Leona Cavalli fará peça sobre o ofício de atuar: “Rede social não pode ser um atalho para o trabalho de ator”


Plural. Leona Cavalli encerrou recentemente “Terra e Paixão” novela na qual discutiu o falso moralismo e a vida de aparências. Transparente, a atriz conversa sobre sua fé, sua mulheridade e como enxerga o tratamento da questão indígena, que invisibiliza os povos originários, especialmente os que vivem no perímetro urbano. Às raias de estrear uma peça sobre a profissão da atriz, na qual remonta a grandes matriarcas da atuação, Leona critica a supervalorização de influencers em detrimento dos atores profissionais. Diz que é um “engano” eles acreditarem que as plataformas de vídeo possam ser um atalho para serem atores bem-sucedidos

*por Vítor Antunes

Leona Cavalli esteve em “Terra e Paixão”. Sua personagem, Gladys, sofreu algumas transformações em seu comportamento, e antes que se diga ser um defeito do formato telenovela, que sofre influencias de todo lado – do público, da emissora, dos patrocinadores – é importante ressaltar que a vida é assim. Ela se transforma. Tal como o mercado profissional de atores hoje. Influenciado pelos “influenciadores” – por mais que isso possa soar redundante -, a profissão hoje nota um grande crescimento deles exercendo esse ofício. “Crer que a rede social é um atalho para o trabalho de ator é um engano. Na verdade, se cria essa impressão quando a rede social aproxima as pessoas, comunica, e acaba passando a impressão de que tudo é possível. Atuar é o que se diferencia das outras artes. Ser ator implica em ter o corpo humano vivo, trabalhando internamente, e não apenas a imagem, a superficialidade”, analisa.

Nada, absolutamente, substitui o trabalho, a dedicação, o estudo e o exercício que a profissão de ator exige – Leona Cavalli

Inclusive, por falar da profissão de ator e exaltá-la, Leona estreará dia 6 de março uma peça inspirada no livro “Ser artista“, de Marcus Montenegro. “É uma homenagem ao teatro brasileiro, no qual eu interpreto grandes atrizes que foram ou são agenciadas pelo Marcus. Dentre elas, Nathalia Timberg, Bibi Ferreira (1922-2019), Camilla Amado (1938-2021), Zezé Motta, Nicette Bruno (1933-2020), e Tônia Carrero (1922-2018). É um desafio imenso. Uma peça com um pouco mais de uma hora na qual revisitamos depoimentos da vida delas e homenageamos o teatro em si. O Anderson Müller faz na montagem um papel equivalente ao do autor do livro, o Marcus”. A encenação estreia no Rio, no Teatro dos Quatro,com direção de Beth Goulart. Leona sonha em levá-la ao Teatro da Escola Nacional de Santo André (SP), que será batizado em sua homenagem.

Além desta, Leona poderá ser vista em “Elogio da Loucura” que deve voltar ao cartaz ainda neste semestre. Também agora, ela estará no primeiro longa de Rogério Gomes, o Papinha. Em “A Cerca”, Leona vive uma jornalista que investiga uma cidade no Sul e descobre coisas do passado, relacionadas a um crime.

Leona Cavalli estreará peça sobre a profissão de atriz (Foto: Juliana Coutinho)

Além da arte, a cidadã Leona compõe a ONG “Paz sem Fronteiras” na qual milita em favor da causa indígena. Uma de suas ações é sobre a manutenção da Aldeia Vertical Maracanã, núcleo dos povos originários presente no entroncamento dos bairros do Maracanã e São Cristóvão, no Rio, onde funcionava o Museu do Índio. “Espero que os indígenas ali presentes sejam reconhecidos e legitimados como cidadãos cariocas e brasileiros. O que aconteceu com eles é algo absurdo. Assim como na Amazônia, eles ficaram sem território. E haver um Museu do Índio é fundamental. Fora que eles vivem em condições muito precárias. Poder estar junto a eles nesta luta é uma honra”.

O Museu do Índio foi inaugurado em 19/04/1953. Notado à ótica de hoje até mesmo a matéria que o divulga soaria duramente preconceituosa: “As máscaras são feias (…) mas enchem os nossos olhos de alegria. (…) Há uma senhora em Copacabana copiando as bonecas indígenas e vendendo como arte primitiva”, dizia a reportagem de Sarah Marques, há 71 anos. Aliás, e numa irônica coincidência, seria questionável o título de Manchete: “Índio – Entre e a miséria e o esplendor“. Num território em disputa, que quase cedeu à especulação imobiliária, o Museu do Índio, na Rua Mata Machado, em frente ao Maracanã, foi fechado em 1977, quando as atividades dali foram deslocadas para Botafogo. Entre várias finalidades do organismo público nos anos seguintes, em 2006 o espaço foi ocupado por indígenas que se organizaram no lugar, que pertence à União. Ou seja, é uma briga longe de ter fim. “É um núcleo de pertencimento legítimo. Se a população soubesse da sua existência apoiaria haver um lugar digno, mas a sociedade não fica sabendo disso”.

Museu do Índio em 1953. Espaço hoje é uma ocupação indígena, no Maracanã (Foto: Biblioteca Nacional/Revista Manchete)

HUTUKARA

Hutukara é uma terra. O branco chama de “mundo”, outros falam a palavra “universo”. É assim que o branco fala, branco fala que o mundo é redondo. Para nós, povo indígena aqui do Brasil, outros povos indígenas, cada um chama diferente: alguns chamam Hutukara, outros chamam Tupã, outros chamam diferente, mas é uma só. É uma Hutukara só. E nós estamos aqui sentados na barriga da nossa terra mãe.” – Assim Davi Kopenawa, líder indígena, define o universo sob a ótica Yanomami. Inclusive, não à toa, usamos esta fala do indígena. “Hutukara” e o povo Yanomami foram o enredo do Salgueiro neste carnaval 2024. Leona é profundamente engajada e ativa na causa dos povos originários. “Já fiz duas vezes a viagem de barco na Amazônia. Nós, brasileiros, somos filhos dessa cultura, que festejo estar sendo mais vista e compreendida hoje, com valorização dos escritores indígenas”.

