*por Vítor Antunes
Uma abertura com música de ritmo caribenho, Glória Pires vivendo duas personagens – que no fim transformam-se em quatro – além de Tonho da Lua e as esculturas arenosas que batizam a novela. Talvez estas sejam as imagens mais claras e definitivas que temos de “Mulheres de Areia”, novela de Ivani Ribeiro (1922-1995) escrita por ela e por Solange Castro Neves e que entrará no ar em 26 de junho na tela da Globo. A trama de 1993 estará em sua quinta exibição – somando a Globo e o Canal Viva – e em todas elas um grandioso sucesso. Tonho da Lua é um personagem icônico na carreira de Marcos Frota e mesmo passados 30 anos, por ele ainda é reconhecido. O ingênuo rapaz autista de Pontal D’Areia, segundo seu intérprete, “rompeu a barreira do tempo junto com a novela. É lembrado até hoje, em todo o lugar que eu chego com o meu circo ou com outro evento. Agora, nesse momento que ele retorna na faixa “Edição Especial“, vai poder se apresentar a uma nova geração”.
Tonho da Lua encenado por Marcos Frota não é o primeiro autista nas novelas. Como “Mulheres de Areia” é um remake da obra original montada em 1973, coube a Gianfrancesco Guarnieri (1934-2006) dar vida ao menino com TEA (Transtorno de Espectro Autista), na montagem feita pela TV Tupi. Além dele traremos quatro casos de personagens com traços autistas, com maior ou menor intensidade retratados na teledramaturgia.
Tonho da Lua vivido por Marcos Frota em “Mulheres de Areia” volta ao ar, na tela da Globo (Foto: CEDOC/Globo)
FANTASIA OU VIDA REAL?
A frase acima, trecho da música tema de Tonho da Lua escrita por Danilo Caymmi e cantada por Biafra, representa bem a mente do personagem de Marcos Frota, que transitava entre uma realidade fantasiada e uma fantasia real, com altas doses de sensibilidade. Tonho era o único que sabia devidamente quem era a Ruth (Glória Pires) e quem era a Raquel (Idem), e quando uma estava se passando pela outra. A ingenuidade do personagem foi algo intencionalmente pensado por seu intérprete: “Eu procurei dar um pouco mais de ludicidade, já que ele é um artista, um artista das areias, das esculturas”. E, para Frota, “o maior desafio de interpretar um personagem tão complexo e tão marcante foi estudar o texto”.
O Tonho da Lua primeiro arrancou a máscara da minha vaidade. Esse talvez tenha sido o maior impacto na minha trajetória, na minha carreira. Eu entendi, definitivamente, o exercício do ofício, da arte de representar, da arte de interpretar – Marcos Frota
Marcos relata que uma das maiores inspirações para construir o personagem veio de um homem que ele conheceu em sua cidade natal, Guaxupé (MG) – distante em 450Km da capital mineira – e outra, seu filho Tainã, que na época possuía três anos, além do próprio texto da Ivani Ribeiro e da Solange Castro Neves. “No script já havia todas as indicações que eu precisava para poder construir o personagem. Uma das inspirações que tive foi um vendedor de sorvete que tinha na minha cidadeé. Acho que o nome dele era Augusto, e chamávamos de ‘seu Gustin’. Ele andava de um certo jeito, usava umas botininhas da roça, e eu passei a observá-lo. Levei muito das características de ‘seu Gustin’, no Tonho da Lua, no sentido lúdico. Outra pessoa que eu me inspirei foi no meu filho, Tainã, que tinha três anos. A infantilidade dele me dava um pouco o tom que o “Da Lua” tinha, a sua pureza”.
O rapaz ingênuo de Pontal D’Areia, apaixonado pela Rutinha, decididamente é um daqueles imortalizados no panteão dos grandes personagens. Para Marcos Frota, o que faz dele atemporal e imorredouro é “O jeito que ele conduz a história dele, e o amor que ele tinha por aquele lugar que ele vivia, aquela prainha e os pescadores… Aquilo tudo era a vida dele. Tonho da Lua rompeu a barreira do tempo junto com a novela. É um personagem lembrado até hoje. Sempre há quem venha conversar comigo sobre. É um personagem que ficou. Agora, nesse momento que ele retorna, no ‘Edição Especial’, ele vai poder se apresentar a uma nova geração”. Marcos acredita que o personagem irá conquistar principalmente as crianças, “por conta das brincadeiras dele, vão ter com ele uma intimidade, vão se divertir com ele e, claro, acompanhar uma história linda que ele vive, de amor incondicional, com a Rutinha”.
