Jeniffer Dias, atriz de sucesso, está em ‘Rensga Hits’ e constata haver poucos cantores pretos na música sertaneja


A atriz lançou em março deste ano a série “No Ano que vem” na qual ela co-protagoniza junto com Julia Lemmertz. O projeto, exibido pelo Canal Brasil e disponibilizado no Globoplay é importante por trazer mulheres à frente da produção. “Estamos acostumados a ver mulheres que abdicam de sua história em favor do outro, a cuidar do outro. E desta vez ficamos diante daquelas que escolher o próprio caminho apesar de tudo. É uma série feita por mulheres, mas que não é PARA mulheres”. A atriz também está na série “Rensga Hits”, que trata sobre o universo da música sertaneja. Ela traz a observação que são poucos os negros no estilo musical. Além disso, Jeniffer comenta sobre o recente apontamento das redes sociais sobre o antigo programa da Globo ‘Esquenta’ estereotipar o subúrbio: “Critica não viu o ‘Esquenta’. Ele tinha que estar no ar hoje, inclusive. Ele só agregou”

*por Vítor Antunes

Temos observado uma crescente na presença de atores pretos como protagonistas, tanto nas novelas como nas séries em projetos no audiovisual. Jeniffer Dias co-protagonizou com Julia Lemmertz, no Canal Brasil, a série “No Ano que vem“. O projeto se destaca não apenas por trazer uma personagem principal preta, mas também por tratar-se de uma equipe que quase em sua totalidade tem mulheres à frente. “Tratou-se de uma equipe feminina, escrita e liderada por mulheres. O roteiro é de Marcia Leite e a direção da também atriz Maria Flor, que conduziu tudo maravilhosamente bem. Importante fazer um trabalho onde as mulheres são parceiras, onde se fala sobre sororidade. Estamos acostumados a ver mulheres que abdicam de sua história em favor do outro, a cuidar do outro. E desta vez ficamos diante daquelas que escolhem o próprio caminho apesar de tudo. É uma série feita por mulheres, mas que não é PARA mulheres. É importante que os caras vejam também”.

Outro dos projetos que a atriz está fazendo é “Rensga Hits“, que aborda o universo da música sertaneja. Sua personagem é uma cantora preta que investe no gênero. “Fiz uma pesquisa profunda e não há muitos, porque eles não chegam para a grande mídia, ainda que estejam por aí, trabalhando e querendo chegar”. Jeniffer relembra, então, que uma das principais duplas sertanejas foi Cascatinha e Inhana, casal que fez sucesso com a guarânia “Índia“, de 1952, e do qual nem todo mundo tem memória. Além deles, as duplas João Paulo& Daniel – João Paulo morreu em 1997 – e Rick&Renner. “É um universo muito masculino. A revolução aconteceu depois de Marília Mendonça (1995-2021)”. “Rensga” já teve a segunda e a terceira temporada gravadas e estreia ainda neste semestre no Globoplay.

Outro assunto que Jeniffer revisitou foi o apagamento da memória no que se relaciona à negritude ou à história não oficial. “Nosso país foi forjado de maneira horrorosa, cruel, e por muito acreditarmos no que não era original. Vê-la contada como está sendo agora, trazida à tona, é a compreensão de que a arte tem o poder de transformar da melhor forma o que foi silenciado”. Para tanto, por contar sobre essa história que a história não conta, a atriz exalta projetos como “Filhos da Pátria“, que ela mesma fez na Globo, e que objetivava fazer troça da História do Brasil, e “Segunda Chamada“, uma série que aborda a vida de professores da rede pública.

Um dos filmes que Jeniffer fez, sob algum aspecto, também se apoia nisso. É “Mussum, o Filmis“. Nesse, o Mussum (1941-1994) retratado é muito diferente do que foi consolidado na memória coletiva: um preto, histérico, bêbado e cômico, ainda que rude. “Mussum não morreu de cirrose, como acreditam. Ele era cardíaco. Mussum ensinou a mãe a ler, inventou um instrumento musical [o reco-reco], foi um grande nome da Mangueira, um grande artista. Há uma crueldade para com os corpos negros”. Além desse tema, a atriz fala sobre a série “Rensga Hits“, que traz a observação de que são poucos os negros na música sertaneja.

Jeniffer Dias: É importante que se revisite a história oficial (Foto: Márcio Farias)

PÁGINAS DA VIDA

Ana (Julia Lemmertz) teve câncer. Bel (Jeniffer Dias) perdeu um filho. As cenas da série do Canal Brasil são longas, com diálogos extensos, inclusive durante os testes. A primeira cena feita por Jeniffer tinha dez páginas. Dentro do que costuma ser habitual, especialmente depois do advento internet e da linguagem proposta pela MTV americana, tudo passou a ter linguagem de videoclipe. “No Ano que vem“, não. De imediato, um nome que poderia ser associado a esse formato de linguagem nas novelas seria Manoel Carlos. Outra, Lícia Manzo.

Não é incomum que se pense num nome masculino primeiro. As referências imediatas são sempre homens. Para a atriz, estar havendo muitas mulheres assumindo a liderança de produções é “um movimento que acompanha o mundo. Sou uma mulher que gosta de se expressar de várias formas. Eu atuo, dirijo, produzo, já escrevi filme e quero representar as pessoas que me acompanham, mostrar que as coisas podem rolar, que pode haver mais oportunidades para mulheres e para mulheres pretas como eu. E quanto aos textos mais curtos, também, já que as coisas acontecem mais rápido. Mas o que acho interessante é que haja essa desaceleração de olhar para o mundo. A série tem muitas cenas paradas, longas, que remetem ao cinema francês”, compara.

