* Por Carlos Lima Costa
Depois de brilhar na novela Um Lugar ao Sol, exibida até março, e interpretar um padre jesuíta na minissérie portuguesa Abandonados, ambientada no Timor Leste, que estreia, em outubro, na RTP, José de Abreu retorna à TV brasileira como coronel Tertúlio, um dos protagonistas de Mar do Sertão, trama das 18 horas, da Globo, que estreia hoje. Com humor, seu personagem vai mostrar a velha prática do coronelismo – latifundiários que praticavam o domínio político em suas cidades, obrigando os subordinados a votarem em seus candidatos. José vinha negociando com a HBO participar de uma novela que a plataforma de streaming iria realizar. Ainda em meio aos atrasos, recebeu ligação do diretor de Mar do Sertão, Allan Fiterman. “Veio esse convite da Globo, ele me disse que era protagonista, um puta papel, que eu ia amar. Isso realmente aconteceu quando li a sinopse. Queria até propor a Globo fazer um audiobook, porque é linda. O autor Mario Teixeira escreve lindamente, é um poeta, usa palavras rebuscadas, me lembra Guimarães Rosa (1908-1967)”, acrescenta.
“Ele é o dono da cidade. Tem uma fala que o filho conta que foi assaltado dentro da fazenda, aí ele diz: ‘No meu tempo, eu ia lá e resolvia isso a bala. Agora tem que respeitar uma tal de lei’. O filho diz para chamar a polícia. E meu personagem fala: ‘Mas tem delegado pra que? Eu indiquei o delegado pra nos servir’. Aí ele vai falar com o prefeito, diz que o elegeu. É aquela prática do poder político. O negócio é o seguinte, em Canta Pedra só tem um açude, fica na casa do coronel que fornece a água pra cidade (localizada no sertão, onde a seca predomina). As pessoas vão lá pegar água e quem tem a água tem poder. A novela tem esse ambiente de um microcosmo que a Globo já usou muito esse aspecto de criar uma cidade fictícia, mais parecida com Roque Santeiro, O Bem Amado”, explica sobre a trama, o ator, que interpreta o pai de Tertulinho (Renato Góes) e marido de Deodora (Débora Bloch), com quem já trabalhou respectivamente em Joia Rara e em Amazônia – De Galvez a Chico Mendes.
“Estou adorando contracenar com a Debinha de novo, com o Renato, com o Sergio Guizé, que interpretou meu genro, em A Dona do Pedaço. Os diretores, o Allan Fiterman e Pedro Brenelli, são extremamente sensíveis. Está uma delícia fazer a novela, é um papel muito bom, muito bem escrito. Tem esse lado do coronel que berra, grita, dá porrada na mesa, mas tem comédia, tem sempre um humor por trás. O autor, o Mario Teixeira é muito culto, um escritor premiado, ganhou um prêmio Jabuti (pelo romance A Linha Negra, em 2015). Ele usa palavras que eu nunca tinha ouvido na minha vida, tenho que pesquisar cada vez que vou decorar, como ‘onzeneiro’, que é o agiota que cobra 11% ao mês. Ele falou no primeiro dia que é uma novela de mulheres fortes. Fico pensando na minha mãe, que era uma sertaneja forte. Gravo bastante, mas estou muito feliz”, vibra.
EMPOLGAÇÃO COM ARTISTAS NORDESTINOS
Zé chegou ao Brasil dia 22 de maio e, no dia seguinte, teve a primeira reunião da novela, e dia 24, celebrou seus 76 anos. Parte do elenco foi para o Nordeste. Ele permaneceu no Rio, fazendo teste de roupa, maquiagem, aulas de prosódia, ensaios com o preparador de elenco. E exalta a presença de inúmeros artistas nordestinos na trama, como Titina Medeiros, Quitéria Kelly, Cesar Ferrario e Thardelly Lima. “Está muito gostoso de fazer e nós atores tivemos uma química imediata. Esse pessoal veio trazendo uma energia nova. Tem a menina nova, a Isadora Cruz (intérprete de Candoca, que vai viver triângulo amoroso com os personagens de Renato e Guizé), que é uma graça de pessoa. Fizemos uma cena de enfrentamento e ela é muito boa atriz, tem sustância, uma graça, é paraibana, fala com o sotaque da novela, natural dela. Isso vai dar um sabor. Todos eles vieram gravar com sangue nas ventas, com energia positiva muito grande”, enfatiza.
