Quem assiste “O Sétimo Guardião”, atual novela das 9 da Rede Globo, com certeza já se apegou ao personagem Marcos Paulo. Surpreendendo a todos na trama, desde que se transformou em uma linda e poderosa mulher, a personagem que tem um nome e um passado como homem, trouxe para o horário nobre da TV uma reflexão importante. Interpretada pela atriz Nany People, conhecida por fazer de tudo um pouco dentro da atuação e também por sua condição de trans, Marcos Paulo não poderia encontrar uma artista melhor para contar a sua história. “Foi o personagem certo para a pessoa certa. A princípio, o papel iria para a Renata Sorrah, mas entraram na questão política e de representatividade de ter uma atriz trans para fazer uma personagem trans. Aguinaldo [Silva] pediu que apresentassem a ele uma atriz trans tão boa quanto a Renata Sorrah, eles mostraram o teste que eu havia feito e ganhei o papel”, explicou Nany, logo no início da nossa conversa. Quer saber mais? O site HT conta agora.
Nany é daquelas pessoas agitadas que contam meia hora de história em cinco minutos, ou seja, parece perfeita para interpretar Marcos Paulo. Fazendo questão de pontuar que não ganhou o papel de bandeja, ela informou: “As pessoas acham que eu fui convidada para entrar, mas na verdade eu fui chamada para fazer o teste. Fiz igual a todo mundo, teve toda uma preparação”. A princípio, Marcos Paulo pode ter gerado uma confusão na cabeça do telespectador, já que se denomina e reconhece como mulher e preferiu manter o nome masculino, mas na realidade, a personagem trans vai além do que foi esperado precocemente para ela e assume um lugar relevante na trama. “Eu cheguei a Serro Azul para causar mesmo, essa é a melhor definição”, revelou Nany, que em cena, é o calcanhar de Aquiles da vilã de Lilia Cabral, Valentina.
Assim, mesclando humor com representatividade, a atriz vem resgatando debates importantes no horário nobre da TV. Sua cena de beijo com Robério, interpretado por Heitor Martinez, é um ótimo exemplo disso. “A Marcos Paulo meio que o seduz e eles se beijam. Depois, quando ele descobre que ela tem nome de homem e é trans, fica furioso, vai pra cima e ela revida, né? Foi uma cena complexa, mas muito boa de fazer. A produção foi incrível nesse momento e o Heitor aceitou tudo numa boa. Ele foi ótimo mesmo, foi um momento de companheirismo”, afirmou Nany, que tem em “O Sétimo Guardião” o seu primeiro trabalho em um folhetim. Apesar do atual entrosamento com o elenco e a produção, ela admitiu em tom bem-humorado que no início não foi tão fácil assim: “A primeira gravação que eu fiz foi com o Tony Ramos, ou seja, que responsabilidade, né? Falei para ele ‘Você vai me desculpar, mas eu estou muito nervosa porque para mim isso é uma honra’. Ele me abraçou e disse que daria tudo certo, afinal eu tenho competência para desempenhar esse trabalho. Foi um cavalheiro sem dúvidas”.
Ainda que seja sua estreia em uma novela, a atriz tem uma vasta lista de projetos no currículo. “O meu trabalho mesmo é atuando e devido a esses espetáculos no teatro eu me tornei também colunista, repórter e apresentadora”, destrinchou ela, que já passou pelas maiores emissoras da televisão brasileira. Para Nany, que se denominava como Drag Queen até 2003, suas performances foram um diferencial que acabaram alavancando a carreira. Mesmo assim, ela fez questão de reforçar diversas vezes que atuar sempre esteve acima de ser drag e, mais tarde, trans: “A minha condição de trans sempre foi muito latente desde o início, mas ser atriz sobrepôs isso, porque senão eu estaria até hoje fazendo shows em cassinos. A artista sempre veio na frente e ter me lançado dessa maneira retirou aquela tarja preta de trans e humorista que geralmente colocam em nós. Os meus trabalhos no teatro foram endossando essa minha carreira e agora eu cheguei à Globo com uma maturidade muito maior, aos 53 anos de idade”.
Dessa forma, com um papel de enorme visibilidade, na maior emissora do país, Nany demonstrou manter os pés no chão ao pontuar que ainda tem muito a trabalhar: “O meu futuro não está ganho só porque agora estou na Globo. Se depois disso, surgir outra coisa legal, eu embarco, mas se não surgir, tudo bem também. Vou continuar trabalhando. Eu faço show, evento, bar, pizzaria, teatro, stand up, eu faço até casa de swing se me chamarem. É só me falar qual o palco que eu tenho que eu subo, conto meia hora de história e vou embora. Eu não nasci rica e não casei com rico, então tenho que contar história mesmo”. Ainda que, como disse acima, não venha de berço financeiramente privilegiado, tudo indica que Nany nasceu atriz. “Aos 4 anos eu fazia um escândalo pedindo para ir para São Paulo cantar na televisão. Eu queria fugir com todo circo que chegava na cidade. Lembro deles ainda montando a lona e eu já tratava de fazer amizade com todo mundo. Acho que é predestinação mesmo, eu nunca quis ser outra coisa a não ser artista, eu só não tinha consciência da minha condição de trans, até porque na época nem existia esse nome”, relembrou. E prosseguiu dando mais detalhes sobre a infância: “Eu não era um gayzinho, eu me sentia uma menina e não tinha nenhum pudor para esconder isso, o que claramente incomodava. Mamãe foi uma mulher muito à frente do tempo, que sabia que aquela era a minha condição e chegou a me mudar de colégio porque eu sofria bullying. Ela sempre me apoiou muito e desde os 10 anos de idade que não tem um dia que se passe sem que eu tenha um compromisso com aquilo que eu me dispus a fazer, sou muito grata a ela”.
Muito consciente de quem é e de suas escolhas profissionais e pessoais, ela afirmou que o preconceito, apesar de existir, nunca foi um impedimento para a realização do seu trabalho. Ao invés disso, a artista pontuou uma outra questão mais geral que dificulta todos aqueles que escolhem a arte como ofício: “A gente vive de uma profissão que eu tenho consciência que é de segundo turno. Cultura e estética não são prioridades nunca, somos literalmente escravos de Jó e fazemos com paciência e por devoção. Você só faz arte no Brasil com teimosia, porque vivemos de algo que não é respeitado, consumido e incentivado. É profissão de fé, não é vaidade, nem luxuoso”. E continuou relembrando a fala de uma admirada colega: “A Fernanda Montenegro disse em uma palestra que eu estava que quem quer entrar no teatro precisa saber que é um operário e que o teatro é uma amante, que te pede tudo e não promete nada. Dificilmente o trabalho por si só se paga e é preciso ter compulsão criativa”.
Resistente da cabeça até o dedão do pé, ela não pretende parar de fazer o que ama ainda que o contexto seja de desvalorização. “O melhor governo da minha vida sou eu mesma, porque ninguém me representa mais do que eu. Tudo que eu consegui foi porque fiz ser possível. Estou com 53 anos e desde quando eu ousei ser quem eu sou, nunca tive o aval fácil de ninguém. O meu nome tinha que ser Nany Piracema porque sempre fui contra a correnteza e nem por isso, desisti de criar a minha história”. Em 2019, ela estará envolvida com o personagem Marcos Paulo até maio e depois pretende retornar com o espetáculo “Caros Ouvintes”, além de rodar o Brasil com o stand up “TsuNany”.
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