*Por Brunna Condini
Nós somos muitos, na vida e na arte. Se somos feitos de muitas camadas e algumas controvérsias em nossas escolhas, por que uma personagem não deveria espelhar o mais humano em nós? Foi com essa reflexão que nosso papo com Juliane Araújo, que dá vida à advogada Kika em ‘Renascer‘, começou. A namorada de José Bento (Marcello Melo Jr.), filho mais velho de José Inocêncio (Marcos Palmeira), é uma mulher potente e empresta sua voz na trama das 21h da Globo para voltar o olhar para as sutilezas que constituem a construção de relações abusivas, entre outros temas. Ao mesmo tempo, a personagem também se fragiliza ao viver uma relação tóxica com o parceiro.
“A complexidade é uma característica muito humana, né? A gente existe de maneiras múltiplas. E esse é o caso da Kika. A narrativa dela é de uma mulher feminista, empoderada, economicamente estável, mas na ação se perde. A gente vem de uma sociedade estruturalmente machista, então até para mulheres que têm acesso a informação e o discurso mais aprimorado, é difícil”, elabora Juliane, que também está em duas séries do Afroreggae Audiovisual com o Globoplay, ‘Veronika’ e ‘O jogo que mudou a história‘.
Atualmente namorando Gilberto Machado, executivo de marketing da Sony Music, a atriz revisita seu passado e avalia se já viveu algo tão nocivo emocionalmente quanto sua personagem:
Nunca vivi uma relação tão disfuncional, principalmente economicamente, que é o caso da Kika. Mas já passei por relacionamentos abusivos, relacionamentos em que hoje em dia não acredito que vivenciei. E isso é algo muito natural para todas as mulheres, infelizmente. O relacionamento abusivo, passa por vários estágios. Existem estágios muito tóxicos e profundos, criminosos, como existem estágios que você demora muito tempo para entender que está passando por aquilo – Juliane Araújo
“Já lidei com várias amigas que estavam vivenciando isso em algum relacionamento na vida e é difícil de entender. Então, acho que minha função como atriz, com a personagem, como mulher e para com outras mulheres que passam por situações parecidas, mulheres que eu já estive próxima, é ter empatia e tentar interferir, caso tenha espaço, trazendo um olhar externo e levantando questões que, às vezes, as pessoas não conseguem sozinhas”.
Relação com os dias contados?
Ao que parece, em ‘Renascer‘ Kika vai reagir e mudar sua vida. Foi divulgado que a personagem resolve colocar um ponto final na longa relação que tinha com José Bento e vai à luta. Sobre a personagem, Juliane completa ainda: “Ela tem as suas dores, que são diversas e profundas, o que coube a mim no estudo das suas camadas, foi entender o motivo pelo qual ela permanece. E é muito louco o quanto a gente vê mulheres assim. Mulheres incríveis que se submetem a relacionamentos tóxicos e destrutivos”.
E pontua: “A Kika está nesse processo de reconhecimento do abuso dentro do seu relacionamento. De percepção de todas as camadas de cansaço, abandono, quebra de confiança. Acho que o primeiro passo é fortalecer a rede apoio, enxergar realmente os fatos e o que está realmente acontecendo e reforçar a autoestima”.
Cria da Baixada
Aos 34 anos, a carioca conta que começou a fazer teatro em projetos sociais, e por isso mesmo, acredita que iniciativas do tipo transformam vidas. “Não só nasci e fui criada na Baixada Fluminense do Rio de Janeiro, como grande parte da minha família permanece lá. Eu saí da Baixada com 21 anos. Hoje vivo na Zona Sul do Rio. Quem vem de lugares periféricos, na maioria das vezes, mantém uma raiz muito forte e enxerga a vida e as oportunidades mais profundamente. Isso não é uma regra, mas a capacidade que você tem de encarar todas as possibilidades que se abrem a partir do seu trabalho, os lugares que você visita, conhece, participa, culturalmente, principalmente, é tudo muito especial”.
A Baixada é um lugar de artistas e histórias riquíssimas, mas a cultura é muito massacrada, com pouco investimento e possibilidades para se viver de arte – Juliane Araújo
Juliane também é roteirista e revela que o ofício artístico é um caminho que trilha por vocação e determinação. “Não tenho artistas na família. Então, existe um atrito muito maior, principalmente quando eu comecei, porque você parte sem referências, começa do zero em tudo, exceto no repertório humano, o que é muita coisa para quem é artista (risos). Comecei a fazer teatro aos 8 anos e isso me ampliou profundamente, me abriu para possibilidades e me ofertou novas formas de ver o mundo e isso é muito bonito. O lúdico é importante para todo ser humano, ainda mais para aqueles que estão em formação, então enquanto minhas amigas tinham as questões habituais da pré adolescência, eu estava em um tablado brincando de ser uma árvore, um tigre, outra pessoa, isso é um barato. Sou muito grata aos meus pais por isso, porque mesmo distante de qualquer referência artística, acreditaram comigo em um mundo que desconheciam completamente”.
Como sua origem transformou seu olhar para a existência? “Me deu a possibilidade de enxergar a vida de forma mais crua, de entender as dificuldades do mundo e me fazer caminhar cedo, isso cria um tônus na gente. Quem dera o mundo oferecesse possibilidades iguais para todos, mas não é o caso. Tive minhas dificuldades, e olha que tenho muitos privilégios, mas isso me fortaleceu, existem inúmeras perdas, mas tento focar nos ganhos, e talvez uma das coisas que tenho de mais legal seja a preocupação e a alegria de hoje tocar para frente um projeto, o Ocupa Cena, que leva a jovens periféricos, como a criança que eu fui, a possibilidade de ver o mundo através de uma ótica mais inclusiva e transformadora”, expõe.
“O Ocupa Cena é um projeto que estou envolvida desde 2017, parou nos últimos anos por causa , principalmente, do governo passado, mas esse ano a gente vai voltar com um braço do ‘Ocupa‘ que será o Ocupa Cinema, levando para as periferias um espaço seguro de troca artística e capacitação de jovens. Fico animadíssima, é um projeto bonito e hoje tenho alguns parceiros que vão me ajudar a viabilizar o retorno. Vi muita coisa acontecendo nele, a gente tem muito trabalho pela frente e sei o quanto projetos assim são importantes. Eu venho de projeto social, sempre me emociona perceber que tem muita gente brilhante por aí”.
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