*Por Karina Kuperman
Vaneza Oliveira se destacou como Joana Coelho, uma rebelde que luta contra um grupo denominado Causa em 3%, primeira produção brasileira da Netflix. Tamanho sucesso fez com que a série já esteja renovada para a quarta temporada. Atriz e diretora, Vaneza se interessou pelo mundo artístico aos 11 anos, mas, aos 16, engravidou e, a partir daí, achou que atuação não seria mais uma opção. “Com 24 anos, depois de ter desistido de duas faculdades, eu resolvi ir atrás do teatro e, finalmente, fazer aquilo que tanto queria, para que parasse de ser um sonho. E descobri que atuar era o que desejava para minha vida. Três anos depois, eu recebi uma mensagem de um produtor de elenco de 3%. Na época, fiz o primeiro teste e busquei saber mais sobre o projeto. Foram quatro testes até me falarem que eu passei. O dia era 7 de dezembro de 2015, data do aniversário da minha filha. Foi muito massa e uma data impossível de esquecer”, lembra.
Estrela de uma série que chegou a mais de 190 países e é a produção de língua não inglesa mais assistida nos Estados Unidos, ela confessa que, apesar de saber que está se comunicando com o mundo inteiro, ainda estranha o fato. “Nas gravações, quando falávamos que a produção iria para mais de 190 países, ficava muito abstrato em nossa cabeça. Só quando estreou e nós começamos a receber mensagens das pessoas que falavam outros idiomas e tinham outras culturas, mas queriam falar de 3%, que sentimos a proporção. Lembro que um rapaz da Tunísia me mandou mensagem e pensei: ‘Nossa, estão vendo meu trabalho lá’. Outro momento que me deu este estalo de que estávamos em uma série de alcance mundial foi quando o jornal Evening Standard, do Reino Unido, fez uma reportagem para falar do meu trabalho com o título: ‘Vaneza Oliveira conquistou seu próprio mérito em 3%’. É muito recompensador se dedicar a um projeto que resulta em todo esse impacto, uma produção nacional tocar o mundo inteiro, principalmente os Estados Unidos, que dominam as produções audiovisuais. Também teve uma repercussão muito grande na população negra. Quando estive nos Estados Unidos, eu era reconhecida nos lugares e as pessoas vinham falar sobre Joana. Essas experiências deram a dimensão do nosso trabalho”, pontua.
Em comum com a Joana? “A Joana é uma mulher muito forte, sempre em ação, na constante de resolver as coisas. Ao longo das temporadas, a personagem foi mostrando cada vez a faceta de uma mulher durona, mas que escondia alguém que deseja um mundo melhor e que foi muito machucada pela vida. Eu vivendo em uma sociedade racista e machista como a nossa, também criei camadas para conseguir no dia a dia evitar que me machuquem. Essa semelhança me aproximou da personagem”, conta.
Além de 3%, Vaneza é diretora e roteirista no curta “Mãe não chora”, sobre uma mãe que precisa levar seu filho ao trabalho, pois não pode deixá-lo com o pai. A inspiração? Sua própria história. Foi após dar à luz aos 17 anos que Vaneza reparou como o mundo era diferente para mulheres e homens. “A ficha caiu quando eu vi que ele estava fazendo faculdade e eu estava em uma correria danada, não conseguia pagar uma faculdade e nem me dedicar aos estudos. Foi o começo de uma das chaves que viraram, principalmente, quando eu terminei esse relacionamento, que era violento psicologicamente e fisicamente, e no momento que eu consegui ter forças. O mundo me cobrava muito como mulher o tempo todo e eu estava fazendo tanta coisa, e nada que eu fazia bastava. Eu fui entendendo que não queria gastar minha energia para ser essa mulher perfeita, mãe e profissional incríveis que não existem. Elas são somente um ideal dentro dessa sociedade machista, que serve para cobrar a mulher o tempo todo. Resolvi gastar energia para mostrar ao mundo que ele não tem que cobrar somente da mulher essas posições, que isso é violento e machuca, além de interferir socialmente. Como eu vou ser responsável por um ser humano e seu desenvolvimento, se o mundo me violenta? Que tipo de educação vou conseguir dar para essa criança e que adulto ela vai se tornar para mundo? Temos que começar a pensar na maternidade como algo que vai refletir na sociedade inteira, para entendermos de fato de quem e como cobrar. O feminismo obviamente me ajuda a expandir a mente e visão em relação ao mundo, e a gastar energia com coisas que de fato vão ajudar a transformar o ambiente que vivemos e contribuir para que a sociedade seja menos violenta com a mulher”, explica.
