Entre experiência como candidata e lançamento de biografia, Lucélia Santos reclama direitos conexos no streaming


No ano no qual celebra os 50 anos de carreira, Lucélia Santos alçou novos voos. Não apenas estreou uma peça de teatro na qual relata a sua experiência com o seringueiro e ativista ambiental Chico Mendes (1944-1988), como lançou-se candidata à deputada federal pelo (PSB). Ainda que a atriz sempre fosse envolvida com a política e uma voz ativa na questão ambiental, esta foi a primeira vez que a atriz colocou-se na fábrica política, mas não foi eleita. A atriz faz levantamento de pontos e personagens importantes de sua cinquentenária carreira – como a vez em que interpretara uma Pombagira na novela “Carmem”, da Manchete, e protagonizou um nu frontal, além destacar qual foi o trabalho mais desafortunado que fizera na TV

*Por Vítor Antunes

Dona de inúmeros sucessos da televisão, e, atualmente, com quatro novelas na plataforma Globoplay, Lucélia Santos diz não rever seus trabalhos que compõem o catálogo do player – pelos quais, inclusive, diz não estar recebendo – além de afirmar não mais ver televisão. Sempre engajada por questões humanitárias e sociológicas, a atriz de 65 anos optou, no ano que celebra o seu cinquentenário profissional, migrar para a política oficial candidatando-se a deputada federal. Os 10.867 votos que recebera não foram suficientes para levá-la ao Congresso. Sobre o campo político, atriz também detalha a sua atual relação com o Partido Verde (PV), que ajudara a fundar, mas que hoje não a representa mais ideologicamente “O PV é um partido de direita”. Além da seara política, a intérprete de “Escrava Isaura”, faz um levantamento sobre seus trabalhos, destacando que “Carmem” (1987) foi o que mais exigiu energia de si. À trama de Glória Perez costuma ser atribuído o primeiro nu frontal na TV, feito justamente pela atriz, que conta que seu projeto mais desafortunado em televisão fora “Donas de Casa Desesperadas” (2007). Além disto, revela que depois de gravar a novela “Na Corda Bamba“, pelo canal português TVI, não mais voltou àquele país e, desde então, não vê sua neta, Carolina, que lá reside.

Lucélia Santos fala sobre sua primeira experiência eleitoral e o ano em que celebra os seus 50 anos de carreira (Foto: Rafael Marques)

CORAGEM PARA LUTAR

Lucélia Santos iniciou sua carreira em 1972, explodiu em repercussão em 1976 e teve seus maiores sucessos na TV durante os anos de Ditadura Militar. Isaura, escrava de sucesso inconteste e mundial, associou o rosto da atriz à ideia de insubmissão e resistência e fez nascer outras “Isauras” em várias partes do mundo. Viveu a abertura política tanto no Brasil como na China. Nesta última, recebeu 300 milhões de votos populares que a fizeram ser eleita Melhor Atriz no prêmio Águia de Ouro, em 1985. Primeira vez em que uma pessoa ocidental recebeu tal distinção. Porém, os expressivos votos que recebeu naquele país na década de 1980 não se refletiram nas urnas brasileiras na última eleição. Lucélia recebeu um pouco mais de 10.000 votos – 10.867 – o que não permitiu sua chegada ao Congresso.

A primeira investida oficial da atriz na política se deu em um ano de eleições polarizadas e ferinas. Ainda que não tenha sido eleita, a atriz avalia como positiva a sua experiência no pleito eleitoral. Não sabe dizer se tornaria a sair candidata, mas, ainda assim, nega-se a deixar o ativismo – quer político, quer socioambiental: “Avalio que foi uma experiência muito importante na minha vida. Muito diferente de tudo que eu já vivi até aqui, ainda que eu tenha militado ativamente há muitas décadas, mas nunca como candidata. Creio ter sido uma experiência super válida e eu aprendi muito nessa campanha. Estou saindo doutorada em política. Não foi nada fácil, mas eu gostei de ter participado e de ter aprendido”, analisa.

