Kênia Bárbara celebra elenco 50% preto de “Amor Perfeito” e aponta descaso do governo com escola de teatro


Estreando num papel mega relevante na novela das 18h, Kênia Bárbara destaca a grande quantidade de pretos na trama das 18h, algo que é inédito da teledramaturgia. Além disso, a atriz é mais um dos novos rostos que compõem o elenco da novela vespertina. “Renovação é sempre fundamental. O público apelava por novos rostos também”. Em paralelo, a atriz coloca-se favorável ao investimento de políticas públicas mais incisivas na questão educacional voltada ao teatro. Tanto que foi voz ativa nos protestos que objetivaram clamar por obras urgentes na Escola Técnica de Teatro Martins Penna, no Centro do Rio, e faz duras críticas ao governo estadual fluminense: “Há um completo descaso e falta de atenção para com a escola e seus funcionários, alunos, alunas e alunes”. E mais: frente ao 13 de Maio – dia no qual se celebra (?) a libertação dos escravos, diz: “É uma data meio mentirosa. Foi assinada uma lei que não trouxe liberdade real, concreta para os nossos. Mentirosa, pois que estamos lutando por essa tal liberdade até hoje”

*por Vítor Antunes

Kênia Bárbara é mais uma das atrizes a compor o seleto grupo de vilãs negras da teledramaturgia brasileira. Historicamente, em poucas ocasiões, pretas estiveram movimentando de forma antagonista nas novelas – Escrava Isaura e sua vilã, Rosa (Léa Garcia) é um exemplo. “Amor Perfeito” se destaca não apenas por ter dois negros dos seus três personagens principais na trama, mas por ter ao menos metade de seu elenco composto por pessoas pretas. “Trata-se de um elenco 50% preto e tem a possibilidade de esse número aumentar. De mostrar personagens com mais profundidade narrativa, mais trabalhados, mais complexos, e suas variações humanas sobre comportamento das pessoas. Para mim é muito especial isso, de mostrar pretos em novelas com uma relação familiar estruturada, financeiramente estabelecidos”, diz Kênia.

A gente precisa ocupar mais espaços no audiovisual. São muitas histórias, muitas possibilidades, muitas versões a serem contadas e isso aproxima-nos da nossa realidade, do nosso país e da diversidade nesse sentido – Kênia Bárbara

Ex-aluna da Escola Técnica de Teatro Martins Penna, primeira instituição pública voltada ao ensino de teatro na América Latina, Bárbara lamenta o que classifica como “descaso [do Governo do Estado] com a Martins. (…) Isso me deixa muito triste. Há uma completa falta de atenção e cuidado para com a escola, que desde os anos 1990 vem sofrendo com a degradação. Historicamente, o Estado do Rio não é preocupado com cultura”, dispara.

Kenia Bárbara. Atriz observa a ascensão dos elencos afro nas novelas e os novos rostos na tevê (Foto: Márcio Farias)

AMOR PERFEITO

A atual trama das 18h tem recebido destaque por ser uma das primeiras a ter um grande elenco preto, algo que não é muito frequente. E todos estes em condições financeiras e sociais diferentes. Trata-se de algo que a atriz Kênia Bárbara, uma das vilãs da trama, celebra. Define sua personagem como sendo “uma mulher apaixonada pelo Orlando (Diogo Almeida) e quando ela descobre que depois da morte do tio sua família sofreu um golpe vindo do pai da Marê (Camila Queiroz), torna-se a razão da vida dela honrar a memória do tio, ainda que por meios moralmente questionáveis. Mas ela é uma mulher cuidadora. Zelou tanto pelo tio como pelo primo e tem essa devoção para com as pessoas da família, ainda que tenha um tanto de mau-caratismo”. A atriz também, acha pertinente a oposição entre as vilãs da trama – ela e Gilda (Mariana Ximenes). “Ainda que sejam malvadas, vivem realidades e experiências diferentes. Há um conflito entre elas”.

 

Kênia Bárbara é Lucília em “Amor Perfeito” (Foto: Reprodução)

De Minas Gerais como sua personagem, Kênia ressalta o que mais de mineiro emprestou à Lucília: “A gente tem muito um jeito mais quieto, mais da escuta, de observar. Eu gosto disso jeito. A gente observa, pensa para falar e quando o faz, é bem pontual. Mineiro é um povo de sabedoria, ensimesmado, que chega pelas beiradas. Acho que provoca um mistério. Minha personagem usa isso estrategicamente para atingir seus objetivos“.

