*por Vítor Antunes
Entre a década de 2010 e a atual muito se tem discutido sobre a questão étnica no audiovisual. Não à toa o número de artistas fora da standartização da TV começaram a aparecer com mais frequência como protagonistas. Das três novelas atualmente no ar, na Globo, a da faixa nobre traz uma mulher preta à frente. E, recentemente, em 2022, um núcleo romântico ganhou destaque em “Além da Ilusão“. Era composto por Guilherme Prates, que é branco, Matheus Dias e Larissa Nunes. Nesta entrevista, a atriz fala sobre a importância dessa mudança de rota no audiovisual, que traz artistas negros ao destaque e de sua vontade de voltar a fazer novelas. Especialmente hoje, no momento em que há um aprofundamento narrativo nesses personagens. Segundo ela, “é preciso tempo [de tela] para personagens pretas. E quando digo tempo, eu digo destaque mesmo. É necessário que sejamos vistos”. Ou seja, a reivindicação da atriz vem ao encontro de um processo de mudança sobre o lugar do artista negro nas novelas, que geralmente era restrito à cozinha ou a ser o personagem-ouvido da protagonista.
Além do debate afro-centrado, Larissa poderá ser vista em duas produções inéditas no streaming em papel protagônico. As séries “Vidas Bandidas” e “Americana”, ambas do Star+. Em breve estará estreando no gênero da comédia em “Clube Espelunca”, série do TNT Series/HBO Max. Ainda neste ano, viveu a mulher de Anderson Silva, Daiane, no projeto audiovisual que homenageia o atleta. Para ela, é importante haver representações positivas de famílias pretas na arte, haja vista que estas famílias costumam ser retratadas com pais ausentes e/ou núcleos familiares disfuncionais. “Anderson vem de uma base, uma estrutura familiar negra e feminina importantíssima (…) muito cheia de ternura, o que me fez revisitar as histórias da minha família”.
DA MEIA GOTA À GOTA
Por anos, a literatura foi mais branca que a folha em branco que acompanha o vazio. Por anos as artes também foram brancas “tal como as teclas do piano” – como definiu Bernardo Guimarães em “A Escrava Isaura“, cuja moça branca era escrava. Bernardo desconsiderou que o teclado também tem teclas pretas. Larissa Nunes é uma das teclas – pretas – que compõem atual cenário artístico brasileiro. Mais plural, ainda que caiba muita discussão sob a ótica étnica, o audiovisual está credenciando mais atores negros a compor esse “piano”. Para 2024, a atriz estará vivendo duas protagonistas em três projetos dos quais está envolvida – nas séries “Vidas Bandidas” e “Americana”, para o Star+ e “Clube Espelunca”, série de comédia do TNT Series/HBO Max – sua estreia em comédia. “Vivo nessa busca, na atuação, em encontrar personagens que sejam esafiadores”. Musicista, Larissa também promete para o ano que vem, lançamentos nesta seara.
Neste ano, 2023, portanto, Larissa atuou em “Anderson Spider Silva“, da Paramount. Uma das poucas obras a contar com um elenco majoritariamente preto. Para a atriz, o projeto objetiva “reconhecer a história dele por fora das vitórias e do octógono. Importante dizer que estamos criando histórias com essa importância no protagonismo negro. Creio que este é o momento de refinar essas histórias. Tenho um prazer de dizer que a série do Anderson Silva é uma narrativa muito refinada sobre esse espaço. Falamos da saga de um homem brasileiro, um brasileiro que batalhou muito para conseguir as coisas que conseguiu, mas nunca por mera sorte. E muito se deve a uma base, uma estrutura familiar negra e feminina importantíssima, que é Daiane, mulher de Anderson e minha personagem. Mulher muito cheia de ternura, que me fez revisitar as histórias da minha família”.
Eu torço sempre pelas histórias nas quais a gente consiga refinar, sofisticar a maneira que se conta uma história negra – Larissa Nunes
É comum haver no audiovisual americano séries em que o elenco é majoritária ou totalmente composto por pretos. Uma resposta ao mainstream branco do “sonho americano”. Aliás, estas mesma produções “de massa” americanas, hoje têm uma cota para negros. Tal medida deveria ser aplicada no Brasil? Para Larissa é algo “complexo. Sinto que nos Estados Unidos, a experiência da diáspora negra, ela é diferente daquela brasileira. Até mesmo porque aqui a gente tem um dado muito relevante, que é a miscigenação e que sabemos que se deu à base de violência, de invasão. Construir a negritude brasileira é uma experiência muito diferente de construir a negritude norte-americana. Apesar de eu me inspirar muito em grandes figuras pretas de lá, sinto que isso acabaria forjando uma separação nas obras”.