Em “Mãe não chora“, Vaneza vive Raquel, personagem central da trama. “Ela é uma mãe que trabalha na Vara de Família e precisa levar o filho para o emprego, pois não consegue deixá-lo com o pai. Quando comecei a escrever o roteiro eu estava no processo de pensão alimentícia com a minha filha e o insight de fazer o filme veio exatamente quando estava na Defensoria Pública. Eu me peguei pensando em como este processo é solitário e se alguma mulher que trabalhava ali estava passando pela mesma situação que eu”, comenta.
Se para ela foi tão difícil tomar a decisão? “O filme acaba falando de maneira profunda sobre a dificuldade em reagir a essa grande violência que é cuidar de uma criança e ser responsável pela criação deste indivíduo sozinha, sem a participação do pai. Essa é a grande abordagem da trama, mas o filme também mostra as pequenas violências diárias dessa mãe que tem que ficar resolvendo vários problemas ao longo do dia, e com isso, muitas vezes não consegue ter fôlego e nem psicológico para reagir a essa grande violência que é a ausência paterna”, analisa.
Hoje mãe de uma adolescente de 13 anos, ela não esquece as dificuldades que passou. “Gravidez na adolescência é um completo caos. Mexe com a estrutura de uma família inteira. Eu fiquei muito perdida, com um sentimento de vergonha por ter decepcionado meus pais e preocupada com o que seria da minha vida. Mas você sente mesmo o peso da maternidade quando o neném nasce. Claro que durante gestação você se sente mãe, mas quando nasce você olha e pensa ‘Meu Deus, eu vou ser responsável por esse ser humano, que é muito frágil e não tem ninguém além de mim para protegê-lo’. O amamentar para mim foi um processo romântico e muito forte. Eu sendo pobre da periferia sem muita coisa para oferecer para minha filha, a primeira roupa que ela usou quando nasceu não fui eu que comprei. Mas quando amamentava, eu olhava para ela e pensava que o que ela mais precisava e queria o meu corpo era capaz de produzir. Mas além disso, não tem nada de romantização. É uma correria muito grande, todo dia você apaga fogo, e, além de tudo, eu era adolescente em um processo de amadurecimento”, lembra.
“Quando tomei a decisão de fazer teatro, foi também pensando nela, porque percebi que eu, Vaneza, estava me tornando uma pessoa melhor por fazer algo que eu gosto. Pesquisar, como atriz, as particularidades do ser humano, fez com que eu fosse mais compreensiva com as pessoas ao meu redor e me engrandeceu muito como mãe também”, comemora.
Atualmente, ela e a filha são cúmplices. “Nossa relação é cheia de amor e respeito, mas com os conflitos normais da adolescência. Tem dias que nos damos super bem, outros ela já acha que não a compreendo e que sou a pior pessoa do mundo”, ri. “Neste ano estamos passando por um novo processo de adaptação, saímos da casa dos meus pais e eu aluguei um apartamento para nós duas no centro de São Paulo, então ela teve que sair da casa dos avós e agora estamos neste processo de construir nosso lar. Existem momentos conflituosos, mas tem momentos de muito amor também”, revela.
Rodando por diversas cidades, o curta-metragem chegou ao Rio de Janeiro. “Ele participou do Festival de Curtas do Rio de Janeiro e depois será exibido em Brasília. A ideia é que ele chegue a outras cidades, e que nas sessões tenha uma advogada para que as pessoas que assistirem possam tirar dúvidas sobre o processo de pensão. Quis levar uma experiência para além do audiovisual, para que as mulheres se sintam apoiadas e acolhidas. Além disso, tenho planos de desenvolver um documentário sobre o tema mãe solo, e explorar mais o assunto, pois há muito que ser falado e quero promover essa reflexão”, diz, acrescentando:”Quero que as mães que não conseguiram ter tempo para chorar se reconheçam na história. Quero uma discussão mais profunda sobre essa solidão materna, onde a gente fale também da participação paterna para criar uma estrutura afetiva e financeira para o desenvolvimento de uma criança”, destaca.
Mullher, mãe, negra, feminista e anti-racista, Vaneza sabe das batalhas que enfrenta: “As mulheres negras recebem menos no mercado de trabalho atual e são as que menos têm oportunidades de emprego que as tirem de uma condição marginalizada. Minha trajetória até aqui foi de uma constante teimosia de não ficar nesta condição que a sociedade nos coloca. Pensava: ‘Não vou me contentar com isso, eu posso mais e tenho capacidade para conseguir mais’. Estamos vivendo um momento onde nós mulheres negras temos mais exemplos de mulheres que são pensadoras e estão discutindo o machismo e racismo, e eu me apego muito nesses exemplos para conseguir ter força de continuar lutando. Em muitos momentos me permito chorar, pois esta trajetória até aqui me trouxe muitas cicatrizes, muitas feridas. Hoje, eu busco analisar esses processos com reflexões e terapia para me motivar e continuar nessa batalha. Me inspiro muito em mulheres negras que estão buscando um mundo de fato onde a gente seja menos machucada e esteja em movimento”. A gente agradece.
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