*Por Brunna Condini
Julia Konrad está feliz da vida e colhendo os frutos de um dos sucessos da Netflix, que está no top 10 em 60 países no momento: ela é uma das protagonistas de ‘Cidade Invisível’, que conta com criação e co-produção do brasileiro Carlos Saldanha, duas vezes indicado ao Oscar. A produção aborda o folclore do nosso país, exaltando a cultura popular e falando de preservação ambiental. Desde ‘1 contra todos’, Julia vem se tornando uma das atrizes queridas de séries e só deseja ir além. “Estou confirmada em mais duas séries que vem por aí. Tem coisa boa (risos). Fazer série é diferente, não sei se é melhor. Em novela a gente constrói com o público. Nas séries já dá para ter uma construção mais pensada, você sabe o arco inteiro da história, dá para construir mais camadas. Sem falar que é uma produção mais curta. Então, bate nostalgia, saudade de fazer”, detalha.
A atriz se parece muito com outra atriz também ‘queridinha’ do universo seriado: Tainá Müller – protagonista de outro sucesso da Netflix, o ‘Bom dia, Verônica’. E brinca com a semelhança (inclusive na voz!). “Eu e Tainá precisamos fazer um trabalho juntas! Quem sabe como irmãs? (risos). Sério, recebo mensagens direto de pessoas confundindo a gente”.
Julia, aos 30 anos, se diz satisfeita com a trajetória que vem trilhando até agora. A atriz, natural do Recife (PE), já morou durante 10 anos em Buenos Aires, na Argentina, estudou dramaturgia em Nova York, e vem desde 2013 abrindo seu caminho na TV, com trabalhos em produções como ‘O Sétimo Guardião’ e ‘Malhação’. “Ainda tenho o sonho de trilhar uma carreira internacional. Mesmo sendo radicada aqui, tenho laços com a Argentina e os Estados Unidos. Estou feliz com o caminho que a minha carreira está tomando. Claro que pandemia atrasou os projetos, mas o mundo precisou parar. É isso. Estou orgulhosa de onde estou agora”.
E também anda empolgada com a repercussão ‘Cidade Invisível’. Na série, ela interpreta Gabriela, uma ativista ambiental e mulher de Éric (Marco Pigossi), que não mede esforços para descobrir os reais motivos da morte de sua esposa. Julia fala da personagem, diferente de tudo que fez até o momento (alerta de spoiler!). “A história começa com a morte da Gabriela em um incêndio suspeito em uma reserva ambiental. O personagem do Pigossi vai tentando entender o que aconteceu. E a Gabriela fica voltando em flashbacks. Tivemos que construir uma relação muito rápida dela com o marido, a filha. Para que esse luto seja avassalador para o público”, analisa.
“Quando li o roteiro me lembrou muito o de ‘O Jardineiro Fiel’” (longa de 2005 dirigido por Fernando Meirelles com Ralph Fiennes e Rachel Weisz). A série tem também essa coisa de ir construindo as memórias do casal, porque a história dos dois já estava contada antes de acontecer. Tivemos que criar esses laços. A cena que achei mais forte de fazer foi a da morte dela. Mas a que mais impactou foi a cena final: o encontro dos dois em outro plano. Ele morre ‘brevemente’ e encontra a Gabriela em um céu, uma espécie de paraíso, e ela diz que não é a hora dele. Gravamos em Ubatuba, litoral de São Paulo. Estava nublado, era tudo ação e sai arrepiada, emocionada. Acho que foi a única cena que saí mexida. Mas um mexer bom. Também acredito nisso, que não acaba quando morremos”.
Julia acrescenta ainda sobre a aura mística da produção: “Já fui da umbanda, do espiritismo. Mas hoje não levo preceitos a ferro e fogo. Mas acredito em energias. E foi muito especial para mim lidar com essas lendas que vêm de uma espiritualidade, antes do Brasil ser o que é hoje. Acho que é um projeto que, pela primeira vez, observa essa mitologia brasileira com outro olhar e não com um enfoque infantil, como o do ‘Sitio do Picapau Amarelo‘, por exemplo. Nosso folclore não tem registro escrito, a passagem é oral, então participar de um projeto que está ressignificando isso com uma linguagem atual é muito especial”.
Em nome delas
Em junho do ano passado, a atriz, corajosamente, escreveu uma carta que foi publicada na revista Claudia, em que compartilhou memórias e danos de uma relação abusiva que viveu. Com o depoimento, ela pretende ajudar outras mulheres a se protegerem e a identificarem as relações deste tipo que possam estar vivenciando. No texto, ela contava que só identificou que vivenciou o chamado estupro conjugal, anos depois do ocorrido.
