A pré-estreia do filme ‘Divinas divas’, que chega aos cinemas no dia 22 de junho, começou com muita expectativa. O longa retrata os bastidores da peça que originou o título, lançada em 1966. A ideia é unir a história de oito mulheres transexuais que dedicaram toda a vida na luta contra a homofobia e aceitação. Para recepcionar o documentário de Leandra Leal, famosos, políticos e amigos se reuniram no cinema da Estação Net Botafogo. Todos com um pensamento em comum: o longa que estavam prestes a assistir é de extrema importância para o momento no qual estamos vivendo hoje. “É como se a gente precisasse falar todos os dias desse assunto para entender como abordar esses temas para traduzi-los para o cotidiano. O filme vem somar com o conhecimento, intimidade, leveza e humor”, afirma a atriz Dira Paes. Ao seu lado, o ator e ensaísta Gregorio Duvivier acredita que a sociedade vive um momento muito conservador. “A Leandra vem para quebrar todos os paradigmas trazendo uma bandeira muito importante. A gente ainda comete muita transfobia que é uma coisa comum, inclusive, no nosso vocabulário. Falamos sem perceber”, lamenta. Além deles, o ator Fábio Assunção concorda com os colegas e sugere que falar sobre diversidade é um tema muito oportuno. “A gente precisa conversar sobre isso. Estou ansioso também para saber como ela funciona como diretora, porque já trabalhamos juntos e sei que é talentosa”, ressalta
A longa lista de prêmios que o documentário acumulou ao longo dos festivais que passou não deixa mentir que Fabio pode esperar um resultado maravilhoso. Divinas Divas ganhou o Prêmio Felix de Melhor documentário, o Prêmio do Público da Mostra Global do Festival South by Southwest, no Texas, Melhor Filme e Melhor Direção no 11º Fest Aruanda, em João Pessoa. “Consegui entregar o filme que eu poderia fazer. Talvez poderia ser melhor, mas atingi o meu limite”, acredita Leandra Leal. Fora os títulos, o longa marcou presença no Festival Internacional de Documentários do Canadá, Mostra de Cinema de Tiradentes, da 40ª Mostra Internacional de Cinema e do Festival Mix Brasil, em São Paulo.
Para o elenco, não há nada que a atriz e, agora, diretora poderia ter feito a mais. “Era uma alegria e animação, todos os festivais que íamos, levávamos o título. Mas, no fundo, eu já esperava, porque Leandra é muito perfeccionista como atriz e como diretora não seria diferente. Quando ela nos pediu para fazer, fiquei feliz e lisonjeada por uma artista tão nova se interessar por uma causa como essa. Foram nove anos de captação para o filme devido à idade dela e o tema travesti. Agora, estamos pensando em voltar com o espetáculo e mudar o nome para Divina divas #aspremiadas, porque nós ganhamos muitos prêmios”, brinca a atriz Jane di Castro que faz parte do elenco assim como Rogéria, Divina Valéria, Camille K, Fujika de Halliday, Eloína dos Leopardos, Marquesa e Brigitte de Búzios.
A dificuldade de captação foi tão grande que a equipe decidiu organizar o famoso crowdfunding, ou seja, uma vaquinha para arrecadar fundos para o filme. “O documentário discute a identidade de gênero, provoca e transcende os estereótipos. Levantamos uma bandeira que acabou sendo muito presente. Tivemos muita dificuldade de captação e, por isso, fizemos um crowdfunding que foi muito importante não apenas para o resultado final, mas para mostrar à sociedade que este é um tema que precisa ser debatido. Foi importante discutir o motivo da falta de investimento privado”, critica a diretora.
Se o preconceito ainda precisa ser discutido, hoje em dia, na época que as artistas iniciaram as apresentações o clima era muito pior. “Para as travestis que estão começando, ver esse filme é uma aula. Elas vão saber o que passamos para que pudessem viver em um paraíso se comparado a minha época. Nós seguramos a bandeira LGBT. Até nossas fotos eram censuradas e nós não tínhamos a quem recorrer como hoje. Existiam locais certos para sairmos”, lamenta Jane di Castro.
No início do espetáculo, em 1966, as artistas ainda não se vestiam de mulher em seu dia a dia. O vestuário foi mudando com o tempo. “A primeira vez que me vesti foi em Paris, em 1969. Não andávamos na rua vestidas assim. Nessa época, a ditadura já tinha começado e nós sofremos muito. Quando saíamos do espetáculo, íamos animar uma boate. No meio do caminho, a polícia implicava e nos obrigava a lavar o rosto e tirar a peruca. Mesmo com toda essa negação, tive a coragem de pedir ao avô da Leandra para ceder o teatro”, informa Eloína dos Leopardos.
