*Por Brunna Condini
O longa ‘Tia Virgínia’, de Fabio Meira que estreia em 9 de novembro, não é exatamente sobre a Virgínia do título, vivida de forma comovente por Vera Holtz. E nem tão pouco somente sobre a relação dela com suas irmãs Vanda (Arlete Salles) e Valquíria, interpretada por uma Louise Cardoso em sua plenitude, com ambiguidades humanas à flor da pele. Ou melhor, à flor da tela. ‘Tia Virgínia’ é delicado e potente ao colocar no centro do enredo as relações familiares que se misturam em afeto e dor, entre boas lembranças e mágoas. É cinema dos bons, com um roteiro emocionante, coisa que cativa imediatamente Louise para dentro de qualquer projeto, de baixo orçamento (no caso deste filme) ou grande. Mesmo após tantos anos de ofício, a atriz não permite se perder do que realmente importa: contar boas histórias. “Vivo para trabalhar, é a minha grande paixão. Meus casamentos deram certo até certo ponto, porque os ex-maridos diziam: “Você não é casada comigo, é com seu trabalho” (risos). Já ouvi isso algumas vezes e resolvi aceitar. Agora não sou casada mesmo com ninguém, só com o trabalho, adoro. Mas isso não quer dizer que eu não namore”, diverte-se Louise, que prefere não dividir a intimidade do ‘com quem’ costuma dar uma namorada.
“Amo meu ofício e o que me leva pra dentro de um projeto é meio óbvio, são bons roteiros. Também quem vai dirigir e com quem vou trabalhar. Como dizia a Leila Diniz (1945-1972): “Pra mim o mais importante é a patota” (risos). Na verdade eu não acho que o mais importante é a ‘patota’, mas é tão importante quanto todo o resto. É o astral do trabalho. Quando soube que ia trabalhar com a Vera e Arlete, nem pensei duas vezes. Além de ter adorado a história. Quem me chamou para o filme foi a Janaina Diniz (produtora do longa), filha da Leila, que conheci aos 13 anos, quando fui fazer o filme ‘Leila Diniz’ (1987). Ficamos amigas”.
Trabalho como força motriz em resposta ao etarismo
Aos 68 anos, sentindo-se no auge da sua potência, ela evidencia o quanto a maturidade e a experiência servem com grandeza à dramaturgia. “Esse etarismo existe, claro, mas posso dizer que ele ainda não me atingiu. Sou uma atriz camaleônica, me movo em direção aos personagens e projetos também, me adapto bem às diferentes personagens. No teatro, os melhores papeis são para mulheres mais velhas. Eu produzo minhas peças desde 1990 e estou sempre de olho nisso. Inclusive, produzi recentemente o espetáculo ‘Os Bolsos Cheios de Pão’, criado a partir de duas peças curtas de Matéi Visniec, dirigido pelo Fernando Philbert, em que estou em cena com o Luiz Octavio Moraes, e como não rodamos o Brasil ainda, estou na dúvida se sigo com ela daqui por diante ou se faço um outro espetáculo, porque tenho lido tanta coisa com personagem bons para a minha idade, que dá vontade. Quero fazer Tennessee Williams, ‘Um bonde chamado desejo’, fiz no passado a Stella, agora que fazer a Blanche”, conta.
“O cinema também tem me oferecido bons personagens. Acabei de fazer ‘Clube das mulheres de negócios’, da Anna Muylaert, um filme que coloca as mulheres no lugar de poder, questiona o machismo. E no streaming, vou fazer um excelente personagem agora, ainda não posso falar nada, é uma série para o Globoplay. Quando sai da Globo (em 2018) após 40 anos lá, e quero deixar claro que foi numa ótima, de comum acordo, com portas abertas; já fiz sete filmes, peças, séries. Tenho tido e busco boas oportunidades de trabalho, coisas que me falem alto e isso tem acontecido exatamente assim”, pontua Louise, que está nos cinemas também com ‘Pérola’ e na série ‘B.O.’, da Netflix.
