* Por Carlos Lima Costa
O empoderamento feminino e o machismo são dois temas fortemente retratados no remake de Pantanal. Guta, vivida por Julia Dalavia, jovem com ideais feministas, tenta abrir os olhos da mãe, Maria Bruaca (Isabel Teixeira), que sempre viveu relação de completa submissão ao marido, Tenório (Murilo Benício), com quem a filha do casal tem fortes embates. Aos 24 anos, a jovem intérprete se assemelha à personagem. Ligada nas questões feministas é livre e independente. “Foi uma conquista de muitas mulheres que pensaram, agiram e lutaram para que chegássemos no lugar onde estamos hoje, no debate. Então, me identifico, honro essas mulheres e quero dar continuidade a isso”, frisa, em entrevista exclusiva, direto do Pantanal, onde está gravando a novela.
E enfatiza a função social de alerta e a transformação que a trama do horário nobre pode promover. “No Brasil, temos realidades bem diferentes. A bolha na qual estou inserida é uma entre milhares. Tudo caminha em diferentes cadências e tempos. Acho que existem cada vez mais Gutas que conseguem impulsionar as ‘Marias Bruacas’ que ainda existem e estão espalhadas pelo Brasil e pelo mundo. Creio no poder do diálogo e no da arte, de uma mulher nessa situação, ao assistir a novela, se reconhecer ali e começar a questionar esses padrões, a vida e a própria realidade. Isso já vai ser um grande passo”, avalia.
Questionada sobre esse momento de conservadorismo do meio político/religioso, evidenciado através de falas e atitudes machistas, ela não acredita que isso faça retroceder a luta das mulheres. “É um paradoxo, porque a gente vem avançando no debate e conquistando tanto na nossa realidade e parece que existe essa onda contrária tentando colocar um freio. Mas vejo que isso gera mais força para seguir adiante, para continuar nesse movimento de desmistificar o corpo, a liberdade de se empoderar dos nossos direitos como ser humano, como bicho que somos também. Estar no Pantanal traz muito de volta essa realidade, a consciência de que a gente é bicho também, que fazemos parte desse sistema que é a natureza. Nos distanciamos e nos vemos como um ser fora disso, que domina isso e a gente não domina nada”, enfatiza.
Com seu jeito suave de expressar, prossegue na reflexão de forma contundente. “Existe essa onda de resistência de certas pessoas que não conseguem enxergar essa liberdade, mas estamos cada vez mais avançando na desconstrução dessas amarras e convenções sociais que nos aprisionam em lugares criados pra gente ocupar”, celebra.
E relata sua experiência diante das situações machistas com as quais ela se depara como todas as mulheres. “Acontece frequentemente, porque o machismo é estrutural e está muitas vezes camuflado em situações cotidianas. Como mulher jovem por vezes encontro ainda muita dificuldade de ser ouvida, de ter a minha fala, os meus desejos reconhecidos e levados em consideração. Isso é uma luta diária tanto no trabalho, como no dia a dia, na família. E isso eu falo como uma mulher branca, com os meus privilégios, e ainda assim eu passo por coisas estruturais, por esse sistema machista, capitalista…isso é o dia a dia, é o normal infelizmente”, pontua.
Em relação à personagem, Julia aponta que se comparar à trama original de 1990, realizada pela extinta TV Manchete, Guta dessa vez vem com novos ideais, progressista, cheia de ideias, de debates que estão acontecendo agora. “Mas ela é tão livre e independente quanto a Guta da primeira versão. Naquela época, foi uma grande quebra de paradigmas, trouxe uma liberdade, um conforto com o próprio corpo, com ela mesma, que foi um choque. Ouço da minha mãe e das mães das minhas amigas que assistiram, como foi forte e importante. Essa agora é uma evolução daquela Guta. Ela traz o feminismo dela, as questões ambientais, muita reflexão e retórica também como uma menina que acabou de sair da faculdade. As cenas dela com o Jove, por exemplo, caminhavam muito por esse lugar da reflexão”, avalia.
Na preparação para viver a Guta, ela não conversou com Luciene Adami, intérprete da personagem na primeira versão. “Ainda não tive a oportunidade de encontrá-la, mas é algo que eu desejo”, diz. E prossegue: “Assisti alguma coisa da primeira versão, já estava com o texto na mão e em algum momento decidi parar de ver e focar mais no texto da nossa versão, porque a Guta vem diferente, traz outras questões e ideais de 30 anos depois. Senti que seria melhor não assistir tanto para inconscientemente não fazer igual ou deixar de fazer de tal forma por não querer que fique igual.”
Julia recebeu a incumbência de dar vida à emblemática personagem sendo uma das principais atrizes de sua geração. No melhor estilo worhaholic, tem sido presença constante na TV, trazendo no currículo produções como Em Família (a primeira novela), Boogie Oogie, Velho Chico, O Outro Lado do Paraíso e Órfãos da Terra. “Eu sou muito curiosa, tenho, principalmente agora, energia e foco de aprender. Cada trabalho é um salto de experiência pessoal quanto de atriz. Sempre termino diferente e amo essa sensação, então, tento dar vazão a essa curiosidade, aproveitar o máximo a energia para realizar trabalhos seja no teatro, no cinema ou na TV. Não sei se sou essa workaholic, que fica ‘meu Deus, o que vou fazer depois’. Acho que tudo vem acontecendo naturalmente, mas estou muito disposta e curiosa para saber qual é a próxima personagem e história, o que isso vai me trazer. Não tenho muita clareza de que espaço é esse, mas cada vez mais vem chegando histórias que eu me interesso contar e sou grata por essas oportunidades. Comecei nova no teatro e pra mim tem sido natural essa frequência, essa cadência, esse caminho que eu estou trilhando”, avalia ela, que somente agora, através da novela conheceu a região do Pantanal. E adorou.