Quanto a uma nova candidatura, não consigo avaliar isso ainda. Acho que está muito cedo. O que eu já consegui avaliar é que eu vou continuar fazendo o meu trabalho socioambiental e político de maneira mais forte agora. Tenho um eleitorado cativado e uma agenda prevista, nacional, para o meu ativismo na questão ambiental” – Lucélia Santos

Chama a atenção a escolha partidária da atriz, que candidatou-se pelo PSB, ainda que tenha sido fundadora e estado na primeira hora de nascimento do Partido Verde (PV), em 1986. A escolha foi justificada por uma mudança do espectro ideológico do partido: “O PV despencou muito pra direita. Quando ele foi fundado era um partido extremamente progressista, com uma visão muito avançada em questões que acabaram ao longo dos anos se consolidando – como a luta pelas liberdades de comportamento e ação e direitos civis, e das plataformas feministas. Era altamente moderno, progressista, de centro-esquerda. Porém, foi voltando-se à direita, onde se encontra hoje. Eu não tenho mais alinhamento ideológico com o PV, prefiro uma linha de pensamento mais socialista. E isso foi o que me aproximou do PSB, inicialmente. Além deste motivo, o PSB me ofereceria um maior tempo de exposição na TV”, argumenta.

Lucélia Santos foi uma das fundadoras do Partido Verde, em 1986, e hoje é afiliada ao PSB (Foto: Arquivo Lucélia Santos/Acervo Aladim Miguel)

Pouco antes de entrar em campanha, Lucélia estava em cartaz com a peça “Vozes da Floresta”, que marcava as celebrações não apenas do seu cinquentenário de carreira, mas também da sua relação com o sindicalista e seringueiro Chico Mendes (1944-1988). Tanto que a montagem lança mão de falas exclusivas do próprio Chico gravadas pela atriz numa fita cassete pouco antes do assassinato dele, em Xapuri (AC). A artista pretende “voltar imediatamente com a peça. Já estamos tomando as providências pra que isso aconteça ainda nesse final de ano, se tudo der certo”. Além desta encenação teatral, a Lucélia Santos promete para breve o lançamento de sua fotobiografia, escrita por Eduardo Meirelles e batizada “Lucélia Santos – Coragem Para Lutar”, também como forma de celebrar sua provecta carreira: “Temos apenas mais um trimestre [neste ano]. Quero dar andamento para a edição e lançamento da minha fotobiografia. Minha ideia era fazer um livro com as fotos dos meus personagens no cinema, na televisão e no teatro. Um livro com pouco texto e muita foto. Então, eu acho que eu vou botar um pouco de energia e tentar, ainda neste ano, lançar o foto-book”.

Lucélia Santos em “Vozes da Floresta” (Foto: Christyann Ritse/Divulgação)

ÍMPETO

Enquanto esta reportagem era produzida, dois trabalhos de Lucélia Santos aniversariaram. Um deles, a clássica “Escrava Isaura“, que estreou em 11 de outubro de 1976. Outro trabalho que também passa por importante efeméride é “Carmem”, da Manchete, cuja estreia aconteceu em 5 de outubro de 1987. Esta última foi um escandaloso sucesso no Rio de Janeiro e por diversas vezes teve índices muito próximos aos da Globo, imbatível naqueles idos. O folhetim também marca a estreia de Gloria Perez como autora titular solo de uma novela e ousou ao trazer como protagonista uma mulher que incorporava a Pombagira – efusiva e impetuosa entidade dos cultos de matriz afro-brasileira. Na trama, Neuza Borges vivia a Pombagira propriamente dita e Lucélia, Carmem, a mulher que a incorporava.

Num tempo de grande conservadorismo e de um forte discurso religioso em todas as esferas, haveria a possibilidade de ser exibida uma novela que, além do forte teor erótico, tivesse como protagonista uma Pombagira? Lucélia diz acreditar “que a novela causaria um grande impacto novamente, como causou na época em que foi exibida, acredito que seria extremamente necessário que as pessoas entrassem em contato com outras matrizes religiosas – nesse caso uma religião de matriz africana –, porque eu acho que essa unidirecionalidade conservadora, religiosa, não é saudável”.

