*Por Flávio Di Cola
A imagem escolhida para a abertura de qualquer documentário ou reportagem sobre o fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado acaba sendo mesmo aquela extraordinária panorâmica do formigueiro de mineradores seminus escavando as entranhas da Serra Pelada como criaturas abissais à procura de ouro e redenção, cuja dramaticidade e transcendência só encontrarão um paralelo nas narrativas da Bíblia, do “Inferno” de Dante ou de “Intolerância” (Intolerance, 1916), o monumental afresco de quatro horas de duração sobre a destrutividade humana levado a cabo pelo “pai da linguagem cinematográfica” David W. Griffith (1875-1948) nos primórdios da sétima arte.
Até mesmo o premiadíssimo documentário franco-ítalo-brasileiro “O sal da terra” (Le sel de la terre, Decia Films/Le Pacte, 2014) – do não menos premiado diretor de cinema e fotógrafo alemão Wim Wenders – teve de se curvar ao poder iniciatório dessa imagem que correu o mundo e, praticamente, lançou Sebastião Salgado como uma espécie de consciência universal das mazelas do planeta e de cronista visual da aventura humana. Para dar conta da tarefa de compactar em 100 minutos os 71 anos de vida e obra daquele que é o fotógrafo mais influente das últimas três décadas, a dupla Wim Wenders-Juliano Salgado optou por um formato de exposição clássico, fluente e linear que costura com sobriedade as narrativas de viagem do próprio Sebastião, as impressões de Wenders captadas em película P&B, e as presenças dos parentes que foram e são parte fundamental da sua trajetória, como seu pai, fazendeiro no Vale do Rio Doce, no leste mineiro; Lélia Deluiz Wanick, sua mulher desde 1967 e editora de todos os seus projetos editoriais; seu filho mais velho Juliano, com 40 anos, documentarista co-diretor ao lado do cineasta alemão e responsável pelas sequências coloridas do filme, e o caçula Rodrigo, com 35 anos, que tem síndrome de Down desde nascença, episódio da família Salgado tratado com delicada franqueza no documentário.
Trailer oficial (Divulgação)
É na companhia de todos eles que mergulhamos numa jornada impactante por dezenas de países em que as lentes de Sebastião Salgado repousaram sobre aquilo que ele define como o “sal da terra”, ou seja, “gente” – no sentido mais universal desta palavra – e expressão que dá título ao documentário. É um percurso que se inicia um tanto hesitante em Níger, na África Ocidental, em 1973, mas que logo evolui para seu primeiro projeto de fôlego – “Outras Américas”, registro da realidade profunda dos povos latino-americanos que demorou oito anos para ser composto (1977-1984), seguidos pelos dois anos (1984-1986) de “descida aos infernos” no Sahel, faixa de terras subsaarianas que se estendem do oceano Atlântico ao Mar Vermelho, em que ele captou imagens jamais vistas antes de fome extrema em campos de refugiados na Etiópia, Sudão e Mali. A partir de então, o Sahel se tornou a pedra de toque de toda a obra de Sebastião Salgado, o lugar que mais impregnou sua maneira de olhar o ser humano, seu desespero, sua brutalidade e – também – sua dignidade. Foi ali que ele descobriu onde verdadeiramente se refletiam as sagas dos homens, mulheres e crianças retratados nas suas fotografias: não na paisagem ou nos gestos, mas sim na expressividade dos olhos de cada um deles. E na Etiópia ele encontrou o olhar que traduziria o horror absoluto: aquela mirada completamente vazia dos esfomeados e dos desamparados que se refugiaram na loucura.
São em momentos como esse que o público usufrui do privilégio de vivenciar todo o potencial avassalador do casamento da fotografia com o cinema, pois as fotos de Sebastião Salgado nunca foram tão espetacularmente ampliadas e tratadas como em “O sal da terra”. Talvez tenha sido esse potencial plástico que incomodou a intelectual-celebridade norte-americana Susan Sontag (1933-2004) quando ela acusou o brasileiro de simplesmente “estetizar a miséria”.
A próxima parada dessa viagem cinedocumental de Sebastião Salgado à cata do “sal da terra” será a Guerra do Golfo (1990-1991), quando 500 campos de petróleo foram destruídos. Vemos, então, os registros fotográficos que mesclam horror e beleza numa fúria de explosões, chamas e colunas de fumaça que deixaram o deserto sob uma apocalíptica escuridão por semanas seguidas. Depois do empático “Trabalhadores rurais”, concluído em 1993, em que Salgado registrou as atividades humanas que estavam caminhando para a extinção devido ao rumo tecnocrático da civilização humana, ele mergulhou no projeto “Êxodos” (1993-1999, publicado em 2000), sobre os deslocamentos forçados de grupo humanos ou nações inteiras devido a guerras e genocídios, e que elevou o seu nome ao pináculo. É nesse momento de “O sal da terra” que o fotógrafo admite ter perdido a fé no gênero humano depois de ter presenciado todo o tipo de atrocidades tanto em países prósperos, como a ex-Iugoslávia, como em países destroçados pela miséria como Congo e Ruanda. De “Êxodos”, Sebastião Salgado saiu convicto de que o homem merecia mesmo perecer sob o peso da sua própria estupidez.
Neste ponto, o documentário proporciona uma emocionante virada: deprimido, Salgado volta com a família ao Brasil depois de quatro décadas de nomadismo e movido pela esperança de um reencontro nostálgico com suas raízes na antiga fazenda do pai, em Aimorés (MG). Mas o que lá encontra também nada mais é do que a destruição e o abandono total da Mata Atlântica que o encantara na infância e juventude. Aqui, o mesmo tom sentencioso da locução de Wim Wenders que, por vezes, resvala para o clichê sentimental, dá-nos a chave para entendermos a causa de uma nova reviravolta na vida e na obra do fotógrafo: “A terra salvou Sebastião Salgado do desespero.”
De fato, da desolação nasceu o ímpeto para restaurar as matas, as águas e os bichos do torrão ancestral através de um dos projetos mais bem-sucedidos de reflorestamento no Brasil com espécies nativas e que acabou se desdobrando na fundação do Instituto Terra (http://www.institutoterra.org/) e no seu último e mais monumental projeto – “Gênesis” (2004-2012, publicado em 2014), um mapeamento fotográfico da vida sobre o planeta tal como ela seria no momento criador original. Nessa empreitada – ele admite – teve de reaprender a olhar para a câmera, pois sempre fora um fotógrafo de pessoas e dos seus dramas, mas para registrar a natureza seria necessária visada diferente. Para sua surpresa, Salgado constata que 50% da Terra ainda se encontram intocáveis e que neles descansam as últimas reservas que poderiam alavancar a nossa mudança civilizacional.
Sebastião Salgado fala em entrevista à Editora Taschen – que tem publicado seus últimos livros – à época do lançamento do monumental “Gênesis” (Reprodução)
Agora, sim, encerra-se a jornada do fotógrafo. Embalados pelo sereno comentário musical de Laurent Petitgand – colaborador habitual de Wim Wenders – podemos deixar a sala de cinema com a alma aliviada e lavada, mas também devidamente advertidos de que já soou a última chamada para a nossa salvação.
*Flávio Di Cola é publicitário, jornalista e professor, mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ e ex-coordenador do Curso de Cinema da Universidade Estácio de Sá. Apaixonado pela sétima arte em geral, não chega a se encantar com blockbusters, mas é inveterado fã de Liz Taylor – talvez o maior do Cone Sul –, capaz de ter em sua cabeceira um porta-retratos com fotografia autografada pela própria
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