O ator, que já interpretou coronéis na novela Desejo Proibido e na minissérie Amazônia – De Galvez a Chico Mendes, não acha que o atual personagem tenha uma conotação política. “A novela tem um humor e o coronel é engraçado, vive no passado. Toda hora ele fala ‘no meu tempo’. É um cara que até hoje se orgulha de ter este título fictício de coronel. O avô dele teria sido coronel da Guarda Nacional”, conta. E acrescenta: “Por exemplo, Zé Paulino, vivido pelo Guizé, vaqueiro do meu personagem é dado como morto e dez anos depois volta rico pra cidade, e fala para ele: ‘Estamos em 2022, acabou o teu tempo, agora é a justiça que resolve, não você’. Essa cidade está tão fora de tempo que não faz sentido mais ter esse coronel mandando politicamente na cidade”, aponta. E imagina que nos interiores do Brasil ainda existam esses coronéis. “Não vê essa história de orçamento secreto, funcionário de prefeitura pegando verba, é uma loucura. Por exemplo, em O Bem Amado o prefeito queria inaugurar um cemitério. O de agora quer inaugurar um açude, mas a prefeitura não tem terra nem água para isso, nem isso permeia a novela inteira”, explica o ator.
ATOR TESTA POSITIVO PARA A COVID EM PORTUGAL
“Eu e minha mulher, Carol (Junger) chegamos em Lisboa, em janeiro, estava aquela onda da Ômicron que bateu na Europa. Eles falavam: ‘Se você não tiver três amigos com Covid, é porque você não tem amigos’. Eu e a Carol pegamos, em fevereiro. Eu já estava com três doses da vacina e não senti nada, nem a Carol. Agora, já tomei a quarta dose”, ressalta o ator que atualmente pode ser visto nos cinemas com o filme Aos Nossos Filhos, inspirado na vida da atriz e roteirista Laura Castro, que protagoniza o longa dirigido por Maria de Medeiros, sobre família homoafetiva.
“Faço uma participação afetiva. Quem iria rejeitar interpretar o marido da Marieta Severo? Ela é um bom astral, bem humorada, quando se solta, conta piada, adoro ela”, frisa. E fala sobre a trama do filme. “No começo da história, eles estão se separando. Depois de 50 anos de casados, ela quer separar. Ele ainda argumenta: ‘Besteira, vamos passar o resto da vida juntos’. A personagem dela foi perseguida pela ditadura, torturada, trabalha com meninos aidéticos na favela, mas apesar de ser de esquerda, não aceita a história da filha lésbica ter filho, não consegue compreender essa sexualidade que está cada vez mais liberta e sendo mais aceita. Na verdade, sempre existiu trans, gay, lésbicas. É da natureza humana. E o meu personagem é o que aceita tudo, dá apoio a filha nessa história de gravidez da mulher dela”, observa.
Semelhante ao personagem, o ator é livre de preconceitos. Ele é pai de Bia, que é trans, e lidou bem ao descobrir. “Aceitei a história da minha filha com a maior naturalidade. Eu comecei a fazer teatro aos 21 anos. Nesse meio, sempre teve gays e lésbicas. Morei com um casal gay, em Porto Alegre, em 1977. Eu, a Nara Keiserman e dois filhos, Theo e Ana. Nós alugamos uma casa grande e fizemos uma comunidade, que estava na moda. A gente ensaiava, trabalhava, todo mundo junto”, recorda.
