Inteligência Artificial copia Manoel Carlos e Pedro Bial, recria músicas, artistas e “inventa” livros. É crime?


Marília Mendonça, MC Kevin e Elis Regina. O que ambos tem em comum? Todos são falecidos. Porém, nas últimas três semanas estiveram no centro de um debate sobre Direito de Imagem. Elis foi recriada num comercial da Volkswagen que, entre outras coisas, celebrava os 70 anos da montadora no Brasil e divulgava a nova Kombi – agora chamada de ID.Buzz. Gerou polêmica a “participação” da falecida cantora na peça publicitária, que não foi mais veiculada e está disponível apenas no Instagram oficial da Volks. A montadora foi notificada pelo Conar (Conselho Nacional Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária) no dia 10/07 e o processo ainda está correndo. Outro assunto que vem gerando discussão é a montagem recém publicada de um feat póstumo entre Marília Mendonça e MC Kevin. Outro ponto importante a ser discutido é que o ChatGPT copia o estilo de autores de novela e escritores, o que abre um perigoso precedente para a criação artística. Segundo o advogado Victor Drummond “É uma violação de direito de autor, tanto civil quanto criminal. O uso de uma obra em nome de alguém que não é o autor é, também, uma violação ética. As ferramentas de IA generativa (como o ChatGPT) preocupam muito”. O advogado sinaliza que este assunto, das relações entre Ética e Inteligência Artificial, é tão urgente que no próximo dia 02/08 será debatido na OAB-RJ

*por Vitor Antunes

O uso de Inteligência Artificial não é novo, muito menos  algo – com o perdão da palavra – desconectado do nosso cotidiano. Prompts de comando no ChatGPT já emulam o estilo de personalidades famosas como Pedro Bial e Manoel Carlos. Como a produção de textos pela plataforma é aleatória, textos produzidos por IA copiam o estilo destes profissionais, numa questão que trata-se de “uma violação de direito de autor, tanto civil quanto criminal”, segundo o advogado Victor Drummond, especialista em direitos autorais e um dos representantes da Interartis Brasil, órgão que zela pelo recebimento de direitos de autor e de intérprete. Ressalta que “as ferramentas de Inteligência Artificial (IA) generativa de textos são feitas, também, para permitir o desenvolvimento de textos “ao estilo” de autores. Isso, por si só, pode ser uma tragédia, porque oficializa a possibilidade de plágio como algo normal (…). Além disto, há de se considerar a possibilidade de desinformação gerada pelo ChatGPT, que recorrentemente vem sendo usado de forma oracular, como fonte confiável.  Localizamos imprecisões históricas em conteúdos de pesquisa em conteúdos produzidos por ele.

Outro problema iminente é o de “autores robôs”. Blogueiros e tiktokers fazem tutoriais apontando fórmulas sobre “como ganhar dinheiro fácil e rápido sendo autor”. Um influencer brasileiro, num desses vídeos, instruía o seu público sobre como escrever e ilustrar um livro infantil de forma totalmente “cibernética” e colocá-lo à venda em plataformas como a Amazon. Ele sugeria que os ganhos poderiam chegar a R$ 200 mil. Outro, americano, “escreveu” um livro desta forma e isso gerou debate internacionalmente.

Corretores automáticos de imagem ajustam de forma deliberada algumas fotografias desfocadas ou sem brilho, por exemplo. Ainda nas fotos, algumas, inicialmente preto-e-brancas, são colorizadas através de aplicativos inteligentes. Porém, às expensas da usabilidade como ferramenta, personalidades falecidas vem sendo “recriadas” à base da tecnologia, em anúncios comerciais ou em “músicas novas“. Tal como polemizou-se a recriação de personalidades falecidas – em seus corpos e vozes – como o “lançamento” de uma música de Marília Mendonça (1995-2021) em dupla com MC Kevin (1998-2021), e a propaganda da Volkswagen, que recriou através de deepfake a cantora Elis Regina (1945-1982), morta há 41 anos. O Conar (Conselho Nacional Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária) questiona “se é ético ou não o uso de Inteligência Artificial (IA) para trazer pessoa falecida de volta à vida como realizado na campanha”.

O problema é tão grave que a atriz Whoopi Goldberg já enfatizou em seu testamento a proibição de qualquer holograma digital com sua imagem após sua morte: “Não quero”. A atriz americana de sucessos como “Ghost – Do Outro Lado da Vida” e “Mudança de Hábito” revelou esta cláusula do testamento no programa “The View“.

