Irene Ravache está no Globoplay como professora de Libras e revela que, na vida real, passou a usar aparelho auditivo

*por Vítor Antunes

Falar de Irene Ravache não é fácil. Não só por ser ela uma atriz icônica, mas também por ser difícil escapar dos lugares-comuns que acabam por cercar alguém de seu quilate: adjetivos grandiloquentes, intensos, maximizados. Não. É humana. super-humana. Completará 80 anos, convive com um aparelho auditivo e continua com seu trabalho potente no palco. Continua  viajando pelo país com a peça “Alma Despejada“, um texto de Andrea Bassitt, direção de Elias Andreato. A montagem recebeu o Prêmio Bibi Ferreira e ela ganhou como Melhor Atriz. No Globoplay, está sendo transmitida a novela “Sol de Verão“, trama de Manoel Carlos marcada por ter um protagonista surdo e não vocalizado, Abel (Tony Ramos) e que tinha em Raquel, papel de Irene, sua professora da Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS), no terço final da novela.

Naquele mesmo ano, 1982, Ravache vivia a personagem principal de “Filhos do Silêncio“, uma mulher surda e também não vocalizada que se negava aprender a falar. A novela, além de revisitar o debate sobre essa questão, falava sobre a condição da mulher. O tempo é distante, mas e a condição da mulher? Mudou tanto assim? ” Eu tinha 38 anos quando gravei a novela. Me desquitei em 1968. Só haveria o divórcio em 1977. Enfrentei algumas coisas como não conseguir alugar um apartamento por ser desquitada e atriz. Nem a profissão era legalizada. Tínhamos um papel azul [que nos identificava como artistas e que era], o mesmo das prostitutas”.

A profissão de atriz só seria regulamentada em 1978. Até aquela época era grande o preconceito às atrizes, chamada até pelos reacionários como prostitutas. “Nunca tive um julgamento moral em relação às profissionais do sexo. “Quando menina, li um poema de Victor Hugo (1802-1885) que dizia: “Não julgueis nunca uma mulher perdida, nunca se sabe o transe em que foi vencida… “. Irene prossegue dizendo que “[Na agenda feminina] avançamos em muitas coisas, mas ainda não atingimos a equiparação salarial com os homens quando no mesmo desempenho profissional, o que é lamentável. É algo que deveria ser lei. Além disso, não entendo como um homem consegue manter amizade com homens que maltratam mulheres”.

As mulheres, mesmo conhecendo seus direitos, têm medo. Terra de coronel, a gente sabe, a justiça é capenga e mesmo assim, brutal – Irene Ravache

Irene Ravache e Jardel Filho (1928-1993) foram par romântico em “Sol de Verão” (foto: Divulgação Globo/Colorização: Site Heloisa Tolipan)

AONDE VAIS, MULHER?

Em 1963, Irene Ravache estreou no teatro com a peça “Aonde Vais, Isabel? “. Em 1982, com um Censura ainda vigente, não se sabia ao certo para onde o Brasil caminhava, muito menos as mulheres. “Raquel, minha personagem em ‘Sol de Verão‘, enfrentava seus medos. Foi muito importante, era como se fôssemos boas conhecidas e as mulheres agradeceram”. Aliás, em se falando desta trama, é uma das poucas de Manoel Carlos na Globo a não trazer uma Helena como protagonista. Helena era uma personagem citada, apenas. Irene se ressente por ser a única diferente do padrão? Não. “Só me dei conta muito tempo depois, não lembro de falarem sobre isso na época. É diferente, gosto disso [de não ser Helena]. E gosto do nome “Helena”, inclusive tenho uma neta chamada assim”.

“Sol de Verão” está no Globoplay, incompleta, mantida em oito capítulos. A falta de preservação da obra, para Ravache é o retrato de sermos “subdesenvolvidos. Isso devido ao pouco valor que damos aos nossos bens culturais em todo o seu segmento. Agrava- se à facilidade com que as coisas são rápidas e descartáveis. A pausa, que faz parte de um termo musical, é confundida com falta de ritmo por alguns. O que interessa é a novidade, o que ainda não aconteceu. No caso específico de “Sol de Verão” não sei se a Globo não tem todos os capítulos ou se é uma escolha, confesso que não sei”.

Na peça “Filhos do Silêncio” a sua personagem era deficiente auditiva, falava através da linguagem dos sinais, se recusava a aprender leitura labial e defendia seu direito de poder se comunicar através dos sinais. “Acredito que essa ainda seja uma questão que divide os especialistas. Meu ponto de vista é o mesmo da personagem: ela quer se comunicar como puder, não emitir sons que não pode escutar”.

 Hoje uso aparelho auditivo mas ainda assim quando as pessoas falam muito rápido ou articulam mal as palavras, o que é cada vez mais frequente devido ao uso do celular, fica difícil [ouvir] – Irene Ravache.

Irene Ravache e Cécil Thiré (1943-2020) começavam “Sol de Verão” casados. Ela transformou-se em professora de Libras (Foto: Arquivo/Globo)

Quando a televisão foi implantada, os autores vinham do teatro. Hoje em dia, muitos deles foram já apresentados à teledramaturgia como forma de linguagem e conceito. E, se há uma queixa recorrente entre os atores, é a de que os  veteranos estão cada vez menos presentes na tela. Para Irene, essa prerrogativa deve ser uma demanda de produção. “Temos ótimos autores, se não desenvolvem personagens consistentes para atores mais velhos deve ser por escolha de mercado. Elizabeth Jhin me deu uma personagem fantástica em “Além do Tempo“, a Condessa Vitória. Na minha opinião, e de muitos espectadores, “Além do Tempo” e “Espelho da Vida” deveriam ser exibidas no horário nobre, histórias com emoção, aventura, ação, envolventes na melhor tradição!”.

Em agosto, Irene completa 80 anos. Em 1982 disse à Revista Manchete: “Aceito de bom grado as rugas que aparecem em meu rosto, a flacidez dos meus seios, a minhas estrias na barriga, mas tenho bronca com isso”. Quando moça, ela quis ser bailarina. Na juventude, apresentou telejornal. Na maturidade, passou pelo desafio das drogas em casa. Ela era apresentadora do TV Mulher nos Anos 1980. No mesmo 1982, pediram-na que num ensaio para Manchete, fosse deslumbrante, glamurosa. Ela negou. “Não sou borbulhante. Sou uma atriz”. E posou com calça de tergal, camisa, tênis básico e a chave do Fusca presa no bolso. Juca de Oliveira, em certa ocasião, ao defini-la-disse: “É um triunfo”. E, diante de um argumento tão sensível e definitivo, não há nada mais que possa ser dito. Ela é, sobretudo, brasileira. Que sorte a nossa!

Irene Ravache em 1982: “Sou uma atriz!” (Foto: Revista Manchete/Biblioteca Nacional)