Lucy Ramos: ‘Poucos atores conseguem dizer ‘não’ a um trabalho para que não estejam nele somente cumprindo cota’


Forte e guerreira. Assim é a atriz Lucy Ramos. “Enxergo as situações adversas de forma positiva e vejo de que maneira posso seguir e fazer o melhor. A ideia que me permeia é a de que devemos seguir sempre de cabeça erguida. Quero estar em um trabalho para contar uma história e não cumprir a cota”, enfatiza ela que reaparece na TV com uma personagem com essas características. Acaba de estrear no Star Plus, serviço de streaming da Disney, o longa-metragem O Segundo Homem, no qual a atriz foi dirigida pelo marido, Thiago Luciano. e também assina a produção.

* Por Carlos Lima Costa

Longe das novelas desde novembro de 2019, Lucy Ramos pode ser vista em um novo trabalho na TV: o filme O Segundo Homem, protagonizado por ela, que estreou, recentemente, no canal de streaming Star Plus, da Disney. A trama mostra o Brasil no futuro com uma espécie de lente de aumento, apresentando temas polêmicos, como a crescente ação das milícias e o porte de armas. O filme, com direção do marido da atriz, Thiago Luciano, tem ainda no elenco nomes como Negra Li e Cleo, como investigadoras de polícia.

A parceria com o marido é algo que realiza muito Lucy. Antes de O Segundo Homem, ele a dirigiu nos longas Fica Mais Escuro Antes do Amanhecer e Um Dia de Ontem, no curta Inocente, e em alguns clipes. No mais recente projeto, realizado pela Luc Filmes, produtora do casal, além de protagonizar, Lucy assina também a produção.

Lucy interpreta a professora Solange e a questão da violência é mostrada através de sua personagem. Ela se muda para o município de Sumaré, após um trauma. Atingida por uma bala durante um assalto em São Paulo, a personagem, assustada, busca uma vida melhor e vai ministrar aula de Educação Moral e Cívica.

“Ela se depara com crianças sem muita perspectiva de futuro e que muitos não dão espaço para que tenham liberdade de pensamento. Tiram a cultura, para doutrinar o que pode ou não fazer, então, o filme mostra várias questões, desde as armas até essa doutrinação que minha personagem é contra, passando também pela decisão de Miro, marido de Solange, vivido por Anderson di Rizzi, de proteger sua família se alistando na Legião Estrangeira, que chega em missão ao Brasil para ajudar as forças de segurança do país, e acaba levando a  guerra para dentro de casa”, conta a atriz.

"Se estou ali interpretando uma protagonista, as outras pessoas também podem chegar nesse lugar", aponta Lucy (Foto: Priscila Nicheli)

“Se estou ali interpretando uma protagonista, as outras pessoas também podem chegar nesse lugar”, aponta Lucy (Foto: Diego Serres)

Lucy se identifica com a garra de sua personagem. “De certa maneira, a gente empresta um pouco das nossas características. Depois do assalto, Solange ficou com estresse pós-traumático. Mesmo diante da fragilidade, acha força para continuar, ser um ponto positivo na família, já que o marido está desempregado, frágil. Quer dizer: ela tenta se segurar dentro da fragilidade. Tenho muito disso, de enxergar as situações adversas de forma positiva e ver de que maneira posso seguir e fazer o melhor. A ideia que me permeia muito é a de que devemos seguir sempre de cabeça erguida”, afirma. Em sua batalha pela carreira, por exemplo, conviveu com as dificuldades que ocorrem com todos os atores negros por conta do racismo estrutural que existe no Brasil. Inúmeras vezes citou a importância de artistas como Ruth de Souza (1921-2019) e Zezé Motta que ajudaram a abrir caminhos. E é de forma positiva que Lucy avalia a própria trajetória: “Vendo de onde saí até onde estou nesse momento, foram muitas conquistas, graças a Deus. Com trabalho, dedicação, focada o tempo inteiro nos objetivos sabendo que preciso correr atrás muito mais. Tenho consciência de que estou nos meus melhores momentos”.

E prossegue em sua análise: “Tenho muito ainda para fazer e conquistar. Mas, hoje, consigo dizer ‘não’ para determinados projetos que não me atraem, que não me fazem crescer, nem estimulam outras pessoas. Estou em busca de personagens que me desafiem. Quero na minha carreira projetos como O Segundo Homem, que me dá espaço para o meu maior potencial como atriz. Que todos vejam que é possível. Se estou ali interpretando uma protagonista, as outras pessoas também podem chegar nesse lugar. E, nessa caminhada, vamos desenvolvendo nossos projetos. Talvez somente através deles a gente consiga quebrar as barreiras de forma concreta”, avalia.

“Hoje, consigo dizer não para determinados projetos que não me atraem, que não me fazem crescer, nem estimulam outras pessoas. Estou em busca de personagens que me desafiem", frisa Lucy (Foto: Priscila Nicheli)

“Hoje, consigo dizer não para determinados projetos que não me atraem, que não me fazem crescer, nem estimulam outras pessoas. Estou em busca de personagens que me desafiem”, frisa Lucy (Foto: Diego Serres)

“O nosso espaço tem evoluído. Mas, realmente, hoje, são alguns atores que como eu, conseguem dizer ‘não’, para que possam realmente contar uma história e não estar nela somente para cumprir uma cota. Muitas obras ainda não conseguem enxergar os atores pretos em posições importantes dentro daquela história. Então, é uma luta, porque muitos colegas não podem dizer ‘não’, porque precisam trabalhar”, observa.

