*por Vítor Antunes
Uma das cenas mais aguardadas de “Amor Perfeito” são o(s) encontro(s) de Marcelino (Levi Asaf) com Jesus, que na sua visão, é preto como ele. Criado entre os frades, o menino de bom coração terá ainda outros encontros com o Salvador e boa parte da sua história pauta-se, justamente, sobre a fé do menino junto ao filho de Deus. Em algumas situações Jesus foi representado na TV. Numa delas na obra homônima, da RecordTV, exibida em 2018. Na maior parte das situações, foi vivido por homens brancos e louros. Apenas em uma única ocasião, na Globo, na minissérie “O Auto da Compadecida” – que mais tarde viraria o famoso filme – Jesus foi preto e interpretado por Maurício Gonçalves. Na atual trama das 18h, o ícone do cristianismo é representado por Jorge Florêncio, em seu primeiro personagem de relevo na teledramaturgia diária. E, de forma igualmente inédita em novela, Jesus é preto. “O que vemos, de um modo geral, dentro das igrejas cristãs, são imagens de anjos e santos com pele clara, (…) resquícios ainda presentes em uma sociedade colonizada”, diz o ator.
Além da novela global, Jorge está envolvido com um projeto importante, também afro centrado e, de igual maneira, voltado ao matriarcado preto: O documentário “Mulheres bambas“, que conta a trajetória da mulher no samba – um ambiente profundamente marcado pela presença masculina. Dentre as figuras de destaque com as quais se encontrou, estão Tia Maria Joana Rezadeira (1928-2019), uma das guardiãs do ritmo Jongo da Serrinha – e responsável pela manutenção do ritmo – e uma das fundadoras do Império Serrano.
A COR DE DEUS
Ainda que fosse nascido no Oriente Médio, a maior parte das representações iconográficas remetem Jesus a traços europeus. Muito, claro, pelo fato da sede da igreja católica e das missões religiosas históricas terem partido daquele continente. Por óbvio, esse paradigma se estendeu à televisão. Foram poucas, inclusive, as obras teledramaturgicas a trazerem Jesus como personagem. E, na maioria das vezes, isso partiu de uma emissora religiosa. Na Record, na novela “Jesus”, fora vivido por Dudu Azevedo. Ainda na mesma emissora, na série “Milagres de Jesus“, 2014, foi a vez de Flávio Rocha. Voltando mais ao passado, em 1996, Denis Derkian foi o filho de Deus na minissérie “A Última Semana“, da CNT. Dois anos depois desta montagem no obscuro canal, a Globo fez o seu primeiro Jesus preto. Foi Maurício Gonçalves, na então minissérie “O Auto da Compadecida“, mais tarde transformada em filme. Florêncio, portanto, entra no rol de um dos pioneiros afro-Cristos da TV.
Qual a importância de se fazer um personagem dessa magnitude e sob uma perspectiva afrocentrada? Para o artista, uma vitória: “Todos ganhamos. Poder viver um Jesus Cristo não eurocêntrico, que foge a todos esses estigmas de um homem de pele clara, loiro e de olhos azuis é de uma relevância sem tamanho para televisão e também para população brasileira. O Brasil é um país de tamanho continental, onde, de norte a sul, observamos múltiplas culturas, diversas cores, uma multirracialização linda e plural”.
O que vemos, de um modo geral, dentro das igrejas cristãs, são imagens de anjos e santos com pele clara, fazendo com que ao longo dos séculos pessoas pardas e pretas não se vissem representadas imageticamente dentro dessas casas, que deveriam ser democráticas e inclusivas em todas as instâncias… resquícios de uma sociedade colonizada. Vemos líderes religiosos multirraciais, isso é um fato, mas olhar a imagem de um santo, um anjo, um referencial a quem se destina uma prece, pedido ou oração que foge desse padrão eurocêntrico é um outro fato bastante importante – Jorge Florêncio
E o artista prossegue: “Em “Amor Perfeito”, Marcelino tem uma figura de Jesus Cristo fora dos padrões, e nele a cumplicidade de um amigo, conselheiro e a quem destina suas orações e pedidos. E esse papel ser feito por uma das maiores emissoras do mundo, a primeira em teledramaturgia é de muita valia para os telespectadores e principalmente para as crianças, que podem ver nessa figura ao mesmo tempo que num lugar de liderança, de fé, também um lugar de representatividade, empatia e amor, que é o maior legado de Cristo, para além de qualquer coisa”.