Para a atriz, é importante que as pessoas compreendam algo para além do inconsciente coletivo que estabelece que produtos feitos para ou sobre mulheres precisa passar pelo terreno da ingenuidade, da leveza, da água-com-açúcar. “A série é oposto disso. É tensa, profunda, sensível, forte. O companheiro de Bel, minha personagem, passa pela questão da dependência com drogas, por exemplo. Ou seja, é um texto que dialoga com qualquer pessoa. Todo mundo pode se sentir representado, e conseguimos estrear no dia da mulher. Foi incrível linkar isso”.

Ainda nesta questão do auxílio mútuo entre as mulheres, Jeniffer, Lorena Lima e Luiza Loroza elaboraram o “Projeto 111“, que elas tocaram até meados da pandemia. Objetiva dar protagonismo às pessoas que “fazem arte urbana e não podiam aparecer de alguma forma. O intuito é que façamos com que conheçam essas pessoas e saibam que há gente boa na rua fazendo arte e querendo mostrar o trabalho. Era um projeto grande com mostra do trabalho dessas pessoas e exibição de filmes de artistas pretos e debates. Forma de oportunizar esses artistas. Hoje seria mais fácil retomar o projeto por meio de parcerias e quero voltar e fazê-lo”.

Jeniffer Dias e Julia Lemmertz são as protagonistas de “No Ano Que Vem” (Foto: Angélica Goudinho)

O AVESSO DO MESMO LUGAR

Em 2019, a Mangueira desfilou um enredo que questionava a forma com a qual se conta histórias. Mangueirense, Jeniffer destaca que se tornou artista justamente para dar voz àqueles que foram silenciados. “Me tornei artista por haver essa possibilidade, de contar histórias através do olhar diferente do que costumam dizer. Fico feliz por fazer parte desses projetos de carnaval, que são poderosíssimos, e que a Mangueira faz como ninguém. Neste ano a escola contou a biografia da Alcione, mulher que conta a vida de várias outras mulheres e como componente de Mangueira pude dar voz a isso, o que é incrível”.

Jeniffer Dias tem profundas relações com a Mangueira (Foto: Reprodução/Instagram)

Faz um tempo que o “Esquenta” programa de Regina Casé, saiu do ar nos domingos na Globo. No princípio, tido como um dos programas responsáveis por dar voz ao subúrbio e levá-lo para a frente da televisão. Hoje há quem acuse o programa de haver estereotipado a Zona Norte. Jennifer fez parte do elenco como assistente de palco. Para ela, quem “critica não viu o ‘Esquenta‘. Ele tinha que estar no ar hoje, inclusive. Ele só agregou. Quando escuto falarem isso, relembro o quanto eu só cheguei onde cheguei por influência do programa e da Regina Casé. O “Esquenta” foi tão importante para mim que chegou a ser tema da minha festa de aniversário. Meu sonho é que ele volte ao ar”.

Na época do ‘Esquenta’, eu fazia Engenharia por pensar que só assim ajudar minha família. Através dele as pessoas puderam ver que a televisão era possível. Acho equivocado o olhar de quem diz ser o Esquenta uma estereotipação – Jeniffer Dias

Recentemente, Jeniffer dirigiu Jorge Aragão num clipe do cantor. Mais uma aproximação com o ídolo do samba. Aliás, o pai da moça, Ernani do Cavaco, é um dos componentes do Grupo Pirraça, um dos mais representativos grupos do gênero. “Desde sempre estive nas rodas de samba e conheci todos ia para as rodas cantar e conheci eles todos. Jorge Aragão escreve de uma forma especial e específica. Dirigir um clipe dele, que é um cara importante na minha vida, é algo que fico emocionada só em lembrar. Tinha que fazer a linha posturada e calma, só para estar com ele”.

 

Aprendi com Jorge Aragão que quem cede a vez não quer vitória. Isso ficou na minha memória. Parece que ele escreve pra gente, pra nossa galera preta. Se a minha versão criança soubesse que eu, adulta, dirigiria o Jorge Aragão, ela não acreditaria. Somos realmente herança da memória, como ele diz numa das canções – Jeniffer Dias

Jorge Aragão é, sem dúvida, um dos nomes iminentes da carreira recente de Jeniffer. Outro que ocupa um importante lugar de afeto é o do seu companheiro, o comediante Yuri Marçal. Para falar do namorado, ela usou uma expressão dele próprio: “Yuri é o meu neigro. A gente estudou junto na Escola de Atores Wolf Maya, há muito tempo, mas não éramos da mesma turma. Nos conectamos depois que fui num show dele. Temos uma parceria de amor, um grande fortalecimento. Yuri trabalha muito, viaja muito e eu também. Uma relação de troca, de cura, já que somos dois pretos trabalhando e vivendo nossos sonhos.

Jorge Aragão e Jeniffer Dias. Ela dirigiu clipe do cantor (Foto: Yves Lohan)

Diante de uma conversa na qual falamos sobre várias personalidades pretas, Jeniffer ressaltou que há uma figura que deve ser melhor conhecida, melhor falada: “Carolina Maria de Jesus (1914-1977). Sempre que posso falo dela. Trago à luz essa mulher fora da curva. Gostaria que todos soubessem sobre essa mulher que conseguiu ouro, para além da possibilidade que tinha. Carolina Maria de Jesus é gente para caramba!”.