Tonho da Lua e as esculturas de areia que dão nome à trama. As imagens eram produzidas pelo ator Serafim Gonzalez (1934-2007), que estava tanto no elenco da trama original como no remake de 1993 (Foto: CEDOC/Globo)
Marcos guarda na lembrança como referência a primeira versão da novela, levada ao ar pela extinta TV Tupi, com a Eva Wilma (1933-2021) fazendo Ruth e Raquel, e o Gianfrancesco Guarnieri (1934-2006) interpretando o Tonho da Lua. “Aquilo me marcou muito, e eu percebi, então, que eu tinha um enorme desafio pela frente. O texto é um clássico da nossa teledramaturgia e exige que o ator tenha muita atenção. Eu tinha que chegar com o texto muito estudado, para que eu pudesse realmente contracenar com colegas tão talentosos, tão intensos, com uma interpretação tão mágica”. Outra coisa que Frota acredita ter contribuído para o grande sucesso da equipe e a delicadeza de seu personagem foi “A importância do trabalho em equipe, a presença magnânima de um diretor de telenovela e, claro, um texto espetacular da Ivani Ribeiro, que é uma das maiores autoras que o nosso país conheceu. Um trabalho em equipe, a ausência de vaidade, e exercício do ofício, foi o que mais o Tonho da Lua me ensinou”.
Gianfrancesco Guarnieri como Tonho da Lua em “Mulheres de Areia” (1973) [Foto: Reprodução/Colorização: Site HT]
A inocência de Tonho da Lua e suas virtudes foram definitivas para que ele ocupasse um lugar especial no coração do seu intérprete: “Tonho me ensinou o amor incondicional, aquele amor que não espera nada em troca. Por isso é o mais rico. É o que faz você crescer. Ele se libertou através do amor que sentia pela Ruth. Apesar de todas as dificuldades psicológicas e temperamentais que o Tonho tinha, isso o libertou. Tanto que, no final da novela, ele foi embora com o circo. Isso é incrível, porque é um encontro com a minha própria vida, com a minha própria carreira. Eu criei um circo brasileiro, hoje de padrão internacional, e nunca imaginei que um personagem fosse ir embora com o circo, e ele foi. É quando a vida se mistura com a arte. Eu sou muito agradecido a toda a equipe, e principalmente ao público, que acompanhou com tanto entusiasmo a história de um dos personagens mais queridos que a gente conhece”.
AUTISMO NAS NOVELAS. RELEMBRE OUTROS PERSONAGENS
Sob uma perspectiva mais moderna, ainda que esse debate seja inexistente na trama de Ivani Ribeiro, compreende-se que Tonho possuía algum traço autista, porém com um verniz dramatúrgico. Ele, porém não está sozinho. Há outros personagens, especialmente nas tramas mais contemporâneas que também apresentam características semelhantes. Alguns deles oficialmente diagnosticados, em suas tramas, como autistas. Caso de Linda (Bruna Linzmeyer) em “Amor à Vida” e de Benê (Daphne Bozaski) em “Malhação – Viva a Diferença“, e outros tratados como recursos cômicos ou infantilizados. Veja:
Linda – “Amor à vida” (2012/2013)
Diagnosticada na trama como autista e com uma manifestação bem severa, a personagem de Bruna Linzmeyer foi duramente criticada na trama de Walcyr Carrasco. Telespectadores apontavam que apenas a descoberta da sexualidade da personagem foi tratada e não suas outras batalhas, como a de conseguir uma vaga na escola, por exemplo. Além disto, houve quem acreditasse ser um “abuso de incapaz” o relacionamento, e o casamento, dela com o personagem de Rainer Cadete, Rafael.
Bruna Linzmeyer foi Linda em “Amor à Vida”. Novela recebeu duras críticas na abordagem do autismo (Foto: João Cotta/Globo)
Benê – “Malhação Viva a Diferença”
Em “Malhação – Viva a Diferença“, Benê (Daphne Bozaski) era autista, também diagnosticada. Manifestava-a com a Classe 1 de Suporte, anteriormente classificada como Síndrome de Asperger. Benê era inteligentíssima, metódica, tinha dificuldades em lidar com algo fora da literalidade, mas tinha um comportamento normotípico e foi aprovada pelos telespectadores.
Benê (Daphne Bozaski), em As Five, spin-off de “Malhação – Viva a Diferença” (Foto: Divulgação/Globo)
Jamanta – “Torre de Babel”
Quando da exibição de “Torre de Babel”, em 1998, não havia um grande debate acerca do tema. O autismo e suas variantes não eram levadas à pauta na televisão de forma séria, tanto que Jamanta compunha o núcleo cômico da novela. Nem ao menos houve um diagnóstico assertivo sobre o quadro do personagem, já que isso não foi sequer problematizado. Jamanta entrou no imaginário popular como uma piada.
Cacá Carvalho foi o Jamanta de “Torre de Babel”. O autismo como piada (Foto: Cedoc/TV Globo)
Emanuel – “A Indomada”
Em “A Indomada“, Emanuel foi revelado como um rapaz ingênuo, traumatizado, ainda que tivesse sinais de ser portador de TEA, diante de sua sensibilidade, inteligência e criatividade. Coincidentemente ou não, o personagem termina a novela transformando-se em anjo – Uma atribuição comum, e criticada, àqueles que convivem com o autismo. A crítica advém da desumanização da qual essas pessoas são alvo. Afinal, anjo não tem sexo, senso crítico, e não é humano.
Selton Mello em “A Indomada”. O autista-anjo (Foto: Divulgação/Globo)