* Por Carlos Lima Costa
O ator Márcio Elizzio conhece bem o universo do personagem que marcou sua estreia na televisão, na série Arcanjo Renegado, transmitida ano passado na Globoplay, e que atualmente é exibida na Globo. Na ficção, ele vive Marquinhos, estudante de medicina, que mora no Morro dos Tabajaras. A polícia sobe o morro, o mata e alega que ele estava com uma pistola e um rádio transmissor na cintura. “Uma mentira, ele só queria salvar as pessoas, ser feliz e ter a sua liberdade. É algo tão forte de falar, porque isso existe”, reflete o artista. Na vida real, ele nasceu, foi criado e ainda mora no Morro do Borel. “Falar do meu personagem é ver que a cada dia morre uma pessoa, uma história e o governo não faz nada. Vira mais um número, uma estatística. É até delicado, porque são vidas perdidas, por guerra entre traficantes e policiais. Vivo isso na pele, conheço pessoas que perderam filhos, pais, familiares”, pontua.
E acrescenta: “Quando estreou na Globoplay, antes da pandemia, eu estava em um shopping e uma senhora, chorando, veio falar comigo. Disse que havia perdido um sobrinho do mesmo jeito que o meu personagem. Fiquei assustado e não soube o que falar, só consegui dar um abraço. E aí passou um filme na minha cabeça, porque todo dia vemos na TV que pessoas estão morrendo e não é de hoje”, ressalta.
Assim que acabou de gravar Arcanjo Renegado, ele emendou com a novela Amor Sem Igual, na Record. “A vida é gigante, temos várias oportunidades de viver e de escolhas. Infelizmente, o tráfico na favela está na nossa porta. Mas, diria aos jovens que não é esse o caminho. É bom descobrir que, por mais difícil que seja, podemos estudar e ter vida digna. Jovens, estudem, busquem o caminho do bem, da verdade. Tenho certeza de que lá na frente vocês terão orgulho. O tráfico não leva a caminho nenhum”, observa.
Morando no Borel, Márcio já passou por momentos difíceis em meio ao fogo cruzado. “Infelizmente, a gente vive no caos. Quem sofre isso são os moradores. Uma vez, a gente tinha fechado o salão de beleza da minha tia (Ana Lucia da Silva) e, do nada, 22h30, começou tiroteio. Voltamos para o salão, tivemos que ficar lá trancados, ela passando mal, porque teve gás de pimenta. Fiquei desesperado, não sabia o que fazer. Fora outros dias, descendo para o colégio, começava o tiroteio e eu tinha que retornar, entrar na casa de alguém. Na última peça que eu fiz no Tablado, quando acabou a apresentação, soube que tinha acontecido um tiroteio no morro e tive que dormir na casa de um amigo, porque não conseguia voltar para casa por conta de uma guerra que nunca vai acabar”, recorda ele algumas tristes situações.
É na casa dessa tia que ele mora desde os 15 anos, quando os pais se separaram e a mãe foi viver em Sepetiba e o pai na subida para Petrópolis. “Eles foram para longe e eu queria fazer teatro. A distância era uma dificuldade, ganhei uma bolsa no Tablado, então, seria exaustivo”, lembra.
Enfim, em 2019, todo esforço dele começou a ser coroado. Em julho/agosto, gravou Arcanjo Renegado e uma semana depois estava na Record. “Tenho certeza de que foi retorno do universo, de tudo que fiz, todo estudo, luta. Quis muito isso e aconteceu. Foi intenso e prazeroso”, lembra ele.
A exemplo de atores como Roberta Rodrigues e Thiago Martins que cresceram no Vidigal e deixaram o morro, Márcio também tem esse sonho de ascender socialmente. “Independentemente de ser ator, advogado, eu quero ter vida mais tranquila. Tenho isso na minha cabeça com toda humildade, que quero muito ter oportunidade de trabalhar, pra poder ter condição de me bancar, alugar casa, ajudar meus pais. Espero muito que isso aconteça”, observa.
Além da realidade, Márcio enfrenta também o racismo estrutural existente no Brasil. “É doido falar sobre a minha cor, que as pessoas não concordam com ela. Isso me assusta muito. Nunca passei um caso diretamente, de falarem algo comigo. Mas em loja, shopping, percebo segurança dando olhada diferente para mim, porque sou fora do padrão, sabe, não sou branco, não tenho cabelo liso, sou de favela, outra coisa que assusta as pessoas preconceituosas”, explica.
