*Por Thaissa Barzellai
Quando o assunto é ‘Um Lugar ao Sol’, as opiniões do público são convictas e, dentre os núcleos da trama de Lícia Manzo, a personagem de Lara Tremouroux foi a que recebeu a sentença máxima. Depois de uma sequência de falcatruas e desgraças, como traição, chantagem e roubo, à luz do adágio “aqui se faz, aqui se paga”, a pichadora vai ter o desfecho pelo qual o público estava esperando: depois de chantagear Christian (Cauã Reymond) e conseguir mais dinheiro, a jovem vai gastar tudo em tintas e, durante uma tentativa de pichar um viaduto, irá morrer fatalmente. Na trama, a jovem está sempre se auto sabotando, sem conseguir sair do ciclo vicioso que é a sua vida e assim aproveitar as oportunidades que apareceram no seu caminho após o encontro com Ravi (Juan Paiva). “Percebo nela uma busca de se anesteciar dos próprios sentimentos como maneira de tentar se proteger. A necessidade e o desejo que ela tem de uma válvula de escape são urgentes, pulsantes e muito maiores e significativos do que o medo do risco que a situação oferece”, diz.
Por acontecer durante um momento que Joy exerce algo que genuinamente ama, aos olhos de Lara, a tragédia simboliza uma alusão à coragem e liberdade com a qual a jovem sempre encarou a vida, sem se deixar abater pela censura da sociedade em relação à sua vida e arte — único caminho que a jovem encontrou para expor as dores e angústias dos seus traumas. “Ao mesmo tempo, [a pichação] é também a circunstância em que ela mais se sente livre, vista e pertencente – dentro de um sistema capitalista que faz de tudo para normatizar e apagar narrativas como as dela’’, conta. Vista como indefensável, Joy é uma jovem da periferia carioca que vive uma relação disfuncional e relapsa com a mãe e, depois de engravidar de Ravi, entra em conflito entre as demandas da maternidade e as suas próprias por não querer abrir mão da sua liberdade.
A relação com o Ravi, considerado a régua moral da narrativa, antes um vislumbre de uma vida melhor, logo se transformou no fio condutor para diversas atitudes inescrupulosas, que só resultaram em desgraça na vida do irmão de fé de Christian e de todos que cercam a jovem. Para Lara, a rejeição do público é justificável, mas, enquanto atriz, foi preciso se distanciar dos possíveis julgamentos e encontrar um lugar empático.
“Acho que essa rejeição à Joy é, principalmente, uma reação às atitudes dela somada a um sentimento forte de proteção pelo Ravi. Eu acho muito difícil fazer esse julgamento, porque eu sempre parto do princípio de que todo ser humano deve ter o direito de se defender. Meu trabalho como atriz é justamente encontrar as motivações da personagem, fazendo o exercício consciente de não julgá-la. Muitas das suas atitudes são extremamente questionáveis, mas, a partir do momento em que visualizamos a sua realidade do seu presente e passado, podemos ao menos compreender melhor a raiz dos seus traumas. Porém, é claro, isso não significa concordar ou ser conivente com suas ações”, afirma.
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Como uma atriz que sempre busca trabalhos nos quais pode crescer enquanto cidadã e mulher, Tremouroux viu na personagem Joy uma oportunidade de ampliar seus horizontes e escancarar ainda mais a desigualdade social no país. Ainda que seja sob a perspectiva de uma jovem cisgênero e branca, a trajetória da Joy permitiu que a atriz repensasse mais uma vez o seu lugar de privilégio e compreendesse a estrutura social brasileira. “Lidar com as questões que a personagem carrega é também encarar minhas próprias vivências, enquanto me aproximo de outras e conheço também sobre elas. Vivemos num dos países mais desiguais do mundo, e esse abismo só vem se alargando devido à ausência de políticas públicas voltadas para as questões sociais, de gênero e raciais. O processo é intenso, mas me abre caminho para o autoconhecimento e para a aprendizagem”, reflete Lara, que considera a instrução uma das maiores delícias do ofício.
