Foucault, filósofo, diz respeito ao olhar pan-óptico. Um olhar que observa, questiona, monitora. Montenegro lança mão deste princípio, mas sem a massificação que o intelectual francês propôs. Mas sim, um olhar com a doçura que lhe é personalíssima. Candura que vem acompanhada de opiniões contundentes, especialmente no que tange ao etarismo. “Atores maduros precisam estar nas tramas centrais das novelas. Não sei se são os autores que não sabem escrever ou se não há interesse dos atuais executivos em não mandar que escrevam para essas pessoas, que são referências do público”.

Trabalho com artistas há 37 anos, sei o quanto o público os ama. Há um olhar artístico monstruoso, equivocado que não entendo a razão. Seria falta de competência ou de vontade de focar na banalidade no mundo digital, do influencer que tem força, em prejuízo da formação, que tem sido deixada de lado. Eles estão desgostosos da profissão, quando deveriam estar usufruindo da profissão, de tudo que plantaram. A inversão de valores é absoluta – Marcus Montenegro

Ainda sobre o panorama atual da televisão, Marcus diz que “os textos muito piores. O teatro e a literatura estão numa fase de grandes dramaturgos surgindo. Lamento muito que a TV, que sempre foi um repositório de bons autores e que sempre teve boas histórias e bons elencos e referências, tenha se perdido. Essa geração de ouro não tem substitutos. Diferentemente dos artistas do passado que pensavam na formação, os atuais querem passar o fim de semana em St. Barths. Ainda que reconheça haver exceções entre os jovens atores, reconheço que alguns artistas ricos e consolidados poderiam fazer diferença na vida ou no fazer teatral e audiovisual, já que houve uma redução de 70% desta produção no pós-pandemia”.

Artistas que têm um olhar preciso, que sabem escolher bom texto e sabem melhorar, são um grupo seleto e reduzido, que tende a diminuir, para nossa tristeza – Marcus Montenegro

Para Marcus, um dos maiores desafios em agenciar tantos atores é “fazê-los entender que é preciso pensar na carreira de forma ampla, em 360º, e não apenas esperar por convites em casa. É preciso fazê-los pensar em novos horizontes, se expressar de maneira diferenciada e se versatilizar acima de tudo”.

Marcus Montenegro analisa a questão da cena artística contemporânea (Foto: Divulgação)

OBRAS DERIVADAS

Não é de hoje que Montenegro se dedica a resgatar a história da teledramaturgia e do teatro, dando voz aos atores, autores, diretores. Agora ele se apoia em desdobramentos do projeto “Ser Artista“, composto por série audiovisual, peças e palestras. Recentemente, Montenegro se lançou como comunicador com o podcast homônimo e que também recentemente acabou recebendo um formato ao vivo no YouTube. “Para virar material de pesquisa para quem estuda teatro, faz mestrado e doutorado. É o legado de uma vida inteira trabalhando com as grandes damas”.

Um dos projetos que Marcus tocará neste ano é o seminário “Ser Artista” que vai discutir os desafios da profissão, e será realizado no teatro Solar de Botafogo com transmissão ao vivo. Ele quer retomar um projeto de capacitação e formação de plateia. “Quero fazer um instituto para breve”. Além do escritório, vou focar no projeto “Ser Artista“, que é composto por master classes, inclusive para escritores. Outro é a peça homônima, que traz Leona Cavalli e Anderson Müller no elenco, e dirigida por Beth Goulart. “Ela vai ficar até maio no Rio, sem patrocínio, depois vai para São Paulo, quando espera já ter captado verbas. Na montagem, Anderson interpreta o próprio Marcus. “Ver alguém interpretando a si é algo muito curioso e não foi fácil para ele, que teve dias de muito trabalho, corpo e voz para achar esses trejeitos. Leona faz 10 personagens no palco e revisita grandes atrizes como Bibi Ferreira (1922-2019) e Tônia Carrero (1922-2018) “É uma tarefa hercúlea”, aponta. Marcus diz que ver de perto arte e artistas é algo que o emociona. “São pessoas com mais de 60 anos, que estão na profissão e sobrevivem sem perder a emoção de fazer e de viver”.

Marcus Montenegro e a equipe de “Ser Artista” (Foto: Divulgação)