*por Vítor Antunes
O caso Ângela Diniz (1944-1976) foi um terrível feminicídio que reverberou pelo Brasil. Na época, o crime nem mesmo tinha este nome e apresentava-se sob várias possiblidades. “Crime passional” era uma delas. Mas, se há nisto um fato insofismável é o de que por mais que houvesse várias possibilidades de leitura e nomeação, todas elas tinham uma culpada: “a mulher”. Mesmo morta, Ângela Diniz acabou sendo, de alguma forma, a culpada do crime, e sob a prerrogativa da “defesa legítima da honra”, tese jurídica que só deixou de ser aceita neste ano, 2023. Surfando na onda da dramatização dos true-crimes será levado aos cinemas e estreará no dia 31, “Ângela” , filme de Hugo Prata e que traz Isis Valverde no papel protagonista. O algoz da personagem, Doca Street (1934-2020), será interpretado por Gabriel Braga Nunes. Em 2006, Doca lançou o livro “Mea Culpa” no qual conta sua versão do crime e narra como era sua vida com a socialite.
Segundo dados da Rede de Observatório e Segurança, em 2020, ao menos 449 mulheres foram assassinadas em cinco unidades da federação. São Paulo foi o Estado que mais centralizou os crimes, seguido do Rio de Janeiro e da Bahia. No ano seguinte, o número saltou para 700 casos. Em 2021, mais de 66 mil mulheres foram violentadas. Essas informações e mapeamento só são possíveis por conta de haver mais denúncias e o reconhecimento da violência tal como ela é. Anteriormente, a sociedade validava e reconhecia tais agressões como possíveis e legítimas. A Delegacia de Mulheres só foi criada em 1985. A Lei Maria da Penha, desde 2006. A do feminicídio, é de 2015. Ou seja, há menos de 40 anos as mulheres têm amparo legal para si. Desde o crime que matou Ângela Diniz até hoje, segundo Isis, “seguimos sendo punidas, abusadas e violadas por sermos mulheres. Seguimos sendo assassinadas pelo mesmo motivo”.
SILENCIADAS
Nos últimos 50 anos, o Caso Ângela Diniz tornou-se referência quando o assunto é feminicídio. A modelo e socialite foi morta com quatro tiros no rosto por seu então companheiro, Doca Street, no fim do ano de 1976. Eles haviam discutido e estavam na casa da vitima, em Búzios, então distrito de Cabo Frio (RJ). Quarenta e seis anos depois do crime, Ângela será revivida por Isis Valverde, no filme que leva o nome da personagem principal. A atriz estabelece um paralelo entre o debate sobre o feminismo/feminicídio da época do filme e o atual: “Quarenta e três anos separam a morte de Ângela Diniz dos dias atuais, mas de lá para cá, no que garante a liberdade e a integridade da mulher, pouca coisa mudou. Temos leis mais protetivas, como a Lei Maria da Penha e a Lei do Feminicídio, mas os números seguem altos. E assim como naquela época, temos o movimento feminista, que exige nossa igualdade de direitos, pelo nosso direito de existir, escolher e desejar. Se naquela época tivemos o movimento “Quem ama não mata”, hoje seguimos com mulheres se articulando socialmente para serem ouvidas, como no “#MeToo” e no “NenhumaAMenos”.
Após o crime, o primeiro julgamento de Doca aconteceu em 1977, avançou ainda pela década de 1970 e em 1981, foi condenado a 15 anos de prisão. Caso nacionalmente conhecido, gerou grande comoção especialmente em favor do criminoso, que teve a pena atenuada em “nome da defesa da honra”. Essa tese jurídica só deixou de existir neste ano, 2023. Isis atribui esta tese ter perdurado por tanto tempo por conta de “vivermos em uma sociedade estruturalmente machista. Então, ela foi ficando ali, meio intocada, meio esquecida, apesar de ser completamente descabida. Nada dá o direito de alguém tirar a vida de outra pessoa. O direito à vida, inclusive, é garantido na Constituição, no artigo 5, no qual também é garantida a liberdade, a igualdade e a segurança”.
Quando a atriz nasceu, em 1987, a primeira Delegacia de Mulheres tinha apenas dois anos. A discussão sobre proteção à mulher ainda era muito incipiente. Nos anos 2000 quando havia maior problematização sobre esse assunto, o número de espaços voltados a defendê-las aumentou, mas não muito. Em 2015 havia apenas 131 unidades no estado de São Paulo e 14 no Rio. A Lei Maria da Penha só viria a existir em 2006. E a Lei do Feminicídio apenas 9 anos depois. Reflexo de um apagamento da história das mulheres, que por toda vida tiveram de mascarar ou apagar-se. Um exemplo poderia ser, inclusive, o primeiro papel de relevo da atriz na TV, a Ana do Véu de “Sinhá Moça”, que vivia recolhida, com o rosto coberto. Não teria sequer o direito de se relacionar com o rapaz que gostava. Ainda que aquele seja um recorte da época, a mulher hoje ainda é invisibilizada em sua existência e escolhas? “Sim. Lutamos muito para que nossas escolhas e desejos sejam levados a sério. Mulheres ainda hoje morrem por serem mulheres, apenas isso. Estamos diariamente afirmando nossa existência, nossos desejos e buscando viver de acordo com o que acreditamos”, diz Isis.
