Luciana Souza: após ‘Bacurau’, atriz protagoniza ‘Inabitável’, curta LGBTQIA+ que representará Brasil em Sundance


A atriz, que divide o set de filmagens com as salas de aula em Salvador, onde é professora, comenta que o filme apresenta um retrato de um país marcado pela violência e intolerância religiosa alimentando o preconceito social e sexual. Exibido em 18 festivais no segundo semestre de 2020, incluindo o 48º Festival Gramado – onde conquistou os troféus de Melhor Filme pelo Júri da Crítica, Roteiro, Atriz e Prêmio Canal Brasil de Curtas, “Inabitável” foi um dos curta-metragens mais premiado de 2020

*Por Brunna Condini

Luciana Souza, que fez tão bonito em sua participação no premiado longa-metragem “Bacurau“, não dissocia seu trabalho de posicionamentos político e social. É uma opção consciente da atriz baiana. E, agora, ela mais uma vez traz para a roda um tema contemporâneo e que pede visibilidade, através de um trabalho com sua chancela. É protagonista de “Inabitável”, dirigido por Matheus Farias e Enock Carvalho, único curta-metragem selecionado para representar o Brasil na Mostra Competitiva do Festival de Sundance, entre os dias 28 de janeiro e 3 de fevereiro, em formato híbrido: presencial e online. “O Sundance, como maior evento do cinema independente mundial, se debruça sobre questões emergentes que representam pautas de diversos povos. E ‘Inabitável’ traz na sua temática (LGBTQIA+) denúncia de segmentos sociais que vivem desassistidos e também invisíveis. Acredito que é um filme que reúne vozes que clamam pela vida”, frisa.

Inabitável” foi exibido em 18 festivais no segundo semestre de 2020, incluindo o 48º Festival Gramado – onde conquistou os troféus de Melhor Filme pelo Júri da Crítica, Roteiro, Atriz e Prêmio Canal Brasil de Curtas. É a produção brasileira em curta-metragem mais incensada do ano com 12 prêmios.  A atriz afirma que expressar o que sente e pensa sob o ponto de vista político e social “é um curso que segue um fluxo da minha trajetória. Mostro minhas referências familiares, militância social, os grupos artísticos e culturais dos quais venho participando, e também, a minha atuação como professora. Tudo isso vai norteando estar em trabalhos que tenham esse tipo de discussão”. Luciana fez a gente bater palmas por suas atuações em ‘Ó Pai Ó (2007)’, ‘Flores Raras‘ (2013) e, mais recentemente, ‘Bacurau‘ (2019).

Luciana Souza em ‘Inabitável’: “O filme traz na sua temática seguimentos sociais que vivem desassistidos e também invizibilizados” (Foto: Gustavo Pessoa)

O curta pernambucano premiou a atriz no Festival de Gramado e no Festival Mix Brasil. A história  vem conquistando e comovendo a audiência, por meio de uma narrativa fantástica, que retrata de forma poética a violência rotineira do país que mais mata a população LGBTQIA+ no país. “E o fato de estar sendo premiado em festivais tão conceituados aqui no Brasil também ratifica ainda mais a necessidade de ampliar o debate sobre assuntos que dizem respeito à nossa realidade social e existencial”, observa Luciana, que vive uma mãe que, pouco antes da pandemia, procura por sua filha Roberta, uma mulher trans que está desaparecida depois de não retornar de uma festa.

Sophia William vive a amiga da trans Roberta filha de Marilene interpretada por Luciana” (Foto: Gustavo Pessoa)

“A Marilene representa não só a dor das mães que não sabem se seus filhos e filhas trans vão voltar para casa quando saem, mas também a dor e indignação das pessoas que se sensibilizam com a preservação da vida. Seja ela como for. Na construção da personagem, ao pesquisar sobre mães nesta condição, pude constatar a existência de muitos grupos, especialmente de mulheres, que lutam por justiça e sofreram muitas perdas humanas. Sejam de pessoas próximas a elas ou não. Da mesma forma que acho que existe um descaso social há também grupos organizados, muitas frentes que se importam e defendem vidas. Sejam em relação a gênero, etnia, orientação sexual, religiosidade, classe social e tantas outras chamadas minorias”.

Arte como vida

Luciana acredita que o papel do cinema, das artes em geral, se amplia com o cenário do mundo antes, durante e pós-pandemia. “Um filme tem o poder de causar infinitas sensações e reflexões. Mas, quando penso em ‘Inabitável’ fico elaborando na mente muito sobre o lugar que vivemos, que, por muitas vezes, nos parece realmente inabitável. Como se não nos comportasse, não fosse um lugar de pertencimento, pela existência de tamanhas desigualdades, intolerância e ódio”, observa. “Logo que o filme estreou em festivais, eu recebi a ligação de um amigo, na qual ele dizia que muitas vezes se sentia assim, como se não pertencesse a esse lugar. E acho que isso se estende a muita gente, em várias classes sociais. Se estende a esse sentimento, principalmente relacionado à questão da orientação sexual ou étnica. E esse modo de sentir-se não pertencente ao ambiente, espaço, ao lugar em que se vive é muito grave”.

