*Por Brunna Condini
Ela dá aula. Na ficção e fora dela. Larissa Nunes, a determinada Letícia de ‘Além da Ilusão‘, novela das 18h da Globo, destaca a importância da personagem que integra o núcleo da vila operária da trama, sendo a única a estudar e se tornar professora. “Apesar de viver muitas dificuldades, de ser jovem, a Letícia tem a maturidade de querer mudar o mundo com o que faz. Além disso, poder interpretar uma professora em um ano como esse que estamos vivendo, representa o quanto conseguimos conectar realidade e ficção de um jeito direto, com temas relevantes. Uma menina negra, em uma vila operária na década de 1940, que poderia ser mais uma, mas optou pelo ofício de ensinar. Mesmo dentro de uma realidade precária, ela escolheu. É um privilégio vivê-la. Têm muitas professoras negras que fizeram história no Brasil. Me sinto homenageando todas elas, e essa personagem também representa o poder de escolha do jovem atual, que através da educação pode buscar mobilidade social, por exemplo”, diz Larissa.
Aos 26 anos, a atriz que brilhou na série ‘Coisa Mais Linda‘, da Netflix, conversa sobre a primeira novela, a carreira, escolhas, os sonhos, e os pontos que urgem por transformação. “O audiovisual brasileiro é muito racista, em muitos aspectos. Várias situações passam batidas e ninguém tem coragem de denunciar. Para um problema generalizado, precisamos olhar para soluções mais diretas, de preferência em conjunto, para que ninguém se sinta fragilizado depois”.
Recentemente, as atrizes Cinnara Leal, Dani Ornellas e Roberta Rodrigues, que integraram o elenco de ‘Nos Tempos do Imperador‘, denunciaram atitudes discriminatórias do diretor artístico Vinícius Coimbra e algumas pessoas de sua equipe. O caso segue sendo apurado, mas a emissora desligou o diretor. “Prestei toda a minha solidariedade às três, por serem referências desde sempre na minha trajetória, e de tantas outras atrizes pretas. Sinto que é um passo em uma transformação que não conseguirão deter. Essas situações não passarão mais. Também sinto que começaremos a nos apoiar ainda mais. Antes era difícil denunciar, sentindo-se solitária à toda experiência traumática que pudesse estar passando em um set de gravação. Pela situação envolver nomes, pessoas importantes, surge o medo de falar. O apoio foi muito precioso para que essas punições, essas circunstâncias acontecessem. E para que elas se fortalecessem e se curassem, e pudessem se proteger de alguma maneira”, observa.
“Só até agora nesse semestre já tivemos vários casos de racismo, em vários setores. Pessoas conhecidas ou não, têm vivenciado casos de racismo explícito, e isso é um alerta para quem se diz antirracista, porque agora também há uma tendência dos racistas virem em um movimento de contra-ataque. Então, acho que precisamos nos fortalecer, e não acharmos que a luta já está ganha, porque estamos vendo mais representatividade, porque mais vozes tomam à frente e se defendem. Ainda acho vulnerável a defesa em relação aos ataques, você sendo uma pessoa preta. Não sei quem vai estar comigo se eu ousar me defender. Quem realmente vai segurar o rojão”.
E acrescenta: “Por isso, ver o que aconteceu nesta situação delas, é ver que as coisas estão se transformando. Não são mais como há 10, 20 anos, quando várias outras atrizes, mestras, passaram por experiências similares ou até piores, e não tiveram a oportunidade de se defenderem ou denunciarem. Isso pra mim é um sinal de que estou chegando em um lugar de transformação, de rupturas, reviravoltas, em um cenário geral”.
Mulheres de época na vanguarda
A atriz e cantora paulistana vive intensamente seu primeiro trabalho em TV aberta, com a novela das 18h, e aguarda a estreia da série ‘O Rei da TV’, do Star+, sobre a vida do apresentador Silvio Santos. “Tenho um encontro com personagens de época. Sou meio viajante do tempo (risos). São mulheres que representam seu tempo. Além de ‘Coisa mais Linda’, que se passava na década de 1960, em ‘O Rei da TV‘ faço uma personagem dos anos 1970. Então, em breve vou poder ser vista com personagens dos anos 40, 60 e 70 (risos). Isso é muito interessante para o meu trabalho. Além de que sou, definitivamente, uma mulher do meu tempo”, analisa.
“As duas que estão no ar, são personagens de época, potentes, mas a Ivone, de ‘Coisa mais Linda’, pertence a um universo diferente da Letícia, da novela. A Ivone vem de uma revolução sobretudo feminina na década de 1960. É periférica, independente, mesmo sem ter muito contato com o feminismo, com essas lutas que já eram introduzidas na sociedade brasileira, mas com mulheres mais privilegiadas do que ela ainda. Já a Letícia de ‘Além da Ilusão’, traz essa força e independência, mas 20 anos antes. Mais revolucionário ainda, se formos levar em conta os desejos das duas em suas respectivas épocas. São jovens que desejam mudar de vida e são atravessadas por várias experiências, entre elas, o amor”.
Audiovisual racista
“Para falar desse racismo no audiovisual, vou tentar dar um exemplo que nunca dei antes. Sempre olhamos para as denúncias de racismo de um jeito literal. Mas aqui, quero falar do campo do artístico, que tenho lutado para colocar mais em jogo. Porque o lado social e político sou eu, é o meu corpo. Agora, eu queria muito que o audiovisual brasileiro contasse mais histórias de pessoas pretas de um ponto de vista não estereotipado. Que pudéssemos trazer mais substâncias emocionais para as personagens pretas. Sinto que falta isso nas histórias, nos roteiros, nas direções. Em quem é showrunner em uma sala de roteiro e quer defender aquela história para várias pessoas”, reflete Larissa.
“Gostaria muito que o audiovisual brasileiro nos defendesse de um ponto de vista mais sublime, mais refinado, genuíno. E mais complexo. Precisamos ter boas histórias com personagens pretos, no sentido de camadas. Parece que o mais alto da criatividade de quem constrói as histórias não esbarra nos nossos corpos. Isso é um exemplo de um racismo estrutural que é mascarado de muitas formas. É possível que quem crie não tenha essa intenção, apenas não nos imagine ali contando aquela história, mas isso também revela uma questão. De não ter o cuidado de pensar: “Talvez essa personagem aqui complexa, difícil, que vai viver uma saga de 10 temporadas nesta série, vai ser feita por uma mulher negra. E não vou precisar colocar que é uma mulher negra na descrição do roteiro. Vou simplesmente olhar para essa atriz e dizer que é ela”.
E Larissa, completa: “Fico imaginando que isso poderia ser muito legal. Pode ser. Será. Os tempos estão mudando. A passos difíceis, demorados, mas estão. Quero continuar me dedicando à arte. Desejo conciliar a carreira de atriz com a de cantora, e, em breve, vou ter trabalho novo na música. Mas um sonho mesmo na carreira de atriz? Protagonizar uma história, não importa em que veículo”.
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