Os rumos do humor
Louise fez história no humor brasileiro com o extinto TV Pirata, há 35 anos. No humorístico dirigido por Guel Arraes (com quem ela foi casada), a atriz somava seu talento a um elenco de peso formado por Claudia Raia, Diogo Vilela, Marco Nanini, Ney Latorraca, Regina Casé, Luiz Fernando Guimarães, entre muitos outros. Uma das suas personagens preferidas era Clotilde, esposa do Barbosa, inesquecível personagem de Latorraca. A atração icônica partia do pretexto da sátira da televisão para falar da realidade do país, sem limites e sem censura. Como seria o TV Pirata hoje? “Não seria (risos). Há uns anos a Globo falou conosco sobre a intenção de fazer um retorno do programa. Na ocasião eu disse que não achava que seria boa. Claro que se todo mundo topasse, eu não iria furar, embarcaria, mas não via muito como ser bacana, por conta do politicamente incorreto, claro. Era um programa que só foi o que foi, porque não aceitava ser censurado. Exercíamos olhar para tudo com o ridículo, sem medo. O Claudio Paiva (ex-redator-chefe do humorístico) falava pra gente no programa: “Humor não tem censura”. Passei pela ditadura militar, então senti o que é censura na pele”, analisa.
Já tive peça censurada no dia da estreia. já ensaiei espetáculo durante nove meses e nunca aconteceu por ter sido censurado. Passei por isso tudo, então não suporto este tipo de coisa. O que achao é que o humor deve ser revisto – Louise Cardoso
Louise acrescenta ao pensamento: “O humor precisa ser revisto onde ele fica incômodo para os grupos, no que é preconceito, ofensivo. Os limites do humor precisam ser revistos com muita inteligência, pra gente não cair na autocensura, que é horrível. Quando eu fazia ‘Insensato Coração’, era mãe de um rapaz gay e tinha esse casal na história, vivido pelo Rodrigo Andrade e pelo Marcos Damigo. Bom, a trama deles acabou censurada, cortaram cenas, fiquei furiosa, fui na direção da Globo. E entendi que alguns espectadores tinham se incomodado com o destaque para o romance gay, mas perguntei: “E os que curtiram? E os que se beneficiaram? E as pessoas que esta novela está ajudando? Gilberto Braga era um gênio e pioneiro, a história ajudou muita gente, eu recebia um monte de cartas das pessoas dividindo suas vidas. Mães dizendo que através da minha personagem tinham compreendido melhor os próprios filhos. Gravei na época chamada de campanha contra a homofobia. Olha a importância de uma trama abordar assuntos importantes. Não aguento censura”.
Entrega no set
‘Tia Virginia’ parte da história de uma mulher de 70 anos (Virginia) que nunca teve filhos ou se casou, e acaba sendo convencida pelas irmãs, Vanda e Valquíria (Arlette Salles e Louise Cardoso), a morar com a mãe cuidando dela. O filme se passa no dia de Natal quando Virginia recebe as irmãs e acontece um acerto de contas entre elas. “É um filme que nos toca no lugar da família, porque trabalhando a relação com aquelas irmãs, de alguma maneira estou trabalhando também a relação com o meu irmão, com a minha mãe, a minha família”.
Louise compartilha registros íntimos da sua experiências nas filmagens. “Aconteceu um episódio muito forte para mim, significativo. Tem uma cena que é das mais tensas, quando a personagem da Vera dá um tapa na da Arlete, e a minha, também vai para o confronto, puxando a Virginia (Vera Holtz), que vai bater a própria cabeça na parede. Na marcação da sequência eu puxava a Vera e dizia: “Eu te interno, Virginia!”. Na ação disso tudo, meu joelho estalou e eu não conseguia andar”, recorda.
“Não tenho nada nos joelhos, faço muito exercício, mas paralisei. Forcei e terminei a cena, sai do set de cadeira de rodas e fui para o hospital fazer exames. E adivinha? Não era nada. Esse filme é inspirado em fatos reais, da família do Fabio, o diretor. Na época das filmagens, ele me contou que quando fazíamos essa sequência, ele ia para o banheiro chorar, ficava muito emocionado, porque estávamos fazendo muito similar ao que aconteceu na vida real. Sou muito sensível, capto as coisas que estão acontecendo, mesmo quando não são ditas. Então, acredito que captei de alguma forma que o Fabio não estava bem naquela hora, por outro lado, acho que no meu inconsciente, também devia estar trabalhando a minha relação com o meu irmão, com a minha mãe…e isso tudo pode ter respingando ali no joelho, na tensão das coisas. Posso até estar psicologizando, mas é como senti. Esse filme faz a gente entrar em análise e trabalhar internamente algumas relações familiares por conta disso. É bonito”.
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