Inserida na complexidade da personagem, Lara conheceu ainda mais sobre a arte da pichação e o que motiva, muitas vezes, esses artistas. Enquanto expressão artística, a pichação ainda é vista com preconceitos, a ponto de ser considerada vandalismo. Sem qualquer pretensão de definir a outrem o que é arte ou não, a atriz acredita que a representatividade na novela pode contribuir para que a pichação não seja mais subjugada por ataques elitistas, classistas e higienistas e passe a ser vista como uma manifestação legítima. “É uma cultura muito rica, com seus próprios acordos, mistérios e estéticas. Aliás, o que nos faz considerar algo vandalismo, que régua é essa que elabora essa definição?”, provoca a atriz. Em sua visão de mundo, nos tempos atuais, a arte da ‘politicagem’ é mais digna da definição. “Vandalismo é o projeto de extermínio contra a população preta e pobre realizado pelas milícias e governo atual, vandalismo é o descaso do Presidente desse país com a população indígena, com os LGBTQIA+, as mulheres…”, completa.
Nas redes sociais, os comentários sobre a Joy eram quase todos relativos ao seu caráter, mas sua presença na trama pode desencadear outros debates que são extremamente contundentes e contemporâneos. Por mais disfuncional que seja, o relacionamento de Joy e Ravi trouxe mais uma relação inter-racial à nível nacional em um país no qual apenas 28% da população admite o seu racismo. Sem falar que, embora a inserção de negros em papéis de destaque e em relações do tipo esteja paulatinamente crescente no audiovisual, essa representatividade ainda é pífia, principalmente quando leva-se em consideração que a teledramaturgia brasileira tem 70 anos de vida. ‘Baila Comigo’ (Milton Gonçalves e Beatriz Lyra), ‘Corpo a Corpo’ (Zezé Motta e Marcos Paulo), ‘Por Amor’ (Maria Ceiça e Paulo César Grande), ‘Da Cor do Pecado’ (Taís Araújo e Reynaldo Gianecchini), ‘Caras e Bocas’ (Rafael Zulu e Fernanda Machado), ‘Lei do Amor’, ‘Bom Sucesso’ e ‘Amor de Mãe’ são alguns dos poucos exemplos que integram a lista junto à Joy e Ravi.
‘’Me sinto feliz e honrada de poder dar voz a relacionamentos mais diversos do que a teledramaturgia costuma mostrar. Mas, ainda assim, faltam muitos corpos e histórias na tela, como as de casais afro-centrados, indígenas, com corpos trans, gordos, dissidentes. Para além da representatividade, é necessário haver também proporcionalidade. Os corpos pretos deveriam estar ocupando muito mais lugares e em funções diversas, em todos os tipos de cargos, na frente e atrás das telas”, aponta. Em um relacionamento com um homem negro, o ator Felipe Frazão, Lara está em constante desconstrução e sabe que, por mais consciente e atenta que já seja, ainda há muito o que aprender. “Enquanto mulher branca, tento me desconstruir diariamente dos racismos que me habitam, é um exercício de atenção e aprendizado constante”, declara.
Apesar da repercussão negativa da personagem, Lara Tremouroux espera que, assim como ela, os telespectadores possam refletir sobre a complexidade humana, deixando de lado as ideias maniqueístas, a partir das emoções que a personagem provocou neles. ‘’Fico feliz de ter a possibilidade de fazer personagens que despertam os mais variados sentimentos do público e encaro essa reação de uma maneira positiva. Me alegra ainda mais quando as pessoas enxergam as dores, a humanidade, a vulnerabilidade da Joy”, afirma a atriz que atribui grande parte do mérito do papel ao olhar e escrita sagaz e sensível da autora Licia Manzo. ‘’A humanidade dos personagens, o fato deles não serem maniqueístas, só bons ou maus, é uma das coisas mais interessantes do trabalho dela. Não temos a clássica mocinha ou o típico vilão porque, na vida, somos contraditórios, múltiplos, cheios de qualidade e defeitos”, reflete.
Com o fim da odisseia em ‘Um Lugar ao Sol’, em breve o público vai poder ver a atriz em papéis mais afáveis e simpáticos nas grandes telas brasileiras. Ainda sem data de estreia, Tremouroux protagoniza os longas-metragens ‘Medusa’, o único brasileiro em Cannes em 2021 e pelo qual foi laureada com o prêmio de Melhor Atriz no Festival do Rio, e ‘Ela e Eu’, no qual atua ao lado de nomes como Andrea Beltrão, Mariana Lima e Eduardo Moscovis em uma dramédia familiar.
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