Essa separação [de elencos por etnia] não é uma coisa que, por exemplo, pessoas pretas sistematicamente fizeram. Na verdade, sempre afastaram-nos da sociedade, da TV, do audiovisual. A branquitude sempre afastou-nos dos holofotes, do convívio social. Deste modo, quem estaria separando quem? – Larissa Nunes
A atriz prossegue em sua argumentação, dizendo: “Quando a gente está lutando por um elenco preto ou majoritariamente preto, isso incute em várias questões, como a reparação, como a importância, pela criação de um volume de história, um volume de inspiração para quem está vendo a gente, para quem nunca se se permitiu ver tantas e tantas vezes na TV, na internet. Então, o intuito de lutar por um elenco preto, eu não acho que seja para separar as pessoas. Eu acho que é sobre incluir a nós, incluir outras pessoas parecidas com a gente nesse imaginário cultural. Assim como na faculdade lutei pelas cotas, já que pessoas pretas, não tinham acesso à educação. Então, por que não pensar nisso para o cinema? Por que a gente não luta por isso? Nunca no sentido de separar os mundos. A gente está vivendo numa sociedade só. A gente quer fazer arte e histórias que se universalizem cada vez mais”.
Em 2022, Larissa esteve no elenco de “Além da Ilusão“, sua primeira novela, gênero do qual pretende voltar em breve. “No meu coração vem um grande desejo de voltar para a TV e voltar com uma boa história. Então é uma semente que a gente planta e que a qualquer momento eu quero vê-la desabrochando. Sinto que a TV tem uma importância muito legal. E foi um contato, uma experiência muitoboa em “Além da Ilusão” e que me deu vontade de fazer mais. Desejo que essas coisas acabem florescendo no ano que vem”. Ainda sobre a trama, ela diz que “Fazer essa novela foi gratificante para mim, porque foi a minha primeira personagem com um grande público. Acho que a TV agora tem uma grande chance na mão de poder construir um imaginário mais precioso para personagens pretas e outras personagens não-brancas também. Há atores indígenas, pessoas que estão aí fazendo. Então, para mim é legal olhar “Além da Ilusão” e ver os avanços que foram necessários naquela época, mas desejar mais”.
Sinto sim que as narrativas pretas precisam de um tempo para elas conquistarem o público. E quando digo tempo, eu digo destaque mesmo. É necessário dar o destaque para a gente ser visto e essa históriafazer o público refletir, se emocionar, gargalhar. Então, construir o imaginário na TV é uma meta – Larissa Nunes
O fazer artístico de Larissa permeia não só interpretar, mas também a música. Para o ano que vem ela pretende lançar um EP. “Ao longo dos anos eu estou amadurecendo mais e sem medo de me posicionar artisticamente, de dizer o que realmente para mim me interessa. Isso tem a ver com certeza, com a minha criação, com o jeito que eu aprendi a ser intuitiva, a observar, a escutar antes de sair falando. E se eu saio falando por aí é porque eu escutei consideravelmente muita gente, muitas coisas. E eu gosto muito de viver isso, e luto para que a minha arte seja cada vez mais universal e que ela atravesse barreiras.”
COR
“Eu queria falar menos de dor, mas a dor ainda está aí“. Esta é uma frase da escritora Conceição Evaristo que talvez sintetize a razão de tantos negros terem de falar de maneira recorrente sobre racismo. Estamos nos avizinhando das festas de fim de ano e é uma prática brasileira a de que todos vistam branco no Réveillon – tradição herdada do candomblé. Além disto, também faz parte da tradição, pular as sete ondas e/ou jogar flores para Iemanjá. Em contrapartida, o Brasil é o País que mais persegue os religiosos afro. Há nisso uma contradição? “Acho que é muito problemática. O cidadão, a cidadã que faz ali seu rito, que tem esse comportamento cultural, é apenas a ponta do iceberg. Quando falamos de intolerância religiosa sabemos que isso já tirou a vida de muitas pessoas, e impacta na vida de muita gente. Eu sempre levo este assunto de uma maneira um pouco mais ativa, no sentido de que a gente precisa se unir como sociedade. E não só as pessoas pretas passam por isso. É preciso olhar para o que a gente está fazendo de errado e de hipócrita e rever os nossos conceitos a partir de comportamento. A quem pratica esse ritual no fim do ano, é importante pensar no que está sendo feito para que aquela cultura religiosa se mantenha viva e respeitada”.