“Quando comecei a me interessar pelas questões ambientais e a entender o impacto que isso traz para o nosso planeta, eu me distanciei do hábito de comer carne. Há três anos eu parei. Como ainda peixe, mas em ocasiões pontuais. E estar aqui foi um choque, porque quando assisti um pouco da primeira versão eu vi outra paisagem. Era mais verde, tinha mais água e agora encontrei muito seco. Nessa última temporada de chuva, não choveu o que eles esperavam pra que o Pantanal enchesse, então, agora está mais seco ainda. Tem muita coisa mudando, estamos vivendo no limite de desmatamento, de poluição. Quando você chega em um lugar desse onde a natureza é soberana e ela grita, é impactante, visível e triste”, constata.
Em uma de suas viagens para o local, chegou a ver alguns focos de incêndio. “Fiquei conjecturando se foi um fogo intencional, um acidente por causa da seca, que não deixa de ser responsabilidade do ser humano, porque mudando a estrutura da natureza, o tempo vai ficando mais seco, aí os incêndios ocorrem com mais frequência. É impactante e triste estar em contato com isso”, pontua.
Em sua primeira ida para a região, permaneceu quase dois meses no local. “Quando soube que eu ia participar, assisti o início da primeira versão da novela para entender que universo era esse, como é esse lugar. Mas estar aqui dá um impacto. É um lugar que é pura natureza. É um estado de presença muito presente estar no meio de todos os bichos, da natureza que tem aqui. Meio que volto um pouco as origens, me sinto conectada com o nosso estado bicho também. Não tenho palavras para descrever o lugar. Trabalhar aqui, então, é uma delicia, uma experiência incrível”, acrescenta.
Para ela, sempre que viaja em um trabalho, isso é muito bom para o resultado da história, porque te coloca 90% dentro do universo dela. “O Pantanal é parte enorme da história. Então, estar aqui, me desacelera, me deixa menos ansiosa, mais tranquila, centrada e focada. O lugar preenche o silêncio. Então, fazer cenas aqui é diferente, rico”, observa.
Ela não sentiu o menor desconforto por qualquer dificuldade que o local possa trazer às gravações. “As situações que nos atravessam quando estamos em lugares que desafiam nossos limites de conforto, contribuem para as cenas. Eu adoro natureza. Sempre dou um jeito de fugir para lugares assim quando não estou trabalhando. Quando chegamos aqui a primeira vez para gravar estava um calor enorme, um sol para cada um (risos). Agora, com essa onda de frio no país, aqui está muito frio. Da primeira vez, o calor foi a coisa mais desafiadora, mas essa temperatura alta nos deixa em um estado ofegante, que é bom para a cena, é real. É difícil reproduzir isso no estúdio. Adoro ter essa contribuição do espaço para que a cena seja a mais real possível”, conta.
Desde o início do envolvimento de Guta com Tadeu (José Loreto), Julia não esteve no Rio e não pôde sentir pessoalmente o frisson que as cenas tem provocado. “Antes de vir pra cá estava sentindo uma resposta muito boa do público na rua, indo no mercado, tomando um café na padaria. As pessoas vem falar com muito carinho. Amigos meus que não costumam assistir novela tem assistido e gostado. É bom ver todos os tipos de respostas e debates que a novela está gerando”, aponta.
Na região onde gravam a novela, Julia tem acesso a internet, mas ao contrário da maior parte das pessoas de sua idade, ela não é muito ativa nas redes sociais. “Eu sou zero ligada. Tenho necessidade disso como a maioria das pessoas tem hoje em dia pra resolver problemas e se comunicar. Vivemos através disso também, não sou extremamente conectada, muito pelo contrário. Quando chego aqui, tenho o maior prazer de desligar o meu celular, deixar ele no quarto e ver outras coisas. A internet aqui não é tão boa, mas a gente consegue resolver tudo que precisa, se manter em contato com as coisas da vida ou em casa, mas é um prazer poder estar aqui e me desconectar um pouco”, admite ela, cujo primeiro trabalho no audiovisual foi o longa-metragem de Renato Aragão, O Cavaleiro Didi e a Princesa Lili, aos oito anos de idade.
Julia foi crescendo diante do público. Para interpretar uma portadora do vírus HIV, em Os Dias Eram Assim, ela emagreceu 8 quilos. No Brasil, as mulheres sofrem muito uma cobrança estética. “Eu sempre fui magra. Acho que para toda mulher tem essa pressão, desde sempre. Isso é exacerbado no nosso meio. Ali foi um trabalho específico para aquela personagem. Eu decidi que me ajudaria a contar aquela história. Depois as coisas foram entrando em equilíbrio, eu fiquei mais velha, adquiri outros hábitos de me exercitar por saúde e acho que fui mudando muito. Eu cresci com personagens no ar, então, essa mudança foi nítida, mas não existe uma grande pressão para continuar magra ou mudar. Sempre foi natural essa minha relação com o corpo. Ter consciência, refletir sobre isso e me despir disso é um movimento meu”, finaliza.
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