“Os que lutam por amenizar desigualdades devem encontrar nas artes caminhos para que possam enobrecer a vida das pessoas” (Foto: Gustavo Pessoa)

Segundo Luciana,  “a arte sempre foi um lugar de expressão, alimento essencial à vida e à sua evolução. Embora exista um conceito distrativo sobre ela, a história constata isso. A arte é muito consumida e faz parte da vida.  Penso também , que o avanço tecnológico permitiu um maior acesso às artes e um crescente alcance nas camadas sociais mais populares. Principalmente através do cinema. É preciso tirar partido disso para falarmos cada vez mais sobre inclusão e valorização de modos de vida. Os que lutam por amenizar desigualdades devem encontrar nas artes caminhos para que possam enobrecer a vida das pessoas. Fazer arte, cinema, cultura, pelo menos no cinema que eu tenho me envolvido, vai muito de encontro a despertar, conscientizar a vida das pessoas”.

O filme apresenta um retrato de um país marcado pela violência e intolerância religiosa alimentando o preconceito social e sexual. Que políticas e medidas são urgentes para fazer cessar essa violência contra o público LGBTQIA+? “Não consigo ver soluções fora da educação. É preciso abrir debates sobre esse assunto. É importante a ocupação de cargos políticos por grupos que realmente estejam comprometidos com causas desta natureza. É urgente uma reeducação em todos os setores. Não só denúncia, mas estar constantemente avaliando nossa conduta diante do diferente ou daquilo que nos parece diferente. Estarmos nesse estado de alerta diante daquilo que nos incomoda é necessário”.

Fome de viver

Aos 58 anos, Luciana começou sua trajetória artística ainda na infância, fazendo teatro na escola. Licenciada em Filosofia e Dança, ela também tem especialização em Projetos Culturais Comunitários de Matriz Africana pela Universidade do Estado da Bahia. Além de ser Diretora artística e coordenadora da EnCompanhia de Interesse Popular, grupo de arte, educação e cultura que pesquisa as manifestações afro brasileiras, dialogando e encenando a diversidade das expressões culturais e tradicionais. A atriz não para de estudar e fazer o universo ao seu redor se utilizar também do saber. “Artistas e professores neste país resistem com fé e luta. Não desisto de acreditar em uma revolução que se constrói no dia a dia, ali na relação com os estudantes, com as pessoas, apesar de estarmos em um momento fora da sala de aula por conta da pandemia. Tenho consciência do trabalho que os profissionais da educação comprometidos vêm fazendo, apesar de todo ataque e desmantelamento. Acho que nem tudo está perdido. Artistas nas escolas são um grande diferencial na educação. Eu sou testemunha disso, já que também estou na sala de aula”, analisa. “São 35 anos de atuação no teatro, que me levou a atuar no cinema, com algumas atuações na TV. O teatro me levou a aprender e estar em muitas funções. Me ajudou a construir uma identidade e é o que eu mais faço na vida: teatro. O cinema dimensionou meu trabalho de atriz, estimulou minha curiosidade e vem abrindo portas para o mundo, também estou gostando disso. De ser personagem do mundo e de contar histórias para o mundo”.

“Bacurau revela muitas camadas que podem estar em vários lugares do mundo e traz aspectos doentios da nossa sociedade, mas também evidencia o poder de uma comunidade organizada” (Foto: Gustavo Pessoa)

Sobre o já icônico ‘Bacurau‘, de Kleber Mendonça Filho, a baiana considera um marco em sua trajetória. “Acho que não só para mim, mas para todos os envolvidos no filme representou um upgrade. É um longa que circula no mundo, premiadíssimo, reúne gente de várias partes, trata de assuntos que dialogam o tempo todo com a nossa realidade. É importante para o artista fazer parte de produções que representem a qualidade artística, técnica, mas também um posicionamento político. Tanto que já escutei muitos artistas dizendo que gostariam de ter feito parte da produção. A gente tira onda”, diz, aos risos. “O filme revela muitas camadas que podem estar em vários lugares do mundo e traz aspectos doentios da nossa sociedade, mas também evidencia o poder de uma comunidade organizada. Acho que esse é um elemento de transformação que pode servir de exemplo para o mundo”.

O orgulho por seu caminho até aqui, o engajamento por temas que povoam muitos de seus trabalhos, não excluem na lista de sonhos da atriz, novas provocações artísticas. Que tipo de papel nunca te chamaram e gostaria de fazer? “Boa pergunta. Quero fazer personagens que me deem mais desafios, quero saber de outros modos de vida. Penso em fazer uma advogada poderosa, por exemplo. Isso me estimula muito. Quem sabe personagens também falando em outras línguas? Que venham trabalhos desafiadores”, torce.

‘Penso muito em fazer uma advogada poderosa, por exemplo. Isso me estimula muito” (Reprodução Facebook)