*Por Vítor Antunes
Exibida em 2006, “Páginas da Vida” está de volta na Globoplay. Tido como o último grande sucesso de Manoel Carlos no horário nobre, o folhetim ousou ao trazer o debate público sobre a adoção de portadores de Síndrome de Down, sendo esta uma das personagens centrais na trama. Protagonizada por Regina Duarte, a novela contou com Lilia Cabral em estado de graça vivendo a antagonista da “Namoradinha do Brasil”, a médica Helena. Não se pode dizer que a heroína fora ofuscada pela vilã, todavia o reconhecimento para a intérprete de Marta ultrapassou as fronteiras nacionais. Lilia Cabral chegou a ser indicada ao Emmy de Melhor Atriz, e, na mesma categoria, foi vencedora do APCA. A intensidade da personagem era tamanha que, numa gravação, a atriz chegou a lesionar o braço e fraturar um dente.
MARTA: UMA VILÃ AUSTERA
Segundo Cabral, Marta figura entre uma das mais importantes personagens de sua carreira, em razão de ela ter sentimentos embrutecidos, ser uma mulher dura: “Marta poderia até sofrer, mas não mostrava, não demonstrava, não fazia questão nenhuma, porque a frustração dela, a amargura era tão grande, que ela não tinha tempo de ver o que estava acontecendo em sua vida, ou então não tinha tempo de observar e pensar que poderia se tornar uma pessoa melhor. Até então, eu fazia personagens leves. Poderia até fazer personagem sofrido, mas nunca tão dúbio, tão visceral, tão frustrado, tão melancólico, patético, irônico. Diante desse personagem tão cheio de nuances, eu me vi com um desafio muito grande pela frente e resolvi encarar, fui muito feliz nesse trabalho”.
Nunca tinha passado por essa gama de sentimentos que a Marta proporcionava na época, não era muito diferente do que as pessoas poderiam ser na vida real” – Lilia Cabral
Com efeito, a megera não poupava o marido, nem a filha – ainda que morta. Mesmo o neto, uma criança, escapava de suas asperezas. A dedicação ao papel gerou bons frutos: “Com a Marta, as pessoas, o público, principalmente, começou a conhecer uma atriz que eu também comecei a conhecer”. Sobre a indicação ao Emmy, Lilia conta que “Foi muito importante participar de uma festa tão bonita e significativa, já que se compete com os melhores do mundo. Nessa hora, a gente nem pensa se ganha ou se não ganha, o que a gente pensa é que fez um trabalho e que as pessoas, mesmo à distância, lá no Canadá, na China, no Japão, de alguma maneira, acharam que seu trabalho tinha valor”
Perguntada sobre momentos importantes que vivera na novela, a atriz destaca a parceria que estabelecera com os atores Max Fercondini e Fernanda Vasconcellos – que viviam seus filhos na obra – e com Joana Mocarzel e Gabriel Kaufmann, que interpretavam seus netos. Quanto a Marcos Caruso, que interpretava seu esposo, Cabral salienta a poesia com a qual ele dava as falas de Manoel Carlos, a fim de lembrar a Marta que havia no passado: “Ele falava o texto de um momento tão poético, das lembranças que a Marta falava, aquela que são especiais na vida dela e que não adiantaram de nada para sua vida, pois ficaram nas lembranças mesmo. Eu guardo muitas lembranças boas. (…) Tive parceiros maravilhosos. Com todos que eu convivi, nós só somamos. Fomos somando a cada dia e o resultado era muito gostoso quando a gente acabava o nosso dia de trabalho. Também tenho lembranças de um elenco positivo, carismático, divertido. A gente trabalhava muito, mas também se divertia”, relembra.
A alta voltagem das cenas entre Marta e Alex remontam a uma história pitoresca aos seus intérpretes. Sabedores que os artistas teriam uma cena de briga intensa, a Direção de Arte da Globo tirou dos cenários os objetos que pudessem feri-los durante a gravação do ato. Todavia, não esperavam que a mesa de vidro pudesse provocar um acidente sério entre os atores. É o que a própria Lilia contou à apresentadora Tatá Werneck no “Lady Night”, do GNT: “A gente ensaiou. Tudo era cenográfico. A mesa, porém, não era falsa, tinha um tampo de vidro. Quando Caruso me empurrou, ele me empurrou com força, coitado. Nem imaginou… Só que eu tropecei no tapete e fui indo assim (…) [Quando percebi] tinha perdido um dente”. A artista prosseguiu dizendo não haver parado a cena, enquanto ela não fosse finalizada.
Apresentaram-na ao Departamento Médico da emissora crendo ser apenas um problema odontológico, mas a questão era ainda mais grave, chegando inclusive, a assustar o médico de plantão: “O problema não é isso [rosto], é isso [braço]. Quando eu levantei o braço, o braço era uma coisa preta horrorosa. Aí o médico falou: ‘Nossa!’ E foi desmaiando para trás”, relatou. Até que estivesse plenamente recuperada, a atriz gravou suas cenas sentada ou num enquadramento que não revelasse os ferimentos de seu rosto e braço.
“Páginas” marca também uma rica parceria entre Manoel Carlos e Lília Cabral. Através dele a atriz deixou de fazer personagens cômicas na TV, em razão de haver interpretado a vilã Sheila, em “História de Amor“, de 1995. Nesta trama, ela também era antagonista de Regina Duarte, a Helena de então.