E recorda outro momento que o incomodou. “Em uma gravação, na Record, um ator X, do nada me falou: ‘Você nunca pensou em alisar seu cabelo?’ Aquilo naquela hora me doeu. Fiquei pensando ‘não é possível que isso está acontecendo comigo, ainda mais no meu local de trabalho’. Não sei se ele falou por mal, mas isso foi preconceito comigo. Fiquei triste. Por que tenho que ter cabelo liso igual ao dele? Isso me assusta um pouco. Tenho um pouco de medo de como vai ser a vida no futuro. Fico preocupado de perder trabalhos por conta da minha cor”, desabafa.
Em seu caminho profissional, ele tem alguns artistas nos quais se inspira. “Lázaro Ramos, com certeza, é referência gigantesca, assim como Vilma Melo, que foi minha professora, primeira atriz negra a ganhar Prêmio Shell de Teatro. Esses dois são pilares pela luta, pela causa, do que quero e acredito. Tem ainda o Will Smith, a Iza, o Flavio Bauraqui, o Marcello Melo Junior. “Espero muito, do fundo do coração, que daqui 50, 60 anos o racismo não exista. Nós precisamos de um lugar de respeito, ainda mais quando a gente fala da nossa origem, da nossa pele. Mas quero, preciso de um lugar de respeito, com igualdade e que esse preconceito bobo, patético, não exista”, explica.
Na novela da Record, ele relembrou outro momento da vida ao interpretar um jogador de futebol. “Eu tinha sonho de jogar no Maracanã e decidi treinar por volta de 10 anos. Aí fiquei jogando futsal. Eu treinava no Jardim América, depois fui para o Vasco onde tudo acabou pra mim. Com 13 anos, quebrei o punho esquerdo, botei um pino, fiquei sete meses, então, peguei um trauma, fiquei com medo de jogar bola novamente. Decidi me afastar, tive que fazer fisioterapia. Foi um tempo difícil pra mim, fiquei em casa cinco meses com braço engessado, não fui para a escola. Então, conversei com meus pais e desisti. Mal sabia que depois de sete anos eu estaria representando um jogador de futebol na TV. Foi incrível, reviver o meu sonho de moleque”, frisa ele, que era meia. Apesar de ter treinado no Vasco, Márcio é flamenguista.
Como se tornou ator? “Sempre fui pelo lado positivo, palhaço em casa, fazendo as pessoas felizes, ficava contando piada, história. Meu pai já tinha percebido isso em mim, meu irmão falava para eu fazer teatro, que eu era espontâneo. Um ano após tirar o pino, meu pai me perguntou se eu queria fazer teatro, que tinha certeza de que iria me ajudar. Tudo bem. Entrei no teatro por culpa do meu pai (Era 2015, quando teve aulas com Vilma Melo). E o teatro foi muito importante pra mim, com descobertas, aprendizados. A arte salva, ela foi fundamental pra minha mudada”, analisa ele, que em 2015, encenou Miguel, o Invisível, sua primeira peça profissional.
Márcio também contou com a sorte em sua trajetória. A amiga e gerente de seu pai, Maria Bourgeois, que foi modelo de Pierre Cardin (1922-2020), o conhecia desde pequeno e o apresentou a Cacá Diegues. “Ele ia me colocar no elenco de um filme, mas a filha dele morreu e o longa não foi realizado, mas ele me indicou ao José Junior, do Afroreggae, que foi diretor do Arcanjo. “Que ‘responsa’ foi pra mim, chegar lá e fazer o teste indicado pelo Cacá. Tinha que dar o meu melhor”, lembra.
As gravações da novela Amor Sem Igual, que haviam sido interrompidas no início da pandemia, foram finalizadas em agosto do ano passado. “Foi doideira não poder tocar nem encostar em ninguém”, conta ele que não trabalha desde setembro. Como sobrevive? “Sou pé no chão. Sempre penso na frente. Então, aumentei o cuidado com o que eu gasto. Tem coisas básicas, comer, vestir, pagar contas. Sempre fui bem econômico, pés no chão. Até o momento não passei dificuldade, porque minha família também me ajuda. Meu pai, minha mãe, meus tios, por mais que eles estejam mal por conta da pandemia, estão conseguindo me ajudar’, ressalta.
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