Acho que todas as religiões têm que ser respeitadas, têm de ter seu próprio espaço e sua liberdade de concepção, atuação e prática. Ninguém pode reprimir ninguém. Então eu acharia muito saudável que voltasse a Pombagira para as pessoas poderem assistir – Lucélia Santos

Entre 1987 e 1988, Lucélia Santos foi Carmem, na novela homônima da Manchete (Foto: Divulgação/TV Manchete)

Na primeira novela solo de Glória Perez, Lucélia Santos viveu o desafio de ser uma Pombagira: “Fui corajosa” (Foto: Divulgação/TV Manchete)

Ainda sobre a polêmica novela da Manchete, Lucélia diz que “foi uma personagem que me demandou, de fato, muita energia. Eu avalio que fui muito corajosa [por havê-la feito]”. Efetivamente, “Carmem” foi arrojada para os padrões da época. Tanto que se atribui a ela o primeiro nu frontal feminino na história da teledramaturgia brasileira. Na época ainda existia censura e o capítulo no qual Carmem ficava nua – o oitavo – foi exibido na TV sem a apreciação da Censura, o que exigiu à TV Manchete o envio de um ofício ao censor, Dr. Mesquita, retratando-se pela exibição da nudez da protagonista. Conforme ofício em anexo, pesquisado para esta reportagem, Ernani Ferreira, representante da extinta TV, atribuiu a exibição do capítulo em discordância àquele apresentado à Censura a uma sabotagem, pois que, naquele tempo, os atores e técnicos estavam em greve. Importante ressaltar que, em 1987, o Sindicato dos Radialistas entrou em greve e isso afetou a todas as emissoras, indistintamente. Tanto que, sem ter o que exibir às 18h após o fim de Sinhá Moça, a Globo recorreu a uma reprise de “Locomotivas”, de dez anos antes.

Trecho do ofício da Rede Manchete enviado ao censor, Dr. Mesquita, sobre a exibição da nudez de Carmem/Lucélia Santos, no capítulo 8 da trama (Foto: Arquivo Nacional/Pesquisa: Vítor Antunes)

A contrário de “Carmem”, que dificilmente voltará ao ar, em razão da falência de sua emissora, outros folhetins protagonizados pela atriz estão no catálogo da Globoplay – “Vereda Tropical”, “Sinhá Moça”, “Guerra dos Sexos” e “Na Corda Bamba”. Lucélia Santos diz não ver “nenhuma das novelas minhas que estão em retransmissão no Globoplay. Inclusive não tenho televisão em casa, comprei uma apenas para acompanhar a apuração [do segundo turno das eleições] agora dia 30 de outubro”. Contudo, a atriz destaca uma queixa importante no que tange tanto à entrada de novelas no catálogo do streaming quanto a algumas reexibições das novelas:

Eu acho deplorável que não paguem os direitos autorais e conexos bem como os de reexibição aos atores” – Lucélia Santos.

Lucélia Santos é “Sinhá Moça” na primeira versão da novela, de 1986. Trama está no streaming “Não pagam direitos autorais e conexos” (Foto: Nelson di Rago/ TV Globo)

A atriz prossegue em sua observação “A teledramaturgia brasileira sempre foi muito boa. E eu acho que isso migrou, sim, para o streaming e agora deverá ser compartilhado. Eu acho que as novelas e as séries são dois formatos e ambos são interessantes sobre como se contar histórias e os dramaturgos e dramaturgas brasileiras são muito bons nisso. (…) A única questão que tem que ser discutida pela classe como um todo diz respeito à regulamentação do streaming, por que ele vem com contratos leoninos e estruturais que continuam acachapando os criadores dos autores até os intérpretes na questão dos direitos autorais”.

Ainda no que tange às questões modernamente discutidas na classe artística, como a migração de instagrammers/influencers “transformados” em atores, Lucélia é assertiva: “Com relação aos atores serem escolhidos para viver personagens a partir do número de seguidores que tem nas redes sociais (…), eu acho que não tem nada a ver uma coisa com a outra. Ninguém vira ator por que deseja ser ator. Ainda continuo acreditando no velho e bom [teórico de teatro] Stanislawski (1863-1938) que diz é necessário ter vocação e uma enorme determinação técnica de praticar uma profissão”. Para exemplificar sua afirmação, a atriz lança mão de um de seus professores, Eugênio Kusnet (1898–1975). “Ele dizia ter uma tia que chorava com muita facilidade, mas que isso não a habilitava a ser uma atriz. Ou seja, ator não é quem resolve ser ator”.