Elis Regina (ou quase ela) em comercial da Volkswagen (Foto: Reprodução)

O CÉREBRO ELETRÔNICO FAZ TUDO

Por mais que os desafios tenham sido árduos, a coragem que demonstraram em permanecer aqui é digna. Assim como em toda jornada, alguns trajetos se encontram com desvios que os conduzem a encruzilhadas inesperadas. E chegou o momento em que um desses caminhos precisa se despedir de nossa estrada. O destino é incerto, e somente um de vocês seguirá para novos horizontes, enquanto os demais deixarão um pedaço de si neste solo que se tornou também seu lar. O participante a deixar a casa do Big Brother é… [pausa dramática]” . Todo o parágrafo anterior poderia, perfeitamente, ser um discurso de eliminação do Big Brother Brasil escrito por Pedro Bial. A fala poética e figurativa que antecipava as eliminações durante o período que o jornalista/escritor esteve à frente do BBB – entre 2002 e 2016 – foi recriada por IA, no ChatGPT. A ferramenta emulou-lhe o estilo, inclusive com pausas e “marcações”. Importante ressaltar, obviamente, que nenhuma palavra grafada anteriormente, em itálico foi escrita ou falada por Pedro.

O grave problema não termina aí. A seguir, um exemplo ainda mais facilmente reconhecível para o telespectador de novelas. Trata-se de uma sinopse breve de uma trama “escrita por Manoel Carlos”: “Helena é uma mulher sofisticada e bem-sucedida, dona de uma galeria de arte renomada no bairro do Leblon. Sua vida, aparentemente perfeita, muda completamente quando um misterioso e atraente estrangeiro, Martin, cruza seu caminho durante uma vernissage. (…) Sua melhor amiga, Beatriz, enfrenta problemas em seu casamento e procura o apoio e a sabedoria de Helena para lidar com a crise. Enquanto isso, seu irmão mais novo, Pedro, um músico talentoso, vive uma intensa relação com Marina, uma artista plástica que guarda segredos do passado.” Na novela “inventada” pelo robô, chamada “Eterna Helena“, estão presentes não apenas o universo manequiano, mas TODOS os nomes usuais das novelas do autor. Das três novelas de Maneco  que estão, ou estarão no ar  – “História de Amor“, “A Sucessora” e “Mulheres Apaixonadas” – em todas há uma “Marina”, por exemplo.

Marina Steen (Susana Vieira) era a protagonista de “A Sucessora”, atualmente em exibição no Viva (Foto: Nelson di Rago/Globo)

O advogado Victor Drummond distinguiu-nos se este caso trata-se ou não de plágio – ou de alguma variante relacionada: “O plágio é um instituto jurídico, muitas vezes, difícil de comprovar, pois que não tem parâmetros legalmente indicados. É uma violação de direito de autor, tanto civil quanto criminal. O uso de uma obra em nome de alguém que não é o autor é, também, uma violação ética. As ferramentas de IA generativa preocupam muito os autores mas deveria preocupar também os leitores e todas as pessoas que recebem textos que, no final, poderão ser impactadas com o resultado. As ferramentas de IA generativa de textos são feitas, também, para permitir o desenvolvimento de conteúdo “ao estilo” de autores. Isso, por si só, pode ser uma tragédia, porque oficializa a possibilidade de plágio como algo normal”, afirma.

Diante dessa questão, Victor lamenta “não haver um impedimento de funcionamento das ferramentas e, pela inexistência de critérios objetivos, será muito difícil apontar o plágio permitido por elas. Num primeiro momento, me parece que o Direito não conseguirá dar uma solução eficaz imediata. A saída terá que ser técnica. Ferramentas que identifiquem o plágio ou as que permitam o desenvolvimento dos textos podem ser uma boa solução inicial”.

Não se pode normalizar o uso de textos desenvolvidos por ferramentas de IA generativa “ao estilo de um autor” como se fosse algo aceitável ou normal – Victor Drummond

Aplicativo cria logo para uma novela que não existe

“Ondas de Copacabana”…

Diante deste caso, há, também um grande risco de compartilhamento de desinformações e notícias falsas, o que torna ainda mais urgente a regulamentação dos conteúdos veiculados na Internet, bem como um olhar atencioso ao Marco Civil da Web. Mais uma vez, nota-se que o papel do profissional jornalista/pesquisador não está totalmente sob risco diante dos prompts do ChatGPT. Falta ao cérebro eletrônico o discernimento sobre algumas informações, o que enche de imprecisões o conteúdo ofertado por ele. Quando um usuário lista as 10 mais importantes novelas brasileiras, o que ele fez, uma delas, descreveu da seguinte maneira: “Gabriela” (1975). Baseada na obra de Jorge Amado, a novela escrita por Walcyr Carrasco foi um sucesso estrondoso. Sonia Braga brilhou como a sensual Gabriela, conquistando a todos com seu carisma“. De fato, “Gabriela” foi exibida em 1975 e teve em Sonia Braga sua protagonista. Mas esta versão foi escrita por Walter George Durst (1922-1997). Coube a Walcyr Carrasco o remake da obra, exibida em 2012, e que contou com Juliana Paes no papel principal. Nos Anos 1970 Walcyr ainda não trabalhava como autor. Sua primeira novela foi escrita em 1989.