ÚLTIMO SUCESSO DE MANOEL CARLOS ÀS 21H
“Páginas da Vida” possui várias sinalizações importantes: Trata-se do último sucesso incontestável de Manoel Carlos no horário – Haja vista que as duas obras subsequentes “Viver a Vida” e “Em Família” não foram bem sucedidas – marca também como sendo a última novela a trazer Regina Duarte em papel protagonista. A atriz deixou a TV Globo em 2020 para ser a Secretária de Cultura da atual gestão federal. Em face da separação litigiosa, a atriz não apareceu nas vinhetas de relançamento da novela para o Globoplay. Ainda que fosse ela a protagonista da trama, não é a sua foto que compõe a thumbnail do folhetim na plataforma global.
Além de Regina, outras duas atrizes do elenco de “Páginas”, estão fora do ar, na telinha, e cada uma por uma razão diferente. Uma delas é a co-protagonista, Ana Paula Arósio, que abandonou a profissão em 2011 e passou a viver de maneira reclusa desde então. Sua última aparição pública foi durante a ação comercial de um banco. Outra afastada das telinhas é Sonia Braga, sendo esta sua última novela até então. Com sólida carreira no cinema internacional, voltar a fazer novelas de TV não faz parte dos planos da atriz, que inclusive entrou com um processo contra a Globo, quando da reprise de “Dancin’ Days”, no Viva, em 2014.
Uma das grandes polêmicas de “Páginas” também se deu nos seus bastidores. A novela, primeira de Grazi Massafera, acabou por trazer à cena uma discussão semelhante àquela vivida por Jade Picon em “Travessia”, próximo folhetim das 21h: A “transformação” de ex-BBB’s em atores de novela. Embora com alguma crítica à época, Massafera conseguiu ter destaque, encerrou a novela tendo Thiago Lacerda como par romântico e engatou pelo menos uma novela por ano até 2019. O ápice de sua carreira deu-se ao ser indicada ao Emmy Internacional de Melhor Atriz, pela dependente de drogas Larissa, de “Verdades Secretas”, em 2015.
“O CÔNCAVO E O CONVEXO”: DEPOIMENTO SOBRE MASTURBAÇÃO ROUBOU A CENA
Outra questão que fez a novela famosa foram os depoimentos ao fim de cada capítulo. Aquele exibido no sexto episódio do folhetim, no qual uma senhora de 68 anos dizia haver sentido orgasmo pela primeira vez ao ouvir a música “O Côncavo e o Convexo” de Roberto Carlos. A fala de Nelly da Conceição chocou o Brasil e sua confidência repercutiu por semanas. Quase 16 anos depois de sua exibição, a fala da idosa ainda aparece chocar, posto que o seu depoimento foi censurado. Não constou da exibição do episódio no Canal Viva, assim como está ausente no Globoplay. A contrário do que se convencionou dizer, Nelly não morava em Madureira, na cidade do Rio de Janeiro, mas sim em Agostinho Porto, bairro da cidade de São João de Meriti – Município da Baixada Fluminense. Nelly faleceu em maio de 2020.
A declaração babá acerca de masturbação gerou um grande debate público sobre a sexualidade feminina. Incomodou o fato de ser uma mulher idosa falando sobre esta temática. Perguntamos à terapeuta e mentora sexual Cacau Guilherme a razão de esta fala haver gerado tanto buzz na época e qual a sua opinião sobre a censura desta fala. Segundo Guilherme, trata-se de uma fala “Muito particular pois trata-se de uma mulher simples que não está fundamentada no saber científico e faz, assim, uma revelação [pessoal]. É muito interessante o fato de ela parece haver tido um orgasmo num sonho. Ou seja, não entrou em contato com a possibilidade de conhecer o próprio corpo. A fala dela vai ao encontro de um movimento feminino muito grade de autodescoberta. Seu depoimento talvez tenha chocado por reflexo de uma sociedade machista e patriarcal que vivemos, que torna o gênero feminino e a sexualidade da mulher tanto oprimida como reprimida”.
Cacau Guilherme revela-nos que o clitóris só foi devidamente estudado e dissecado em 1998. Talvez esta seja uma razão, além da repressão a qual elas são vítimas, diante de uma sociedade patriarcal e machista – que justifique o fato de as mulheres “não conhecerem o seu corpo. E são elas que precisam falar sobre isso”. Guilherme nos diz que “pelo menos 70% das mulheres nunca sentiu orgasmo ou que o desconhecem”. De igual maneira, são muitas aquelas que nunca viram a própria vagina. Ainda que o depoimento de Nelly esteja ausente tanto na Globoplay como esteve no Viva, Cacau acredita que a “fala [daquela senhora] virou e está virando – mesmo 16 anos depois – um coro social”. Afinal, a sexualidade feminina ainda é cercada de tabus.
Curiosamente, a primeira obra de televisão a abordar o orgasmo feminino foi “Malu Mulher”, de 1979. Malu era vivida por Regina Duarte. Embora tenha sido uma pauta importante na época, em se falar de sexo em plena Ditadura Militar, a atriz que interpretou Malu disse ao jornalista Pedro Bial, em 2019, envergonhar-se daquela cena. O que mostra que, nas páginas da vida das mulheres ainda há muito a ser escrito.
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