Por que ainda é tão difícil falar disso? Se arrependeu em algum momento? “O movimento feminista vem galgando espaços e conquistas, mas ainda estamos em desconstrução como sociedade. E acho muito poderoso quando uma mulher fala, porque fomos caladas, silenciadas por muitos anos. Até por outras mulheres. Então, falar cura e pode até proporcionar a cura coletiva, estimular que outras de nós procurem ajuda. Quando fazemos movimentos de expor situações de abusos, escancarar esses ciclos de violência, podemos educar, cessar ciclos de abuso. Essas coisas não estão certas, precisam mudar”, desabafa Julia.
Trecho da carta:
“Meu despertar tem sido um processo longo e doloroso. Entender que fui vítima de estupro desde o primeiro encontro com esse homem não foi fácil. Sempre me achei uma mulher forte, esclarecida. Não cabia na minha cabeça a noção de que logo eu, tão ativa na causa feminista, tão estudiosa, não tivesse sido capaz de reconhecer o estupro pelo que ele é. Mas existe uma razão pra isso. Nós como sociedade não falamos sobre estupro, a não ser o violento, cometido por psicopatas, com corpos usados e jogados em matagais. Nós, como sociedade, não entendemos o que é estupro. Que ele acontece diariamente dentro de casa. Que o estuprador a maioria das vezes é o seu namorado, marido, parceiro. Que a vítima pode até acreditar ter consentido a sua própria violação. Que ela não sabe que está sendo violada, e acredita que está apenas cumprindo o seu ‘dever’ (…) E é por esse motivo que eu decidi expor o que aconteceu comigo. Para que outras vítimas possam se reconhecer, falar, buscar ajuda, da forma que seja (…) Por isso, finalizo meu relato com um apelo: fale sobre violência sexual, violência física, violência psicológica, violência moral. Fale sobre estupro. Acolha mulheres que têm a coragem de expor sua experiência. Crie espaços seguros para que vítimas possam se abrir. Denuncie qualquer tipo de abuso, denuncie qualquer grau de abuso. Registre tudo, colha provas. Não espere. Busque uma rede de apoio”
“Não me arrependi de falar. Mas fiquei muito nervosa na noite anterior, não dormi. E assim que comecei a receber relatos das mulheres a partir da minha carta, tudo fez sentido. Cresci muito nestes oito, dez meses. Muitas mulheres foram se identificado comigo, contando histórias similares. Aconteceram uma ou duas críticas, mas era de se esperar. Até fiquei surpresa, achei que ia levar mais porrada. E foram críticas de mulheres. Haviam coisas nestas pessoas provavelmente ainda a descontruir, devo ter acionado gatilhos nelas”.
Há dois anos, ela namora o empresário Pedro Marques. E, feliz com a relação, afirma que foi acolhida por ele diante da decisão de tornar pública sua experiência. “Ele me incentivou a falar sobre e me apoia muito. A rede de apoio é fundamental, porque é um processo difícil. Mas é importante ficar atenta aos sinais. Se você anda ‘pisando em ovos’ com seu parceiro, tem alguma coisa errada, por exemplo. É importante falar sobre abuso e existem muitos movimentos que podem apoiar essas mulheres. Tenho muita vontade de me envolver mais ativamente com o tema. Não sei se com alguma instituição específica ou se através da dramaturgia”. E acrescenta: “Além disso, faço terapia, coisa que acredito ser essencial para todos nós. Inclusive, estamos vendo o BBB21 aí para provar isso”.
Sim, todo o Brasil tem ficado mobilizado com as questões que a atual edição do reality vem levantando, como o ‘cancelamento’ radical entre os participantes, a intolerância, o autoritarismo de opiniões e a falta de um diálogo mais humano e horizontal. “Comecei a assistir por conta da pandemia, ano passado. E eles abordaram no BBB20 temas bacanas como o feminismo e a sororidade, por exemplo. E como continuamos em situação que pede isolamento, comecei a assistir também o atual , mas tem me feito mal, parei”, conta.
“Acho que nesta edição, embora tenhamos que pegar o que vou falar aqui com ‘pinça’, já que tudo ali têm muitas camadas, vejo muitas situações de abuso. E quem está sendo abusado, porque está dentro, não consegue enxergar. Daí pensamos como é fácil sermos engolidos por uma narrativa. E quem está de fora vê que é uma distorção absurda da realidade. É um espelho do que acontece aqui fora. Ao mesmo tempo, acho que é perigoso ter isso como entretenimento. Permitir que esse tipo comportamento ou ciclos de abuso aconteçam em rede nacional. São assuntos sérios, que precisam ser abordados com responsabilidade”.
Artigos relacionados