Além deste filme, Isis estará em outros dois projetos para o streaming, dos quais optou por não falar. Perguntada sobre o novo relacionamento, com o empresário Marcos Buaiz, limitou-se a dizer que está “bem e feliz!”.
VIOLENTADAS
Em 1973, a Revista Fatos e Fotos” definia a socialite mineira Ângela Diniz como uma pessoa que “costuma frequentar a praia de Ipanema em frente ao Country”. Neste época dizia-se que namorava com o filho de Chacrinha (1917-1988), Leleco Barbosa. A cada namorado novo, ou suposto namorado, dizia-se que “A Pantera Mineira está de sapato novo“. Pantera era uma gíria setentista para definir mulheres de atitude, vanguardistas, transgressoras. Em 1975, decidida a mudar de imagem, Ângela não queria mais ser uma pantera, mas uma mulher à moda tradicional da época. “Quero estar voltada e dedicada a cuidar dos meus filhos, Milton, Cristiane e Luís Felipe”. Não houve tempo para isso. No ano seguinte, ela foi assassinada violentamente ao tentar terminar o relacionamento que mantinha há cerca de quatro meses, com Doca. Nos casos de feminicídio é comum observar a brutalidade e desprezo pela vida das mulheres. Relembre outros quatro casos de feminicídio famosos e anteriores à lei Maria da Penha:
Caso Daniella Perez
O Caso Daniella, ocorreu em 28 de dezembro de 1992. Ganhou grande destaque na mídia e comoção na sociedade. Daniella Perez (1970-1992), atuava na novela “De Corpo e Alma” e foi vítima de um assassinato cometido por Guilherme de Pádua (1969-2022), seu colega de elenco, e por Paula Nogueira Thomaz, esposa de Guilherme naquele período. O corpo da atriz foi encontrado em um terreno baldio, na Barra da Tijuca, Zona Oeste do Rio de Janeiro, apresentando dezoito ferimentos de punhal. Guilherme e Paula permaneceram detidos entre 1993 a 1999.
Caso Claudia
Em julho de 1977, ocorreu o episódio em que Cláudia Lessin Rodrigues (1956-1977) foi estrangulada, agredida sexualmente e espancada por Michel Frank, filho de um dos sócios da fabricante de relógios Mondaine, juntamente com Georges Kour, um famoso cabeleireiro que possuía um salão no Hotel Méridien. Acusado pelo crime, Michel escapou para a Suíça, onde acabou sendo morto a tiros em 1989, sem jamais ter enfrentado um julgamento legal. Enquanto isso, Georges Kour continuou residindo em São Paulo. Vale mencionar que Cláudia era irmã da atriz Márcia Rodrigues.
Caso Eliane
Eliane de Grammont (1955-1981) era uma cantora e compositora brasileira, e seu caso ganhou notoriedade devido ao feminicídio, perpetrado por seu ex-marido, o cantor Lindomar Castilho. Esse crime acabou por se converter em um marco na batalha contra a violência direcionada às mulheres no país. Eliane já estava separada de Castilho havia cerca de um ano e realizava uma apresentação na cidade de São Paulo, quando o ex-marido a atacou com cinco disparos de arma de fogo. Ao longo do procedimento judicial, a defesa de Lindomar procurou justificar o assassinato ao explorar argumentos de que Eliane não estava cumprindo adequadamente o papel de mãe, e também a acusaram de infidelidade. O agressor também encontrou respaldo de parte da população, baseando-se no equivocado “direito” de tirar vidas em nome da suposta “defesa da honra” masculina. Lindomar permaneceu sob detenção entre 1984 e 1996.
Caso Aída
O Caso Aída Curi ocorreu em 1958 no bairro de Copacabana. Aída (1939-1958) foi capturada por Ronaldo Castro e Cássio Murilo e levada à força ao topo do Edifício Rio Nobre, na Avenida Atlântica, com o apoio do porteiro Antônio Sousa. No local, a vítima foi violentada por pelo menos meia hora. Na tentativa de encobrir o crime, os agressores lançaram-na do terraço do décimo segundo andar do prédio, simulando um suicídio. Ao final do processo, Ronaldo Castro foi considerado inocente das acusações de homicídio, sendo condenado somente por atentado violento ao pudor e tentativa de estupro. Recebeu uma pena de oito anos e nove meses. O porteiro Antônio Sousa também foi inocentado da acusação de homicídio e, condenado por outros crimes, desapareceu. Quanto a Cássio Murilo, que era menor de idade, foi considerado culpado, encaminhado para uma instituição de apoio a menores, de onde seguiu para o serviço militar. E não mais houve notícias sobre ele.
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