*por Vítor Antunes
“Você é filho do Tony Tornado?” Sem dúvida, esta é a pergunta que Lincoln Tornado mais ouve, especialmente por conta de, efetivamente, ser filho do cantor e ator. Dois homens pretos de gerações diferentes, Lincoln fala sobre como é que lidou com o fato de ter em seu pai um dos maiores representantes da luta antirracista no Brasil e como era o letramento racial na sua casa: “Não havia uma discussão à mesa sobre o assunto, mas a fala de um contexto cotidiano e isso era o que alimentava esse orgulho, essa edificação da negritude, compreendida como forma de se vestir, comportar ou andar”. Quando compara o atual momento da causa negra com a que viveu seu pai, acredita que, no momento, as coisas estão caminhando com maior facilidade. O atual momento, a seu ver, é “um privilégio. Na novela “As Aventuras de Romeu e Julieta“, novela do SBT em parceria com o Prime Video, eu uso terno e não vivo um segurança. Meu pai sempre quis ser artista e por isso não parou a carreira, pois que foi calado pela ditadura e ele viu nas a artes cênicas uma forma de expressão, já que na música ele não conseguia. Ele não foi o único. Silenciaram todo preto que fazia TV”.
A novela de Iris Abravanel segue conquistando o público infanto-juvenil e coloca o SBT na dianteira no gênero. O número de fãs de Lincoln só faz aumentar: “O público me chama de tio e este retorno tem sido lucrativo pessoal e profissionalmente”. Além deste projeto, o ator segue fazendo shows especiais com Tony Tornado, revisitando os clássicos musicais de sua carreira, bem como tem uma página de vídeos no Facebook, na qual compartilha conteúdos bem humorados com a também atriz Preta Sousa, sobre a vida de um casal preto, numa realidade próxima àquela vivida por Rui e Vani em “Os Normais” . Ele sonha ser diretor cinematográfico.
NINGUÉM SABE O DURO QUE DEI
Ainda que Tony Tornado tenha conquistado o Brasil com a música “BR3”, de 1970, onde contava sobre os desafios de se cruzar aquela estrada, atualmente nomeada como BR-040, quando se fala sobre apagamento negro nos anos 1970 costuma-se falar de Wilson Simonal (1938-2000). Tachado de delator, Simonal morreu no ostracismo, num dos casos que poderia ser tido como um dos primeiros cancelamentos do Brasil. Uma das músicas do cantor enuncia este trecho da reportagem, acima destacado. Afinal, não apenas ele, mas há vários outros artistas que deram duro para serem reconhecidos, acabaram apagados pela história. Caso de Lady Zu, uma da maiores vendagens de discos da discotèque brasileira, mas que geralmente é suplantada por uma das Frenéticas. Gerson King Combo (1943-2000), relevantíssimo nome da cena black brasileira, só tornou a ser lembrado quando participou do “Muvuca”, de Regina Casé na Globo, no início dos anos 2000. Expoente dos festivais, Tony Tornado precisou migrar para a teledramaturgia, pois vinha sendo retaliado como músico durante a ditadura.
Seu filho conta que “esse orgulho de ser o que é muito se origina do promovido pelo próprio movimento black. A coisa do cabelo, da vestimenta, do black power e dos direitos iguais foram apagados no geral. Tony Tornado era muito movimentado pela mídia e talvez fosse o que envolvia. Todo artista que trabalha numa área política, ele acaba sofrendo alguma coisa. Independente da questão étnica. O movimento gay mesmo só conseguiu representatividade depois de muito perrengue, de ser classificado como underground. Carlos Dafé e cantores da época, como Gerson King Combo, paravam os bailes para falar do movimento preto e isso mexia na tradicional família brasileira. E quando se mexe na tradicional família brasileira a resposta é retaliação. E esta vem calcada no somatório, [disruptivo]de uma imagem criada com a soma de uma gravata grossa, uma camisa volta-ao- mundo e uma calça boca-sino. Hoje é mais ameno que no passado, as pessoas se orgulham em dizer que são negonas, não são excluídas e nem tomam porrada. Mas eles passaram maus bocados na época”.
Você teria esse mesmo amor, se Jesus fosse um homem de cor? – Tony Tornado
Lincoln prossegue dizendo que seu pai, “desde sempre, quis ser artista. Mas foi calado pela ditadura. Diante desse silêncio, e para permanecer na profissão, ele migrou para as artes cênicas e viu nelas uma forma de expressão já que na música ele não conseguia”. A perseguição a Tony Tornado era implacável. Houve quem visse uma esdrúxula relação entre a música sobre a morte nas estradas, uma associação ao LSD. Julgaram o seu relacionamento com Arlete Salles, em razão de ela haver se separado de Lucio Mauro (1927-2019) e iniciado com Tornado um relacionamento. “Inclusive”, salienta Lincoln, “há muita gente que acha que sou filho de Tony com Arlete Salles, mas é impossível já que sou de 1985 e eles foram casados no início dos anos 70. E não tiveram filhos. Não sou eu e não é ninguém”.