Quando soube que minha filha é trans aceitei com a maior naturalidade – José de Abreu
Ele conta que nunca presenciou a filha sendo vítima de preconceito. “Ela não mora aqui. Está vivendo em Los Angeles, uma cidade mais liberal. Na última temporada que passou por aqui, estava de quarentena, fazia teste e vinha passar uns dias em casa. Mais recentemente, nos encontramos, em Paris, ficamos lá uns 15 dias, foi uma coincidência”, conta.
ENTUSIASTA DA POLÍTICA DESDE OS ANOS 60
Em meio aos trabalhos como ator, um assunto que sempre permeou também a vida de José de Abreu é a política. Ano passado, inclusive, cogitou se candidatar a deputado federal nas eleições que vão acontecer dia dois de outubro, mas desistiu da ideia. “Foi um erro de uma pessoa que analisou o meu caso. Eu não poderia trabalhar por cinco anos depois de sair da política e meus filhos também. Tenho um que trabalha com prefeitura, outro com empresas estrangeiras e não iam poder continuar. Eu ia quebrar os meus filhos, aí não dava”, justifica.
E fala sobre a expectativa para escolha do novo presidente. “Eu te confesso que dei uma refluída, porque tem gente mais importante ocupando o meu lugar, como a Anitta que está apoiando o Lula. Ela e quase todo mundo. Uma das coisas que o Jair Bolsonaro fez de bom foi trazer os artistas para o lado da esquerda, porque antigamente era eu, Paulo Betti, Osmar Prado, Antonio Pitanga, Leandra Leal, Dira Paes. Você contava no dedo quem se expunha. Agora, todo mundo está se expondo, apoiando o Lula, vendo como única solução a curto prazo para dar um fim a esse inferno que vivemos. Jamais imaginei que depois da ditadura a gente fosse viver um momento difícil, de tanto baixo astral. Aqui, eu não saio de casa, é um ataque atrás do outro. Eu estou em quarentena desde aquele Faustão que eu fui lá, há quatro anos, quando fui falar do golpe contra a Dilma Rousseff”, comenta.
E prossegue sobre o tema: “Não sei porque tem atores que ainda ficam no muro. A Anitta assumiu uma posição corajosa, mas a Juliana Paes não tem jeito. Não tem como não ter lado mais. O outro lado é o da barbárie, de matança de índio, de gay, de quem pensa diferente, de golpe de estado, de desmoralização das Forças Armadas. Não dá mais para brincar, tem que assumir. Agora, tem a Carta Pela Democracia (na quinta-feira, dia 11, ultrapassou um milhão de assinaturas). São dezenas de entidades, da FIESP a CUT, nunca vimos isso junto”, enfatiza.
Militante de esquerda desde os anos 60, que, em 1968, passou dois meses preso pelo ditadura militar, no Dops, em São Paulo, o ator acrescenta que se abate demais com o problema da fome. “Trinta por cento dos brasileiros não estão se alimentando direito. A gente tinha saído do mapa da fome. No segundo governo Lula, a ONU declarou que o Brasil estava sem fome. Voltar para trás é inacreditável. O que fez com o Ibama. Fiscal do IBAMA proibido de multar. Ele coloca gente que odeia a natureza pra tomar conta do IBAMA. É inacreditável. O Lula tinha que ganhar no primeiro turno pra acabar logo com esse negócio de golpe. Terceira via é o (Geraldo) Alckmin junto com o Lula, o (André) Janones, porque não tem jeito. O Lula é o único que vai poder tirar o Bolsonaro. Ele já sabe disso, por isso está apavorado, apelando cada vez mais. Em 2023, acho que vai ter que ser feito uma espécie de mutirão, um governo de reconstrução nacional, para reconstruir o IBAMA, o ICMBIo, o Ministério da Cultura, o do Trabalho, o do Planejamento, a Cinemateca, a Ancine, a Fundação Palmares, Biblioteca Nacional”, finaliza.
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