O teatro Rival foi o começo de tudo. Américo Leal foi o único que abriu as portas do espaço para que as mulheres pudessem mostrar seu show. “O Rival é tão importante que se tornou um personagem no filme”, afirma Leandra. Foi naquele local onde a jovem cresceu e virou amiga do grupo de atrizes. “Além de contar o universo delas, falo da minha infância, é um filme de fã. Eu queria mostrar meu ponto de vista sobre essas mulheres, pois fui criada no meio delas e tenho um olhar privilegiado de confiança. Às vezes, as pessoas me perguntavam ‘Quando você era criança achava que a Rogéria era o que?’, eu respondia que achava que ela era a Rogéria. Não tinha essa questão”, complementa a diretora.
Este tabu é o que a equipe busca desconstruir ao longo da trama. Através do depoimento das atrizes, o documentário sinaliza os preconceitos e o que um travesti sofre. “As pessoas conhecem e convivem com homossexuais, mas ninguém sabe o que se passa na cabeça de um gay. Não sabem como é sofrer preconceito todos os dias. Algumas vezes, por exemplo, eu fui para o teatro na mala do carro, porque as pessoas não gostavam de me ver dessa forma. Dessa forma, público terá a oportunidade de olhar essas pessoas de outra forma. Quando entro em cena sempre digo que me dou de ‘trompa e ovários’, afinal sou uma atriz e posso ser tudo o que quiser”, brinca Camille K.
Atualmente, o elenco acredita que a homofobia tem melhorado muito e sinalizam que a sua luta foi responsável pela mudança. “Nós abrimos as portas para o mundo transexual. O grupo LGBT só existe dessa forma mais aberta, hoje em dia, porque houve uma grande luta de todos nós. O preconceito melhorou muito, mas ainda existe muita gente que finge que nos aceita. De uma forma geral, acho que o governo está ajudando o grupo LGBT, porque quando existe um caso de homofobia as pessoas são presas. Apesar de termos muitos políticos contra, existem muitas práticas de incentivo a aceitação”, comemora Camille K ao que a companheira de elenco Eloína concorda. “Minha batalha vem dos anos 60, passei pela ditadura e muitos períodos conturbados. Hoje, vejo muita liberdade e acredito que as coisas só devem mudar se for para melhor. A gente não tinha o carinho que recebemos das pessoas atualmente”, afirma a artista que se sente realizada por ter se assumido como a Camille.
Apesar do preconceito que todas elas sofreram, Jane di Castro conta que a plateia sempre estava lotada em dias de apresentação do Divinas Divas. “O público sempre nos prestigiou, fazíamos shows com a casa lotada, mas tivemos muitos problemas com a censura. Acho que é por isso que estamos aqui, depois de mais de 50 anos de carreira. O que não é bom não continua”, ratifica a atriz. Mas o sucesso do grupo não se resume as outras décadas. As oito integrantes continuam atraindo multidões e trazendo comoção para as pessoas. Mas para Divina Valeria a sua emoção é diferente, se encontra na plateia. “Fiquei muito sentida com a emoção do público, porque eles saem totalmente abalados. Várias pessoas me cumprimentaram em lágrimas, felizes por terem visto algo bonito. São histórias que servem de exemplo de vida, principalmente, para a geração atual. No filme as pessoas vão do choro ao riso”, celebra a atriz.
O enredo do filme é muito simples. Reúne pedaços das histórias de cada uma das artistas e mostra os bastidores do espetáculo que foi feito para a produção. O elenco só assistiu ao material final o que gerou muita perplexidade, pois nenhuma delas imaginava que o resultado seria tão bom como aquele. O documentário foi recebido como um presente da Leandra para todas. “Depois de cinquenta e três anos de trabalho, aparecer em um filme como este é uma grande homenagem a nossa carreira. Estamos sendo retratadas e eternizadas no cinema. Nós somos pioneiras da arte do transformismo. Além disso, sempre fizemos tudo com muita dignidade e, por isso, estamos aqui até hoje. São histórias lindas de pessoas que passaram por muitas barreiras e, apesar de tudo, conseguiram viver da arte até hoje”, comemora Divina Valeria.
Artigos relacionados