Liza Gomes transformou Bodas de Ouro dos pais e o câncer fatal de um deles em filme: “Minha dor transmutada em arte”


Motivada por uma provocação acadêmica, a atriz Liza Gomes acabou descobrindo uma nova habilidade: a de diretora cinematográfica. Liza adaptou para as telonas a história vivida por seus pais, que casaram-se novamente após 50 anos de matrimônio ,enquanto eram atravessados pela pandemia e por um linfoma não Hodkin. Sensível, a atriz/diretora acredita que o curta possa redefinir a crença geral de que o amor romântico é algo inexistente ou idealizado. Além disto, ainda que o tema do filme não seja este, por mais que seja margeado por essa questão, ele propõe um olhar sobre o câncer, doença que ainda é vista por uma prerrogativa fatalista

*por Vítor Antunes

O amor conduziu Liza Gomes em seu primeiro filme. O curta metragem “Bodas de Ouro“, traz em papel de destaque os atores Débora Olivieri e Raymundo de Souza vivendo Cláudio e Helena, personagens inspirados nos pais da autora e diretora. Ainda que o filme toque pelo sentimento e dê protagonismo ao amor, já que celebra, justamente, as Boda de Ouro do casal, o curta destaca que o principal conflito da narrativa é um câncer. O personagem de Raymundo, tal como o pai dela, convive com uma neoplasia – o Linfoma não-Hodkin. Sabedor da patologia, o homem resolve tornar a pedir a esposa em casamento, 50 anos depois. “Meu pai chegou para os filhos dizendo que queria fazer uma surpresa para a nossa mãe casando-se de novo com ela na mesma igreja em que eles haviam realizado a cerimônia há cinco décadas e pediu que os filhos o ajudassem a fazer essa surpresa. Ficamos, porém, apreensivos , em decorrência do avançado estado da doença. (…) Ele morreu um ano após a celebração”. Segundo estimativas do Instituto Nacional do Câncer (Inca), 10.180 novos casos de linfomas não Hodgkin foram diagnosticados no país em 2022, sendo 5.370 em homens e 4.810 em mulheres. Entre os famosos, Edson Celulari e Reynaldo Gianecchini também o tiveram.

Esse filme é o meu olhar para como enxergo os meus pais. Transformei minha dor em arte, me emocionando a cada tratamento de texto. Dirigi os atores em dois dias e houve mais camadas de emoção por conta de o Raymundo estar usando as roupas de meu pai. Foi bem forte mas eu estava bem certa do que eu queria e eu fiquei feliz com o resultado – Liza Gomes

Formada pela CAL (Casa das Artes de Laranjeiras), Liza lamenta que influencers ocupem espaço que deveriam ser de atores, ainda que pondere fluidez do mercado e a flexibilização de talentos. “O mercado na profissão de ator, está em mudanças. É chato, nós que estudamos e batalhamos, e por isso, queiramos fazer uma ponta, um trabalho numa novela, vermos que um influencer pegou um papel que tem o nosso perfil. É chato, ainda que eu não tenha problemas com isso. O negócio é cavar oportunidades, se movimentar e não ficar esperando. Creio que é saída para os atores é se produzir, tentar chamar atenção nas redes, se adaptar. Ainda que seja difícil, é prazeroso conquistar o seu próprio lugar e estar 100% presente”, analisa.

Liza Gomes transformou a vida em família em filme (Foto: Vinicius Mochizuki)