O fato de uma pessoa ter milhões de seguidores não a indica com qualidades para representar personagens. Isso é um trabalho, um ofício, uma profissão que exige técnica, aprendizagem, performance e muita dedicação. Então, é assim que eu vejo. Eu, na verdade, não conheço nenhum ator que tenha vindo de uma escolha com esses critérios” – Lucélia Santos

Ainda que tenha uma carreira marcada com vários sucessos e experiências bem sucedidas na carreira, alguns trabalhos – como são comuns na profissão de ator – não são tão afortunados. Lucélia, por exemplo, trabalhou em “Brasileiras e Brasileiros“, no SBT, e em “Dona Anja“, também naquela casa, e a produção destas novelas passou por alguns dissabores. Perguntamos à atriz qual trabalho qual trabalho de sua carreira em televisão que ela considera menos afortunado e ela disse ser “Donas de casa Desesperadas”: “Apesar de ser uma produção muito competente do ponto de vista profissional e técnico, pois que era toda feita por profissionais argentinos de excelência, eu considero aquilo uma coisa esquisita, porque era um padrão internacional da Disney que era repetido desde as marcas no chão rigorosamente executadas em todas as versões ou seja era o padrão de “Donas de Casa Desesperadas” que toda América Latina comprou da Disney. Então, se algum país latino fizesse o formato, a gente tinha que seguir rigorosamente as marcas [cênicas], as mesmas roupas que os outros atores tinham usado e era necessário caber no meu corpo ou então eles davam lá um jeito e tudo realmente idêntico. Então, isso tirava, a meu ver, qualquer possibilidade de criativa de interpretação”, pondera.

O elenco estelar de “Donas de Casa Desesperadas”, exibida em 2007 (Foto: Divulgação/Rede TV!)

“VOVÓ LULU” E O FUTURO

Quando estava grávida de seu filho único, o ator e roteirista Pedro Henrique Neschling, Lucélia dizia, quando ainda não sabia o sexo do bebê, que ele poderia chamar-se Clara, se menina fosse. Por fim, Clara não veio enquanto filha, mas como personagem. Em algumas ocasiões a atriz chamou-se assim, profissionalmente. A presença de uma garotinha deu-se em 2017 quando nasceu Carolina, filha de Pedro. Deste modo, perguntamos como é a vovó Lucélia. A atriz mudou a respiração e após uma longa pausa disse: “Olha, eu vou te falar com muita tristeza que eu nem tenho praticado muito a minha atividade de avó, porque a minha neta continua morando em Portugal com a mãe dela e, infelizmente, tem três anos que eu não a vejo e sofro muito com isso, já que sou muito apegada a ela. O mais maravilhoso que aconteceu foi em 2019, quando eu gravei “Na Corda Bamba” em Portugal, período em que pude conviver mais com ela, brincar diariamente, ter uma rotina afetiva e familiar com Carolina e eu não tenho tido isso, o que me faz muita falta”, lamenta.

Amor em dose dupla: Pedro Henrique Neschling e Carolina. Duas gerações de afeto (Foto: Reprodução/Instagram)

Contextualizando com um trabalho feito por Lucélia, uma cantiga de umbanda diz: “A carruagem quebrou na estrada, mas Pombagira é abusada e veio a pé”. Ou seja, quando pensaram que ela não chegaria, ela já havia chegado. Lucélia Santos é essa força. Esse ímpeto. Vai ser sempre assim. Os olhos azuis de Carolina haverão de saber para sempre que mais que 40 anos antes de ela nascer, a “vovó Lulu” foi uma escrava que lutou para ser livre, uma sinhazinha que desafiou o pai repressor, uma Pombagira que ousou apaixonar-se. E sobretudo foi uma mulher de luta imparável e incessante. Não pergunte como, se de carruagem ou a pé. Lucélia Santos sempre chega onde quer.