Juliana Paes em “Gabriela”. Inteligência Artificial confundiu as duas versões da novela (Foto: Estevam Avellar/Globo)

Importante destacar que a Internet tem encontrado formas de capitalizar em cima desta ferramenta. Um tiktoker brasileiro, prometeu ganhos de até cerca de R$ 200 mil “apenas com e-book’s escritos através do ChatGPT“. No tutorial, o blogueiro diz que o interessado não precisa fazer muito esforço: Basta dar o comando ao ChatGPT para escrever o texto, e designar o app Microsoft Designer para fazer um “template de e-book”, ou seja, ilustrar digitalmente o – suposto – livro. Um gerente de design norte-americano Ammaar Reshi lançou mão de um expediente parecido e em 72 horas escreveu, ilustrou e pôs o livro “Alice e Sparkle” à venda na Amazon. O fato torna ainda mais cinzento o termo relativo aos direitos de autor.

“As Aventuras de Larry, a Lagartixa”, o e-book fake do tiktoker brasileiro (Foto: Reprodução/Tiktok)

ENCANTADA COMO UMA NOVA INVENÇÃO? 

No último mês gerou discussão – e emoção à mesma maneira – a recriação da cantora Elis Regina (1945-1982) . A artista, falecida há mais de quatro décadas, reencontrava-se através de deep-fake com a sua filha, a cantora Maria Rita. Delicadezas à parte, a “falsa” Elis gerou discussão sobre os limites no uso de imagem, especialmente no que tange às pessoas falecidas. O advogado Victor Drummond comentou, numa live ao canal Jornal Despertador que “quem tem direito a proteger a sua imagem é quem detém a sua imagem e que pode se identificar naquela imagem como tal  [como pessoa humana]. Desde rosto, corpo ou emanações [vocais, como no exemplo de Elis Regina]. Cabe a pergunta: Será que o Belchior (1946-2017) gostaria de ter sua música no comercial da Volks? E a Elis, gostaria? Essas perguntas não têm resposta. Neste caso, cabe aos herdeiros o uso da imagem e talvez essa seja a confusão [oriunda disso]”.

É justamente nesta fresta jurídica – sobre o uso da imagem de uma pessoa que não a tem mais, por ser falecida – que o Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária) pretende estudar esta procedência, já que, por motivos óbvios, Elis não chegou a participar em nenhum momento e a obra publicitária tratou-se de uma ficção. Este caso será investigado a partir do código que regulamenta a propaganda no Brasil, sob a perspectiva dos “princípios de respeitabilidade, no caso o respeito à personalidade e existência da artista, e à veracidade”. Portanto, o órgão abriu representação técnica contra a campanha no dia 10/07, e esta  ainda está em julgamento, que ocorre no prazo de 45 dias após a abertura do processo. O Conar alega que a representação foi motivada por “queixas de consumidores”.  Roger Corassa, executivo da Volks, afirmou ao site Automotive Business que não usou nenhuma palavra que a Elis não tenha dito e que isolou “a tecnologia numa canção , canção esta que ela interpretou inúmeras vezes, com exatamente aquelas palavras”. Em nota divulgada à imprensa, a VW disse que foi notificada pelo Conar e que apresentará “sua resposta no prazo concedido”. A peça publicitária não mais foi veiculada e consta apenas no Instagram da montadora teuto-brasileira. O vídeo conta com quase 11 milhões de reproduções apenas no Insta.

Há três semanas foi compartilhado na Internet um feat de Marília Mendonça (1995-2021) com MC Kevin (1998-2021). A base da montagem foi, de alguma forma, a gravação original feita por ela com o cantor Gaab. Kevin, porém, não gravou com a musicista. A internet, mais uma vez, se dividiu entre apoiadores e revoltados com a “parceria”.  E, no caso de Kevin, choca ainda mais a naturalidade e a modulação da voz. De acordo com a fala de dubladores e locutores, em alguns contratos já consta a cláusula de que o contratado “cede sua voz para uso em IA ou em alguma tecnologia ainda não criada”. E cada vez mais as ferramentas digitais se aproximam da naturalização da fala e da dublagem. O ator Hugo Bonemer postou nas redes sociais um vídeo onde um aplicativo o dublava em inglês e com a mesma inflexão. Ao Site Heloisa Tolipan, na ocasião, comentou que “À Inteligência Artificial, neste caso, creio que pode ser útil para uma palestra ou para videozinhos rápidos. Se isso se estender para produções culturais, eu acho preocupante. O trabalho do dublador deve ser respeitado”.

 

Em face da utilização desmedida de vozes, imagens e emissões de artistas, tanto agora como no futuro, a Interartis recomenda a leitura cautelosa dos contratos (Foto: Reprodução)

Victor Drummond pondera que a Inteligência Artificial “estava aliada a facilitação mas não à essência humana, criativa, mas às atividades cotidianas. Quando invade a criatividade (…) é preciso pensar de forma ética e contundente, lidando com sabedoria e com respeito sobre o bem estar comum e não de forma corporativa e empresarial. (…) Se o futuro vai ser distópico depende de nós”, pontua. Iniciamos esta reportagem citando “Cérebro Eletrônico“, de Gilberto Gil. Importante ressaltar que, na própria música, Gil comenta que o “cérebro eletrônico faz QUASE tudo”, manda, comanda e desmanda… mas não anda.