Em seu primeiro papel de maior destaque numa novela, Jorge está numa novela de elenco majoritariamente preto. Perguntamos a ele como vê o avanço das pautas afirmativas no audiovisual. Segundo o ator, está “É uma realidade, e eu acredito que chegou para ficar, sem espaço para retrocessos. É lindo ligar a televisão hoje e das 18h às 22h você observar um elenco múltiplo em lugares de protagonismo. Observo que esse movimento se espalha para além do Brasil também, em séries e filmes nos streamings, pessoas de diversas cores e culturas ocupando lugares de protagonismo dentro do mercado audiovisual, não só em castings, mas em direção, roteiro, produção…é bonito de ver a diversidade ocupando seu lugar por mérito”.
Sou otimista, ainda que não seja ingênuo. Sei o que as estatísticas mostram e sei que vivemos num país racista, diariamente os noticiários nos mostram isso. Aos poucos vamos avançando para lugares melhores. É pra frente que se anda! – Jorge Florêncio
Veículos de comunicação apontaram que o ator que interpretaria Jesus seria o Thiago Lacerda, que já o vivera na montagem teatral em Nova Jerusalém. Todavia, Lacerda acabou, na trama das 18h, sendo redirecionado para viver o personagem Gaspar. Trata-se de um fato insólito dois atores etnicamente diferentes disputarem o mesmo personagem. Sobre o debate acerca da racialização de papéis e a consequente segmentação para a composição dos casts, Florêncio diz “sou de uma escola onde as pessoas não eram escolhidas para representar diante do seu tom de pele e sim pelo seu talento e dedicação ao longo das aulas. Essa escola fica no Méier, subúrbio carioca e chama Colégio Estadual Visconde de Cairu. Naquela instituição, e com anos à frente da minha companhia de teatro, a cor nunca determinou personagem. Já no mercado, presenciei diversas experiências de amigas que eram chamadas para esse ou aquele trabalho por que são pretas, mas no fundo elas só queriam mesmo era ser elas próprias, sem ter que nada, só ser. Acredito que é preciso que se transforme na escola de base esse pensamento, para que nas próximas gerações essas escolhas se deem naturalmente e não para cumprir números ou exigências de leis. É tão bom ser, e ponto!”
Quando chegará o momento em que o produtor de elenco, diretor ou produtor do projeto, pensará seu elenco não pelo fenótipo da cota, mas pela qualidade do seu trabalho? – Jorge Florêncio
ALÉM DAS FRONTEIRAS
Além da novela, Jorge está com um segundo semestre movimentado. Está fazendo assistência de direção do Orlando Caldeira, no musical infantil “Hora do Blec – Sonhos“, projeto de Yasmin Garcez e David Júnior que circulará por 3 arenas no RJ. “Na sequência”, diz ele, “Faremos uma temporada aos finais de semana de agosto no Teatro Eco Villa Rihappy. Sigo também fazendo a finalização de dois projetos audiovisuais: Meu curta ” Do sétimo andar”, onde dirigi, produzi e atuei, e o documentário da diretora Marcela Rodrigues, “Mulheres bambas”, onde trabalho na produção”. Ainda que o samba seja matriarcal, costuma haver uma invisibilização da mulher no gênero. Perguntamos ao ator como foi fazer este projeto e qual personagem ali presente mais o surpreendeu. “Esse projeto só é possível porque foi idealizado e dirigido, por uma mulher periférica que cresceu praticamente dentro da quadra da Estação Primeira de Mangueira, a Marcela Rodrigues, que teve a ideia de fazer um projeto de empoderamento das mulheres sambistas. “Mulheres bambas” conta a trajetória da mulher no samba desde os anos 30 até os dias de hoje, mostrando o que se transformou e o que segue ainda ecoando do machismo, dentro das quadras, rodas de samba e casa de shows com mulheres em protagonismo”.