E Lucy Ramos fala dos prazeres da vida e também de momentos ainda preconceituosos da nossa sociedade. “De certa maneira tenho o privilégio. Mas vez ou outra, penso ‘hum’. Sou simples. Pra mim, existe a Lucy Ramos, personalidade, atriz, famosa, e a Lucilene Ramos, mulher simples, nordestina (ela é pernambucana), que faxina, cuida da casa, fala com todos de igual para igual, coloca a mão na massa e faz tudo acontecer, inclusive, para a Lucy estar bem ali mostrando tudo. Outro dia, fui a um hotel chique, em São Paulo, fazer fotos. Estava tudo reservado. Cheguei desmontada e o rapaz (branco, jovem) da recepção foi completamente desagradável. Tive que situá-lo. Ele não falou nada agressivo, mas me julgou pela capa, entende, é isso que acontece. Pela forma como trata, a gente percebe”, comenta.

Lucy interpreta uma professora no filme O Segundo Homem, que aborda temas como a liberação do porte de armas (Foto: Divulgação)

Lucy interpreta uma professora no filme O Segundo Homem, que aborda temas como a liberação do porte de armas (Foto: Divulgação)

O percurso natural seria participar de festivais, estrear no cinema e depois ir para o streaming. “A gente fez esse filme independente, de baixo orçamento e diante de todas as situações, a Disney comprou e nos possibilitou finalizá-lo. Estar no streaming nesse momento é a melhor opção, porque muita gente ainda não está indo aos cinemas”, diz sobre o longa rodado em dezembro de 2019. No mês anterior, ela havia encerrado a novela A Dona do Pedaço, seu mais recente trabalho como atriz na TV, onde também interpretou uma professora. Em março, do ano seguinte, veio a pandemia, o isolamento social, e o casal viveu momentos de reflexão em uma casa que possui no meio do mato, no interior de São Paulo.

“Ficamos bem escondidinhos. Conseguimos ter esse privilégio. E não tivemos Covid. Ainda, hoje, nos mantemos nesse cuidado, tentando ao máximo não aglomerar”, explica. Exceções foram abertas para o Dança dos Famosos 2020, quando foi campeã da edição, e o Super Dança dos Famosos, ano passado.

Lucy Ramos e o marido, Thiago Luciano (Foto: Reprodução Instagram)

Na parceria profissional, Lucy e Thiago separam bem a relação diretor/ atriz e a de marido/mulher. “Já chegamos em um lugar bem agradável. Claro que nem sempre foi assim. Teve um amadurecimento de ambas as partes. Estamos juntos há 15 anos, já entendemos até onde cada um vai para não invadir o espaço do outro, entender que no set ele é o diretor e, eu, a atriz. Então, tenho que respeitar. Tenho muitas ideias e ele é aberto para ouvir opiniões. Entendo se por acaso ele não absorver tudo que eu falo, afinal a criação é dele. Tenho muita admiração e orgulho do Thiago”, assegura e acrescenta que eles vêm recebendo críticas positivas sobre O Segundo Homem.

Os dois estão juntos há 15 anos, ela já expressou o desejo de ser mãe, mas o tempo todo as pessoas fazem a célebre pergunta: ‘quando terão filhos?’. “Existe sempre essa pergunta e cobrança do público e da família. Se rolar vai ser maravilhoso. Se não acontecer também vai ser, porque somos muito felizes juntos, a gente se completa. Não existe a obrigação tipo ‘tem que ter’. O importante é a felicidade e estarmos completos e na mesma sintonia”, reflete, acrescentando: “Nunca parei para ficar pensando na questão de idade. É muito do externo que vem essa cobrança. Até mesmo um ginecologista que eu fui, falou: ‘A idade está chegando, vamos já pensar em fazer, porque depois fica mais difícil’. Eu amo a possibilidade de adotar. Sei de tantas crianças que estão aí até mais crescidinhas precisando apenas de um lar, de carinho, amor”, reflete ela.

“Nunca fui para aquele lugar de idealizar, achar que o corpo de tal mulher é o mais lindo e o meu não. Meu corpo é esse e eu preciso entender o que é melhor para ele relacionado à saúde”, frisa Lucy (Foto: Rildo Cundiev)

Sobre a ditadura dos corpos e da beleza, que ainda é latente, a atriz comenta: “Sou muito tranquila relacionada a isso. Tem a questão de você estar bem ou não, de acordo com a sua necessidade, com o seu corpo, seu físico. Nunca fui para aquele lugar de idealizar, achar que o corpo de tal mulher é o mais lindo e o meu não. Eu sei os meus limites, sei que não vou chegar ao que aquela pessoa tem ou deixa de ter. O meu corpo é esse e eu preciso entender o que é melhor para ele relacionado à saúde e esteticamente também, até porque ele é o meu instrumento de trabalho. Então, preciso que ele esteja bem para que eu consiga usá-lo da melhor forma possível”, explica.