É uma cultura necessária para o mundo. Só aqui há essa riqueza, essa diversidade  de etnias, de outras línguas… É uma cultura que está onde não imaginamos. A estética plumária do carnaval, por exemplo é toda indígena fico feliz que esteja havendo esse reconhecimento – Leona Cavalli

Ainda sobre a questão indígena, Leona esteve recentemente em “Terra e Paixão“, uma das primeiras, senão a primeira novela, a ter um núcleo indígena interpretado por atores legitimamente desta etnia. “Isso é histórico”, ressalta. A trama de Walcyr Carrasco, aliás, sofreu muitas modificações, tanto  no personagem no personagem dela como outros. “A melhor coisa de fazer novela é, justamente, o fato de ser uma obra aberta e poder construir junto com o público. Uma novela, diferente de uma série do straming ou do teatro, a gente vê junto com o espectador. Na novela, a reação é rápida e ao mesmo tempo tem esse frescor de não saber sobre os caminhos da personagem já que a gente vai recebendo os roteiros de semana a semana e descobrindo. Entra aí um desafio também, já que é preciso desapegar, mudar muitas coisas já que a trajetória dos personagens é desconhecida”.

Gladys, personagem de Cavalli, era uma mulher falso-moralista que tinha um discurso de defesa da moral e da família enquanto tinha amantes. Inclusive impedia que as prostitutas e transexuais da cidade estudassem na escola dirigida por ela. “Claro que novela tem que ser para todos os gostos, popular, mas também pode servir para tocar na ferida e mostrar a hipocrisia das pessoas que defendem alguns valores morais, até violentamente, mas que na maioria das vezes não seguem aquilo ou tem uma vida oposta. Por vezes essa incoerência pode gerar sofrimento e infelicidade constante, pois que não vão atrás daquilo que acreditam, do seu prazer legítimo em vez de manter um padrão, um status, muita das vezes decadente”. Longa, “Terra e Paixão” exigiu um trabalho de um ano, e foi uma festa nos bastidores, segundo Leona “Havia uma felicidade em estarmos juntos, um astral, uma energia positiva que se manteve”.

Gladys (Leona Cavalli) era uma falso-moralista que se redime no fim da trama de Walcyr Carrasco (Foto: Leo Rosario/Globo)

Autêntica, Leona afirma que, para as mulheres muita coisa mudou, e algumas para melhor. Especialmente na pauta “casamento-marido-filhos”. Ela diz que “atualmente existe a cobrança de que elas atendam a esta perspectiva tradicionalista, mas não é tão grande como já foi. Muitas mulheres optam por não ter filhos. Muitas atrizes, antigamente, não tinham sequer reconhecida a profissão. Algumas delas fizeram a mudança da profissão de atriz, almejaram o respeito. Não dá para aceitar um retrocesso no qual a mulher não possa estar em algumas profissões ou consiga caminhar de acordo com o que acredita”

O Brasil é, vergonhosamente, um país que se opõe à mulher e às mulheres, especialmente as trans e travestis. A mudança acontece e acontecerá aos poucos – Leona Cavalli

Nascida numa cidade do interior gaúcho, Rosário do Sul, a atriz fez sua carreira no Sudeste. Um de seus longas que será lançado neste semestre foi gravado em Santa Catarina, o “A Cerca“, primeiro filme de Rogério Gomes. O projeto conta, no elenco, com Jonas Bloch e Leandro Lima. Há tantos anos nos centros urbanos do país, perguntamos o que há de mais gaúcho nela. “A natureza e o gosto por rios. Tanto que tenho um sítio no interior fluminense com essa característica”. A rotina bucólica do interior parece assimilar-se com a vida pessoal da artista. Sempre discreta, fora dos holofotes. Uma outra entidade. “Eu sempre lidei com a valorização da minha carreira e a discrição da minha vida pessoal, e vai continuar sendo assim. Sou uma pessoa pública no que diz respeito ao meu trabalho, ainda que esse limite esteja cada vez mais tênue hoje, em razão das redes sociais”.

Batizada Alleyona – seu pai achava que Leona seria um nome forte demais para uma criança -,  a profissão encarregou-se de devolvê-la o seu nome original. Para a atriz, a “Alleyona ensina à Leona a alegria de viver e a espontaneidade, o amor. E a Leona ensina à Alleyona o profissionalismo e a perseverança”. Essas duas mulheres se encontram em uma só, e unidas pelo amor. “O amor me reconecta com a minha essência e cada um tem a sua forma de amar no sentido de expressar, de ter solidariedade com os outros, com o respeito à natureza, com o contato com Deus”.

Geralmente alçada aos pedestais inatingíveis, as atrizes se revestem de algo divônico. Leona, não. Desglamurizou-se desta armadura enquanto era entrevistada por nós. Falava sobre arte e resolvia demandas do condomínio, vazamentos e canos. É humana, pois! Não que os artistas sejam  sobrehumanos por seus talentos, mas entre um APCA e um vazamento d’água, Leona revela ser super humana.

 

Leona Cavalli. Atriz é engajada politicamente nas causas damulher e indígena (Foto: Juliana Coutinho)

Créditos:

Fotos: Juliana Coutinho
Styling: Samantha Szczerb