Larissa diz, também, que deve haver por parte das pessoas pretas um posicionamento assertivo, definitvo, quanto àqueles que, mesmo pretos, são cristãos, por exemplo. “As pessoas que cultuam as religiões de matrizes africanas precisam do apoio de todos os outros pretos que vivem na comunidade cristã e que podem lutar contra a intolerância religiosa. Tem muitas coisas por debaixo de tudo isso e é um assunto bem bem longo, eu diria, porque não é só a contradição dessas pessoas que fazem esse corre todo e que são hipócritas”.
A branquitude gosta de fetichizar os nossos costumes, os nossos corpos e não se comprometem quando a gente tá pedindo socorro, quando a gente está em dificuldade, quando a gente precisa de ação. Então, eu sempre fui do nós por nós e quem quer vir junto, que venha como aliado. Mas aos que desejam se aliar, a conta é alta e é preciso se comprometer para além daquilo que é óbvio – Larissa Nunes
Uma das motivações que fez Larissa virar atriz foi o contato com a sua avó, pessoa de baixa visão, que acabou apresentando a ela a importância da ludicidade. “Mesmo não enxergando, minha vó me criou. Sinto que toda a minha infância e construção, como garota e como mulher, se baseou a partir desses ensinamentos de sensibilidade, de escuta, de observação que eu via muito através da minha convivência com ela. Quando vovó contava as histórias, ela contava para que eu pudesse prestar atenção, para que eu pudesse me sentir importante nelas. Ela me ensinou sobre sensibilidade. Venho de um lugar onde a raiva sempre me impulsionou a ir para frente, e não apenas os sentimentos mais óbvios. A raiva, a tristeza e a vontade de vencer me impulsionam muito a ir para frente. O amor pelo que eu faço me coloca em contato com meus personagens.
A pergunta que encerra esta entrevista é talvez a mais curta, porém a mais plena de significado: O que é ser uma mulher negra? O que é ser uma artista negra? “O meu objetivo é ser uma artista e ser uma mulher. O que estou querendo dizer com isso é que, à medida com que eu sei quem eu sou e sei qual o meu papel na sociedade, que é racista, machista e tudo mais, eu posso ser eu. Essa é a minha maior contribuição para uma construção de valor para a sociedade. Então, em poucas palavras, quanto mais eu afirmo a minha história, tenho a certeza de que eu não estou fingindo ser a artista que querem que eu seja. Eu só tenho uma chance na mão, que é ser eu mesma, que eu posso então inspirar e ser uma artista que inspire as pessoas a serem elas mesmas o tempo todo. E é esse o meu farol. E quanto a ser uma artista negra, quero poder universalizar o meu trabalho, poder fazer pessoas de todos os jeitos se emocionem com ele. Quero que as mulheres me vejam, todas elas, e possam ver mulheres fortes, inspiradoras e que possam ver a minha contribuição para um coletivo”.
As palavras na boca de Larissa seguem brotando em profusão. Como Conceição Evaristo diz numa das frases que abre esta matéria, Larissa reitera o contexto da fala da autora: Ainda que meia gota me baste, mas eu quero a gota inteira. “Eu olho cada coisa na sua importância, mas no final das contas, quero poder ser eu mesma. Eu preciso mostrar o meu melhor o tempo todo, mas o meu melhor ele é humano, demasiadamente humano. Sinto que qualquer trecho dessa resposta, vai me representar, porque eu estou mesmo nesse momento de desencanar de muitos emblemas. Eu quero poder ser eu e contribuir para um mundo assim e fazer a minha arte ser arte que manda essa mensagem para as pessoas. Sejam vocês, não se percam, não finjam nada e não finjam costume”. No horizonte negro, a todo momento, é preciso sentir como quem olha e pensar como quem anda.
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