*por Vitor Antunes
Quando Jacqueline Laurence chegou ao Brasil, o país ainda não era, ao menos tão fortemente, a pátria das novelas. Longe disso. Nem mesmo a TV havia sido inaugurada. Nascida em 1932, em Marselha, desembarcou por aqui ainda adolescente junto aos pais e o irmão, Michel Laurence (1938-2014), que mais tarde se tornaria um dos mais importantes jornalistas brasileiros. Jacqueline não ficaria atrás. Seu nome é relevantíssimo no teatro e da arte dramática no Brasil. Ela dirigiu um dos movimentos teatrais mais simbólicos do Rio de Janeiro dos anos 1980, o Besteirol – que projetou Miguel Falabella, Guilherme Karam (1957-2006) e Mauro Rasi (1949-2003). Desde 2012 fora das novelas e há alguns pares de anos fora dos palcos, a atriz de 91 anos desabafa: “Não vou fazer planos para 2024. Eles são mais difíceis. Estou numa idade em que não somos mais procurados. Estou no mercado a quem se interessar, mas é difícil”.
Normalizaram no Brasil o procedimento de não chamarem atores mais velhos. O tempo passa. Sempre foi assim, tanto no teatro e ainda mais na TV. Evidentemente existe menos trabalho para quem passou dos 60 anos. Ainda que o teatro tenha peças para mais idosos que na TV, eles refletem a vida. E é assim que acontece – Jacqueline Laurence
Jacqueline diz: “Estou muito bem de saúde, de vida em geral, sem problemas e espero que assim continue”. A última novela a qual trabalhou foi “Aquele Beijo“, escrita por Miguel Falabella, seu amigo de longa data.
Há muito tempo que não trabalho nem na TV nem no teatro. Todos os que não morreram, envelheceram. Não vejo como poderia trabalhar com bastante intensidade, pois que não estou dentro deste mundo e envelheci demais. Assim é a vida. Assim é a vida – Jacqueline Laurence
A repetição da frase, como se fosse a reiteração de uma ideia, uma intencionalidade de aprofundamento é uma marca da sua fala. Tanto que Falabella emprestou-a à personagem vivia pela atriz em sua última novela. “Do jeito que as coisas andam, Marushka, prefiro ver o mundo com um olho só. Um olho só“, dizia Mirta na trama das 19h.
Atriz desde os anos 1950, Laurence aponta que “não daria conselho nenhum”, a quem resolve ser ator. “Não tenho vontade de dar aconselhamento e toda pessoa que vai para o teatro de verdade, com o empenho pessoal, com uma compulsão, ela sabe qual é o caminho dela. Pode não acertar de maneira imediata, errar, mudar de rumos, mas haverá uma vontade forte que a levará. Todos os que ingressam nessa profissão querem, no mínimo ser um bom ator, mas há quem queira ser um grande ator. E, para isso, a cada um, há um tempo”.
MADAME LAURENCE
Fruto de uma família de jornalistas – dentre os quais seu pai Samuel e seu irmão Michel – por muito pouco, Jacqueline não quedou-se às notícias. “Levei alguns anos estudando sozinha, interessando-me por coisas e sem sonhar ser atriz, até que encontrei um grupo que fazia teatro. Cheguei a considerar ser jornalista, mas um dia apareceu esse ‘desvio’ de fazer arte. Tenho orgulho dessa família que se perpetua até hoje na reportagem”. O irmão da atriz foi um dos fundadores da Revista Placar e seu sobrinho, Bruno, por anos esteve na Globo fazendo cobertura de esportes. Já ela, no meado dos anos 1950, participou da primeira turma da Fundação Brasileira de Teatro, escola fundada por Dulcina de Moraes, onde foi aluna de uma das mais importante atrizes franco-brasileiras, Henriette Morineau (1908-1990), a Madame Morineau, de quem tornou-se íntima. “Era uma atriz de primeiro plano quando eu comecei a estudar teatro. Era uma pessoa excepcional, uma personalidade fortíssima, inteligente, talentosa. Era ao menos 20 anos mais velha que eu numa época em que as pessoas não faziam plástica como hoje em dia”.