PÁGINAS DA VIDA

Quando Miguel Falabella escreveu a novela “Aquele Beijo“, em 2011, usou como ponto de partida a frase “Por quantas vezes você passou pelo amor de sua vida e não se deu conta disso?” . Por esta razão, os protagonistas Cláudia (Giovanna Antonelli) e Vicente (Ricardo Pereira), no primeiro capítulo, cruzam-se num taxi, no aeroporto e na fila de embarque até se conheçam, efetivamente. Não é incomum que digam que o amor romântico está desacreditado e não existe mais. Inclusive, não são poucos os que usam o filósofo Zygmunt Bauman para explicar que hoje os relacionamentos são líquidos, frágeis, inconsistentes. Definitivamente, não é sobre isso que se pauta “Bodas de Ouro“, filme de Liza Gomes. Ante à demanda de fazer um filme tendo o amor como tema, em sua pós-graduação, ela, literalmente, buscou uma história dentro de casa. Seu pai, acometido com um câncer, resolve pedir sua mãe em casamento pela segunda vez. “Ele já sabia estar doente e há cerca de dois anos. Após uma quimioterapia comunicou aos filhos que queria casar com a minha mãe novamente, na mesma data e igreja a qual se casou com ela. E eles casaram, em meio à pandemia, no dia 25/07/21. Ele veio a falecer em 13/07/22. E o mais bonito disso tudo foi que ele tinha muita fé na cura, queria voltar a dirigir, conhecer os bisnetos… E em nenhum momento falava sobre morrer ou ter desesperança”.

O legado dele foi viver esse momento em plenitude. Não tinha como não transformar isso em filme – Liza Gomes

Liza e seus pais José e Geuza (Foto: Arquivo Pessoal)

As gravações de “Bodas de Ouro” sucederam um ano após a partida do pai de Liza. “Estava tudo ainda muito fresco em minha memória. Foi tudo muito simbólico. Fotos do meu pai  serviram para compor o filme. Algumas falas do meu pai foram adaptadas para estarem no texto do Raymundo. E eu sentia presente o amor deles. No curta eu queria falar da dor de uma mulher que perde o amor da sua vida 50 anos depois”. José e Geuza casaram em meio à pandemia, tendo as netas como damas de honra e presentes apenas os familiares. A escolha por Raymundo e Débora se deu não apenas pelo inegável talento e pela adequação do perfil dos personagens – que deveriam necessariamente ser 60+, mas por conta de os artistas haverem “se apaixonado pelo roteiro e serem super sensíveis. Eu senti meus pais ali”.

Outra questão era pragmática: A verba disponível. “Investi uma grana e só tinha para dois dias. Qualquer erro poderia afetar o cronograma de gravações”. Liza conta-nos que agora está inscrevendo o projeto em festivais nacionais e estrangeiros, aprimorando a habilidade de roteirista e ansiando voltar para os palcos. “Acho que temos, os atores, que nos produzir e não esperar o telefone tocar. Fiz uma novela das nove, “O Sétimo Guardião“, imaginei que as coisas fossem acontecer, mas veio a pandemia. Comecei a trabalhar como assistente de direção e vi ali uma oportunidade”.

Quero estar sempre me preparando, me movimentando. Sou curiosa. Minha participação em “O Sétimo Guardião” eu mesmo cavei. Eu não sou uma pessoa bonitinha, padrão. Nunca irão me descobrir num supermercado ou passeando num shopping. Não me adequo a esse momento de redes sociais, de seguidos e seguidores – Liza Gomes

Com o retorno do Ministério da Cultura, Liza acredita que haverá um maior estímulo à produção de arte audiovisual no Brasil. “Vejo isso com entusiasmo e alegria. A meu ver, os artistas têm que sentar, ler edital e jogar seus projetos. Esse é um bom momento, efervescente. E o Brasil é um celeiro de bons filmes e bons artistas!”, exalta.

Raymundo de Souza e Débora Olivieri em “Bodas de Ouro” (Foto: Divulgação)

Na peça, O percevejo, de Maiakovski, uma poema voltado a Prissípkin foi transformado em música por Caetano Veloso. O personagem acima citado é ressuscitado após ficar congelado por cinquenta anos. Mesmo tempo em que o amor de José e Geuza se mantiveram incólumes. De modo que, não à toa, o que poderia ajudar a traduzir todo esse sentimento seria dizer: “Ressuscita-me. Para que a partir de hoje a família se transforme. Que o pai seja pelo menos o universo. E que a mãe seja no mínimo a terra”.