Jéssica Ellen sobre seus papeis que tocam feridas da sociedade: ‘As pessoas falam de empatia, mas não vejo ação’


A atriz e cantora, que brilhou como a Gata Espelhada no ‘The Masked Singer Brasil’, vem marcando sua trajetória interpretando personagens fortes que têm levado a sociedade a debater temas como assédio, racismo, homofobia. Fora da ficção, é também uma mulher de posições firmes. “Eu sou uma pessoa atenta ao meu tempo. Fui criada de uma maneira consciente. Sou questionadora, gosto de saber o que está acontecendo e de me posicionar sobre assuntos que me tocam, mas também tenho os meus momentos de fragilidade, de vulnerabilidade”, reflete ela, que, no momento, pode ser vista nos cinemas no filme “Cabeça de Nêgo”, sobre a ocupação de alunos em uma escola, promovendo um debate sobre racismo e educação

Ao tirar a máscara da Gata Espelhada, no The Masked Singer, Jéssica surpreendeu muita gente que não conhecia seu trabalho como cantora (Foto: Ronald Santos Cruz)

Ao tirar a máscara da Gata Espelhada, no The Masked Singer, Jéssica surpreendeu muita gente que não conhecia seu trabalho como cantora (Foto: Ronald Santos Cruz)

* Por Carlos Lima Costa

Em 2022, Jéssica Ellen, a Gata Espelhada, do The Masked Singer Brasil, vai celebrar 10 anos de sua estreia na TV. Ao longo de quase uma década, ela se tornou uma das principais atrizes de sua geração interpretando personagens fortes, que levaram para a ficção o debate de temas relevantes, como a questão de uma jovem assediada pelo patrão, na série Assédio; retratou a discussão do racismo, na minissérie Justiça, e, mesmo em Totalmente Demais, trama leve do horário das 19h, Adele, sua personagem, que era lésbica, ajudou a passar mensagem do amor sem preconceito. Diretores e produtores enxergam nela uma carga dramática ímpar para dar vida a esses papeis que tocam em feridas da sociedade. No momento, ela pode ser vista nos cinemas fazendo participação especial como uma professora no filme Cabeça de Nêgo, sobre a ocupação de alunos em uma escola, promovendo um debate sobre racismo e educação.

“Não sei se realmente me veem assim, mas vivi personagens importantes em fases da minha vida. Comecei no teatro, sou formada em dança e estreei em Malhação. Depois, vieram produções que me ajudaram a mostrar que eu poderia fazer cenas mais profundas, com uma carga dramática. Só que da mesma maneira que eu também não me limito a escolher um gênero musical, também não me limito quanto à atuação. Um artista que entenda a arte de maneira ampla como a que me proponho a fazer tem que estar sempre experimentando e saindo da zona de conforto”, assegura.

“Sou uma pessoa atenta ao meu tempo. Fui criada de maneira consciente. É difícil ter um acontecimento, onde assuntos são discutidos, e eu ficar em silêncio", explica Jéssica (Foto: Ronald Santos Cruz)

“Sou uma pessoa atenta ao meu tempo. Fui criada de maneira consciente. É difícil ter um acontecimento, onde assuntos são discutidos, e eu ficar em silêncio”, explica Jéssica (Foto: Ronald Santos Cruz)

Em uma cena da professora Camila, de Amor de Mãe, ela comoveu o público ao dizer: “Ser professor no Brasil é um ato de resistência. Só uma educação de qualidade pode mudar o nosso país”. Jéssica, inclusive, recentemente postou a cena em seu Instagram. Um ensino de qualidade é capaz de amenizar preconceitos como racismo, homofobia, gordofobia…? “Acredito que sim. Quando a gente constrói algo, quando temos uma educação que amplia os horizontes, a gente entende que a nossa realidade é a do outro e isso faz com que a gente seja mais empática com a história do próximo. Falta é muita gente colocar a palavra em ação. As pessoas falam tanto da empatia, mas na prática não acontece muito”, avalia.

Em paralelo a seus desempenhos como atriz, Jéssica se mostra também uma mulher forte, de posições firmes em relação a temas que envolvam preconceitos. “Eu sou uma pessoa atenta ao meu tempo. Fui criada de uma maneira consciente. Então, é difícil ter um acontecimento, onde assuntos são discutidos, e eu ficar em silêncio como se nada tivesse ocorrido. Isso faz parte da minha personalidade. Sou questionadora, gosto de saber o que está acontecendo e de me posicionar sobre assuntos que me tocam. Reconheço que tenho uma fala questionadora e potente, um posicionamento, mas também tenho os meus momentos de fragilidade, de vulnerabilidade. Tenho um pouco de receio de ser vista apenas como forte, porque é algo que historicamente foi designado para mulheres negras, mas que nem sempre necessariamente é verdade”.

"Me incomoda essa mistificação, ‘Jessica é uma mulher forte e nada atinge, nada abala’. Na verdade, todo ser humano tem seus dias bons e seus dias ruins”, desabafa (Foto: Ronald Santos Cruz)

“Me incomoda essa mitificação: ‘Jessica é uma mulher forte e nada atinge, nada abala’. Na verdade, todo ser humano tem seus dias bons e ruins”, desabafa (Foto: Ronald Santos Cruz)

E prossegue defendendo seu ponto de vista nessa questão. “O que me incomoda é essa visão da mulher negra como uma fortaleza, como uma mulher que aguenta muita coisa, que tem a sua natureza forte por si só. Isso é algo construído ao longo dos anos historicamente. A mulher negra é a que mais sofre violência obstétrica, são as que menos recebem anestesia, por exemplo, no momento de uma cirurgia, porque existe esse inconsciente coletivo de que nós somos fortes o tempo inteiro. Inclusive, uma das cenas que mais me emocionou com a personagem da Camila, em um hospital, ela falou justamente sobre isso. A cena viralizou e 90% das pessoas que compartilharam eram de mulheres negras que se viam ali tendo sua voz ampliada nesse sentido. Assim, enquanto mulheres brancas buscam ser independentes, a mulher negra busca ser vista com um olhar de cuidado. O feminismo negro é diferente do feminismo proposto por mulheres brancas, então, o que me incomoda é essa mitificação, ‘ah, a Jessica é uma mulher forte e nada atinge, nada a abala’, e, na verdade, todo ser humano tem os seus dias bons e ruins”, desabafa.