Conta-nos o rapaz que em seu primeiro dia de filmagem, estava “na casa da Tia Maria Joana Rezadeira, uma das guardiãs do ritmo Jongo da Serrinha e uma das fundadoras do Império Serrano. Chegar naquela casa, num morro em Madureira, e ser recebido por ela e parte da família com uma deliciosa feijoada feita por ela própria, com roda de samba e Jongo não tem preço!! Não tem dinheiro em espécie no mundo que pague aquela experiência com aquela vovó com mais de 90 anos, super consciente, ativa, extrovertida e com um amor sem igual pela vida e pelo samba, ao qual se dedicou”. Por anos, o jongo esteve à perigo de extinguir-se e graças a projetos sociais alimentados pela agremiação, o ritmo se manteve e hoje é um bem imaterial fluminense.
Debruçando sua arte em outra questão social, Florêncio é um dos nomes por trás de “Kondima – Sobre Travessias“, um projeto sobre refugiados. Diante deste fato perguntamos ao artista qual a realidade mais surpreendente a qual ele esteve exposto junto a essas pessoas e como enxerga a política de acolhimento ao refugiado no Brasil. “Kondima é um misto de ficção teatral e documentário. Foi um período longo de vivência com muito aprendizado em Roraima, na cidade de Pacaraima com venezuelanos, e também em São Paulo, convivendo com pessoas vindas da Síria e de diversos países da África. Eles viviam em barracas improvisadas com papelão, lonas e jornais. Nós ouvimos muitos relatos – desde um juiz que tivera seu filho morto e perseguido politicamente, a famílias de mulheres com crianças buscando futuro digno aqui no Brasil. Já em São Paulo, ouvi relatos de violência sexual com meninas de 9 anos na África, militares sírios que cortavam as partes íntimas de meninos e estupravam suas mães… Muitos relatos duros”, aponta.
E continua: “Mas a realidade mais surpreendente pra mim era a presente, mesmo diante de todos esses fatos, cada qual na sua vivência, uma coisa unia e une todas essas pessoas: A fé. A esperança e o acreditar em dias melhores, mesmo diante das maiores atrocidades, a capacidade de resiliência para seguir buscando um novo lar, mesmo tudo no entorno dizendo não, é, sem dúvidas a maior e mais surpreendente esperança de realidade que vivenciei. É preciso se pensar e executar políticas públicas de inserção dessas pessoas dentro da sociedade como um todo, para que as mesmas criem autonomia e possam seguir sem dependência dos governantes. Esse processo necessita ser cauteloso e de médio e longo prazo junto dessas pessoas e famílias, com acompanhamento de instituições e apoio irrefutável do Governo. No Brasil nós temos hoje, catalogadas, 65 mil pessoas refugiadas, mas esse número certamente é muito superior, visto que no mundo, hoje, quase 90 milhões de pessoas foram forçadas a deixar suas casas e dessas, 27 milhões são refugiadas, ou seja, é uma conta que não fecha. Nem todas as pessoas em situação de refúgio tem o básico para solicitar abrigo, muitas delas saem somente com a roupa do corpo, o que por vezes pode atrasar esse registro nos dados e estatísticas gerais”.
A trilha de abertura da novela que Jorge atua diz que “o amor é um ato revolucionário”. Deste modo, qual outra revolução advinda do afeto que Florêncio torce para que aconteça logo? “A nossa contemporaneidade parece nos furtar diariamente desse sentimento, que é a base para tudo, para o todo. Olhar para o próximo, ter empatia com o seu semelhante, respeitar as diferenças e acolher a dor do outro, a meu ver, são revoluções advindas do afeto, extremamente urgentes para o nosso tempo, e as mesmas propostas por Jesus Cristo há séculos e séculos e pouco compreendidas por nós, ainda hoje”. Num mundo que ofereceu Jesus branco e louro, aquele vivido por Jorge age como um alabê que chega a Jerusalém ressoando os igbás. O dono das cabeças chegou e junto a ele, a música.
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