Tendo tão sólida formação teatral, perguntamos à Jacqueline como ela analisa o atual cenário de jovens atores. “Não tomo conhecimento do trabalho das escolas. Não conheço nada especialmente e acho que os atores hoje em dia, segundo consta, preparam-se mais para a televisão que para o teatro. Não tenho uma opinião formada sobre o resultado do trabalho das escolas de formação”. Por ser francesa, coube à Jacqueline personagens ricas, elegantes, aristocráticas. Ela não acredita que isso a tenha limitado. “Não existe esse problema no teatro. Os atores escrevem papeis de várias idades e modos. Na TV, por sua vez, houve uma época em que fiz muitas personagens que, efetivamente, eram adequadas ao meu tipo físico, à minha maneira de ser e comportamento natural. Evidentemente, pode-se fazer certos papéis ou não. É uma questão de tipo”, pondera.
Ainda que esteja há mais de 50 anos no Brasil e se considere brasileira, Laurence permance oficialmente francesa. “Aconteceu muita coisa durante a ditadura, e coisas difíceis. Nunca me naturalizei, e quando me naturalizaria, eventualidades sucederam. Depois, envelheci e não seria agora que me naturalizaria. Não tenho essa coisa de dizer que sou francesa. A contrário, sou brasileira. Podem dizer que acham o contrário, o que é natural, mas pouco me importa”.
Vinda de uma geração em que as mulheres eram cobradas a casar e ter filhos, Jacqueline não cedeu às pressões. Ou melhor, não foi sequer cobrada. “Nunca fui. Sempre tive um mau gênio e sempre respondi à altura. Não casei nem tive flhos, creio que por haver custado a me adaptar ao Brasil, por ter que tomar conta dos meus irmãos, ainda que tivesse pais vivos. Além de perceber que o teatro me ocupou muitos espaços. Sofri muito para perder meu sotaque. E os namorados que tive acabaram por ser, circunstancialmente, namorados”, revela.
REIS DO SHOWBIZ
Uma vertente pouco conhecida de Jacqueline é a de diretora teatral. Ele esteve por trás de quase todos os grandes sucessos do Teatro Besteirol dos anos 1980. Para ela o sucesso do gênero deveu-se por “funcionar principalmente em razão da personalidade dos atores, que também eram autores, tal como Miguel Falabella, Vicente Pereira (1949-1993), que representavam e tinham muita personalidade, que eram curtidos pelo público e por isso foram um sucesso extraordinário. Guilherme Karam era de uma inteligência rara”.
Às vezes tendemos a dizer que uma coisa tal é a melhor do mundo. Mas diante de pessoas excepcionais como eles, cujo talento era uma veia exposta, é, de fato, um grande momento da vida para qualquer um que compartilhasse daquele espírito – Jacqueline Laurence
Ainda segundo Jacqueline, “O Besteirol, marcou época. Uns tiveram mais sucesso que outros, mas foi um momento muito prezado, que fez de Falabella e Karam os reis do showbiz”. A artista prossegue em seus elogios a Miguel, “um ser excepcional de uma inteligência extraordinária. É o que de melhor se tem na nossa profissão”. Acerca do humor daquela época, Laurence diz que é um gênero cíclico:
A cada época há a sua comédia, criticada ou não. O humor sempre foi um crítico do mundo. O produzido atualmente, porém, não tenho visto tanto, mas não percebi grandes novidades, ou nada com marcas profundas como antigamente, nada muito qualificável. Hoje o teatro está muito modificado, com muitas dificuldades de trabalho, menos público, menos atores em cena. É outra época, outro mundo – Jacqueline Laurence
Ante a uma vida longamente vivida, Jacqueline diz sentir saudades de uma época. Fase em que havia as “grandes personalidades. Evidentemente isso acontece com todo mundo. Todos assistem às mesmas coisas dentro do seu tempo. Mas sinto saudades do auge do Besteirol, das peças de sucesso… Saudade de quando o teatro chegava mais perto do público, quando ele tinha o seu charme”, diz. Em meio a tantas palavra, Jacqueline desdiz a si própria, talvez por alguma modéstia, crendo não merecer ser ouvida quando afirma “não sei se o que digo interessa a alguém a esta altura da minha vida”. Interessa sim. Interessa-nos. Il faut, toujours, savoir.
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