A densidade das personagens influenciou ao dizer sim ao convite para participar do The Masked Singer Brasil. Claro que o programa daria uma visibilidade a seu trabalho como cantora, mas não foi somente essa questão que a levou a topar. “Além de compartilhar a minha voz com mais pessoas, o meu intuito foi me divertir um pouco. A novela (Amor de Mãe) foi importante para mim, mas tinha uma carga de trabalho intensa. Então, queria fazer algo mais leve. Cheguei, inclusive, a comentar com muitos na Globo esse desejo de fazer algo mais leve, que eu não tivesse ainda experimentado. Assim, quando veio o convite, aceitei de cara”, ressalta.

"Após carga intensa de trabalho, queria fazer algo mais leve, quando veio o convite para participar do The Masked Singer Brasil", conta Jéssica (Foto: Divulgação)

“Após carga intensa de trabalho, queria fazer algo mais leve e veio o convite para participar do The Masked Singer Brasil”, conta Jéssica (Foto: Divulgação)

Com elogiada performance foi até a final, quando todos souberam, enfim, que era ela por baixo da fantasia da Gata Espelhada. A repercussão tem sido bastante positiva. “O programa tinha a questão do mistério. Então, foi uma grande surpresa para as pessoas, porque muitos não conhecem o meu trabalho como cantora e, sim, mais dos filmes, séries e novelas. E ficaram encantadas com a potência da minha voz”, pontua ela, que havia revelado o segredo apenas para duas pessoas: a mãe, “porque não tem como mentir para a mãe”. E  Dan Ferreira, “porque gravamos em São Paulo, então, não dava para ficar dois meses longe do namorado sem falar exatamente o que era”, revela.

A atriz nasceu e foi criada na comunidade da Rocinha, no Rio de Janeiro, a maior da América Latina, e deixou o local entre os anos de 2016 e 2017 . Ela fala sobre a trajetória de vida: “Eu sempre tive estímulo da minha mãe para estudar, trabalhar, querer ter mais da vida. Estudei em escola pública, Minha entrada, inclusive, na Globo, veio quando eu estava cursando a faculdade de teatro. Uma amiga que tinha acabado de fazer uma temporada da Malhação, me colocou em contato com um dos produtores. Fiz meu primeiro teste, comecei a trabalhar e nunca parei. É claro que o mercado é competitivo, com poucos espaços, mas o que fez com que eu continuasse atuando foi de fato a qualidade do meu trabalho, e um papel foi chamando o outro”, observa.

Capa do single Jambeira Flor, com participação de Renata Jambeiro

Capa do single Jambeira Flor, com participação de Renata Jambeiro

Após a final de The Masked Singer, Jéssica lançou o single Jambeira Flor. “É uma homenagem a Renata Jambeiro, artista que participa comigo do clipe. Uma cantora, atriz, bailarina, compositora. Tem um trabalho independente superinteressante e essa composição eu tinha feito para ela há uns três anos, quando começou a fazer uma pesquisa para um álbum e ia falar justamente sobre o feminismo, sobre a relação de amizade entre mulheres. Acabou não entrando no repertório. Agora, lembrei dessa composição e resolvi compartilhar com as pessoas para trazer um pouco mais de leveza, porque vivemos um momento difícil com a pandemia, de tudo que o Covid provocou na gente”, explica ela.

E prossegue em sua reflexão: “A pandemia impactou todo mundo. Cada pessoa lidou de uma maneira por conta das suas realidades, do descaso. Eu tive a chance de ficar em casa, contratada por estar fazendo uma novela, então, pude desacelerar o ritmo de trabalho que estava intenso, mas muitas pessoas perderam entes queridos, não tiveram a chance de serem vacinadas. Ainda vamos falar muito sobre isso. Ainda vai durar muito pra gente entender o que provocou em cada um de nós”, ressalta ela, que teve Covid-19 no final de julho do ano passado, quando seriam retomadas as gravações de Amor de Mãe, que tinham sido interrompidas no início do isolamento social. “Graças a Deus não senti muitos sintomas, fiquei só uma semana sem paladar, olfato, mas não sentia falta de ar. Só um cansaço”, recorda.

Em relação à música, ela conta que ainda não está trabalhando em seu terceiro álbum. O primeiro, Sankofa, que falava da relação com os orixás, foi lançado em 2018. No início desse ano, foi a vez de Macumbeira, mostrando a ligação com a umbanda. “Hoje, gosto de cantar sobre esse assunto, sobre algo que me identifico. Como artista e pessoa livre vou me permitir criar o que tiver me tocando. A arte é ampla e livre pra gente se limitar a um aspecto ou outro”, diz.

Jéssica lembra que teve covid ano passado, mas sem sintomas graves (Foto: Ronald Santos Cruz)

Jéssica lembra que teve Covid ano passado, mas sem sintomas graves (Foto: Ronald Santos Cruz)