As referências a Tony nos jornais não eram nada prazenteiras. A Fatos e Fotos foi profundamente agressiva em algumas vezes que retratou o artista, chamando-o de “frango de macumba” e que era uma “gaforinha de zulu em uma mise-en-scène macaquiforme“. Diante dessa dureza, Tornado mudou para as novelas. Sua primeira, na Tupi, “Tchan a Grande Sacada“. Sua primeira na Globo, “Roque Santeiro” (1985), um capataz. “Lea Garcia (1933-2023) fez mais escrava que qualquer outra coisa, assim como o Milton Gonçalves (1932-2022). Toda negrada da época passou por percalço e viveu um jagunço na TV”, diz Lincoln.
Em face de seu porte grande, Tony Tornado era, recorrentemente, direcionado aos papéis de homens rudes ou truculentos, ou alvo de bullying. Tão grande como seu pai, perguntamos como ele se enxerga nesse meio. “A minha área de conforto é o humor. E hoje eu fecho a piada, não sou a escada dela”. O primeiro trabalho de Lincoln na televisão foi a novela “Caça Talentos” (1996), um folhetim infanto-juvenil, no qual seu pai era… um segurança. Que por ser tão forte era chamado de Avalanche”.
O ator diz dar-se bem com o elenco infantil por sentir-se uma dessas crianças e por, também, ter feito trabalhos quando era ator mirim. “Comecei com a idade deles e com 11 anos. Sei como é uma criança num set gigantesco e entendo bem isso eu me dou muito bem com esse público infantil.”
Conta-nos Lincoln que as pautas afirmativas entravam em casa de forma muito orgânica “era um assunto muito natural, não houve esse levantamento de bandeira, porque víamos a pauta antirracista com naturalidade. Quando ouvíamos um som dizíamos: ‘ah, isso é som de negão’, era algo que como uma identificação imediata. Eu soube mais do ativismo do meu pai através dos outros do que por ele”, relata. Ainda segundo o filho de Tony, “nós não íamos no salão de cabeleireiro de shopping, mas num especializado para pretos que era utilizado para negrada da época e que tinha à frente a Dai Bastos, mãe do ator Paulo Lessa [o Jonatas, de Terra e Paixão].
Quando eu vou num salão e só vejo pente finininho e não vejo garfo eu já fico nervoso. Isso me faz perceber que aquela pessoa não entende de cabelo de preto. O degradê é diferente e tudo é diferente. Eu mesmo não corto o cabelo na emissora, por exemplo – Lincoln Tornado
DE COR
Tony e naturalmente seu filho Lincoln são descendentes de guiansenses. Mas o contato com essas pessoas da Guiana se perdeu. Porém, algo que não se perde é a conexão entre os dois, que seguirão fazendo shows pelo Brasil no segundo semestre. “Estamos há anos no Brasil, cantando músicas dele, revisitando a história e de seus contemporâneos”.
Lincoln revela que descobriu-se músico quase que por acaso. “O cantor e compositor Tibério Gaspar (1943-2017) estava afônico e acabei substituindo-o. Eu não cantava antes disso, nem dançava. daí resolvi me apresentar e dançar, copiando James Brown (1933-2006). Eu nunca havia visto meu pai dançando, além de uma pequena vinheta do Festival de 1970, e não tinha muitas referências. Daí comecei a me dedicar e as coisas foram acontecendo. E era estudante e Educação Física, mas passei a pensar mais na carreira artística. Fiz a novela “Beleza Pura” e partir daí tudo foi acontecendo.
Para encerrar, perguntamos a Lincoln se acha que ainda virá um momento em que a pauta afirmativa não vai nortear os assuntos: “Acredito que sim. Ainda que possa acontecer a algumas gerações. Tenho fé de que isso está começando a se dissipar e não é igual ao passado. Tudo está evoluindo constantemente. Espero que em breve os personagens não venham racializados”. E quanto ao futuro do audiovisual, diz ser “um caminho sem volta. Nós centralizávamos a autonomia do nosso trabalho antigamente e quando a pessoa perdia o contrato com uma TV se via sem horizonte. Hoje, com os streamings o mercado melhorou muito”.
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