Eu sou uma mulher preta, sou uma mulher de axé, eu tenho a África no meu nome. Digo que toda vez que reencarnar quero vir mulher, preta, mineira, de axé e bissexual – Kênia Bárbara

Por algum tempo a comunidade dos atores pretos queixava-se de que não eram escalados nas produções. Ainda que reconhecessem a importância dos atores, viam as emissoras optando pelo lugar comum e escolhendo sempre os mesmos artistas para interpretar personagens racializados. Para Kênia, “a renovação é sempre fundamental. O público apelava por novos rostos também. São as oportunidades que a gente tem e precisa de ocupar mais espaços no audiovisual. São muitas histórias e possibilidades, versões a serem contadas e isso aproxima-nos da nossa realidade, do nosso país, dessa diversidade no sentido de mostrar o nosso povo mesmo. A gente trabalha, estuda muito. Eu conheço muitos artistas pretos ou não-brancos maravilhosos, que correm muito atrás, mas falta que lhes deem essa oportunidade”.

Ainda no segundo semestre, a atriz estará no elenco de “O Outros“, série do Globoplay que trata, entre outras questões, sobre a milícia na Zona Oeste do Rio. “Tenho um respeito enorme por Joana, minha personagem. Trata-se de uma mulher preta que engravidou na adolescência de um homem branco vivido pelo Eduardo Sterblitch, que torna-se um miliciano. Ela tem uma relação complicada com ele, abusiva, tanto financeira como emocionalmente. Trata-se de uma mulher que perdeu muita coisa na vida”.

Os Outros. Série estreará no Globoplay (Foto: Reprodução/Globoplay)

CULTURA ARRUINADA

Kênia Bárbara era aluna da Escola Técnica de Teatro Martins Pena, tradicional instituição de ensino teatral carioca, de ensino público e que funciona desde 1908. A partir de 1950 passou a funcionar num solar neoclássico de 1835, tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) na década de 1930, e local onde nasceu o Barão do Rio Branco (1845-1912). Entre o fim do ano passado, 2022 e o início deste, 2023, tornou-se pública a ruína do prédio, que funcionava em péssimas condições, a ponto de ser interditado. O fato mobilizou a classe artística, que pedia melhoras urgentes para o imóvel.

A atriz fala sobre isto, e como forma de representar a pluralidade da escola, lança mão da linguagem neutra: “O descaso com a Martins me deixa muito triste. Aqui no Rio, o Governo do Estado delegou à FAETEC (Fundação de Apoio à Escola Técnica) administrar o espaço, mas há um completo descaso e falta de atenção para com a escola e seus funcionários, alunos, alunas e alunes. Precisamos fazer uma mobilização muito grande para mobilizar alunes todes para chamar atenção para o problema daquela casa, que não é de hoje. Recebemos mensagens de de ex-alunes ainda da década de 1990, que já falavam da degradação e da falta de cuidado para com o espaço”, denuncia.

Prossegue dizendo que os envolvidos com a causa “conseguiram entrar em contato com a Ministra da Cultura, Margareth Menezes, e que o IPHAN fizesse uma vistoria na estrutura. Não precisava que implorássemos por algo que deveria ser assim. A Martins Penna é um patrimônio cultural, formou e forma muita gente importante. É uma tristeza ver nossa escola abandonada, desrespeitada como esta sendo”. Segundo fala-nos a artista, a mobilização gerou, como resultado. “Um espaço onde os alunos estão podendo ter aulas enquanto a escola está em obras. Temporariamente, já que o prédio está interditado, as atividades estão acontecendo no  Liceu de Artes e Ofícios, no Centro do Rio. A única exigência que fizemos foi de que as obras fossem tocadas por pessoas que realmente entendessem de teatro e do espaço teatral”.

Sobrado da Martins Penna em ruínas no Centro do Rio (Foto: Reprodução/Facebook)

HISTÓRIA ESCRITA COM TINTA PRETA

Em atividade paralela, a atriz é fotógrafa e escolhe ter em suas lentes, códigos afirmativos. “Vejo na fotografia algo como guardar memórias, e desde nova tive essa preocupação, de não  esquecer coisas que vi e conheci. Sempre recorro para lembrar e acho que foi durante a pandemia que eu comecei a querer guardar as coisas que via, como uma espécie de alimento emocional. Vejo em tudo um pouco poesia. Como escrevo e sou uma mulher de axé, vi que no meu terreiro há muitas belezas a serem registradas. Aquele é um lugar que me inspira. Razão pela qual fiz um Instagram chamado “Sensível aos meus olhos” onde eu compartilho esse momentos e registros que me emocionam, atravessam e passam alguma mensagem”.

Doce, porém determinada como as águas de Oxum quando decidem vencer a cachoeira, Kênia, quando perguntada sobre sua opinião frente ao 13 de Maio – dia no qual se celebra (?) a libertação dos escravos, diz: “É uma data meio mentirosa. Foi assinada uma lei que não trouxe liberdade real, concreta para os nossos. Mentirosa, pois que estamos lutando por essa tal liberdade até hoje. Acho que o dia 14 é ate mais importante que sua véspera. Trata-se de uma data de branco para branco. Não é uma História”, afirma – e com seu abebê encantado, dança. Com toda a força da natureza que Oduduwa gerou.