*por Vítor Antunes
Na internet, novelas e programas antigos são carinhosamente chamados de “mofos”. Esse termo se tornou popular entre os fãs da TV, que valorizam as produções de outras épocas. Entre os admiradores dos “mofos”, existem aqueles que apreciam os defeitos técnicos, como falhas de frame, cor ou sincronia, e também aqueles que se divertem ao encontrar easter eggs, como propagandas preservadas junto aos capítulos ou as “cenas da próxima novela” nos últimos episódios disponibilizados no Globoplay.
Atualmente, vivemos o que pode ser chamado de “Revolução dos Mofos“. Na Globo, o fenômeno ficou evidente com a estreia de “História de Amor” no bloco “Edição Especial“, que registrou uma média de 13,9 pontos de audiência. Esse número impulsionou “Cabocla”, que alcançou 14,4 pontos, quase o triplo da Record, que marcou apenas 5 pontos no mesmo horário.
Ao longo da semana, “História de Amor” manteve sua força: na terça-feira, fez 12,4 pontos, enquanto “Balanço Geral”, da Record, ficou com 5,0. Na sexta-feira, a novela chegou a 12 pontos, com um pico de 14. No Recife, a produção de Manoel Carlos surpreendeu, alcançando quase 17 pontos, o mesmo índice registrado por “Tieta” na mesma data. Ainda sem os números consolidados, tudo indica que os clássicos seguem em alta. Para debater esse assunto, convidamos o doutor em Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP) e roteirista Lucas Martins Néia.
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Tieta vem surpreendendo na audiência (Foto: Divulgação/Globo)
Na quinta-feira, “História de Amor” registrou uma média de 12,5 pontos, enquanto “Cabocla“, em seu penúltimo capítulo, atingiu 14 pontos. “Tieta“, por sua vez, se aproximou dos 17 pontos na segunda-feira. Nem mesmo o fenômeno “Big Brother Brasil“, que marcou 17 pontos no mesmo dia, conseguiu deter o sucesso da “cabrita” – apelido carinhoso dado à icônica protagonista de “Tieta“, vivida por Betty Faria. Incrivelmente, a novela de quase 40 anos superou o reality, alcançando 19 pontos. O fenômeno mostra que o público tem buscado cada vez mais conforto em conteúdos familiares, reafirmando o impacto e a permanência das novelas clássicas na memória afetiva dos telespectadores.
Na mesma quinta-feira, “Chaves” e “Chapolin”, programas antiquíssimos com quase 50 anos de produção, figuraram entre os 10 programas mais assistidos da emissora, rivalizando apenas com a programação jornalística e transmissões ao vivo. Em contrapartida, “A Caverna Encantada“, novela que, em teoria, seria direcionada ao público infantojuvenil, fracassou em audiência, atingindo índices vergonhosos que sequer alcançaram dois pontos. Desde 2020, observa-se que novelas antigas, como “Salve Jorge” e “A Força do Querer”, frequentemente aparecem entre os 10 programas mais assistidos do Globoplay, superando novelas mais recentes, incluindo “Travessia”, da mesma autora, Gloria Perez.
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Chapolin é uma das melhores audiências do SBT (Foto: Reprodução)
Afinal, o que explica essa audiência que privilegia conteúdos antigos e rejeita os novos? Como o público se comporta em um momento em que a TV aberta parece ter dificuldades em seduzir o telespectador, que opta pelo conforto de programas familiares em detrimento da novidade?
Diversos fatores podem justificar essa tendência. O primeiro é o envelhecimento do público da TV aberta. Atualmente, a maioria dos telespectadores tem 35 anos ou mais. As crianças, por sua vez, quase não são contempladas com programas voltados especificamente para elas, com exceção de alguns horários restritos no SBT. Assim, uma novela infantil exibida no período noturno dificilmente desperta interesse. Muitas crianças e adolescentes consomem seus conteúdos favoritos no TikTok ou YouTube, e muitas vezes nem sequer assistem à TV aberta, exceto quando espelham o celular na tela.
Os telespectadores mais velhos, por outro lado, desenvolveram um forte hábito de consumo televisivo. Como dizia Boni, “televisão é hábito”. Assim, é compreensível que muitos prefiram revisitar novelas já conhecidas, que não exigem grande esforço de compreensão e proporcionam uma experiência segura e nostálgica. Esse fenômeno explica, por exemplo, a permanência de “Chapolin” no gosto popular: uma febre entre crianças nos anos 80 e 90, mas amplamente desconhecido pelas novas gerações. Para ilustrar esse distanciamento, este repórter conversou recentemente com uma jovem de 14 anos que desconhecia a existência da TV Bandeirantes e não sabia que se tratava de um canal de TV aberta.
Segundo Lucas, essas obras em reprise, por vezes “têm apelo junto ao público, que lembra de um período áureo – que também coincide com um período favorável da biografia das emissoras e da vida particular dos telespectadores. É o uso da nostalgia como ativo comercial, na disputa pela atenção do público”.
Acredito que uns fatores preponderantes para o sucesso dessas produções seja de fato essa ideia de conforto, de “Comfort TV”, porque de alguma maneira quem já assistiu a essas produções e vai revê-las, tem ali um trabalho de memória que faz com que essas pessoas sejam transportadas para que a época em que viram essas produções pela primeira vez – Lucas Martins Néia, doutor em Comunicação
Para Lucas, “tanto como “Tieta, e História de Amor”, há uma carpintaria dramática que também existe em “Chaves” e “Chapolin“. Na obra mexicana, há as dinâmicas de humor mais simples, que incluem também uma sofisticação absurda, tanto que as piadas ainda hoje funcionam, transcendem a época. A dinâmica dos atores também é muito interessante, e lembra muito a do circo, dos palhaços. Então é louvável pensar também na sobrevida dessas produções”. O acadêmico prossegue dizendo que “quando ‘Chaves‘ e ‘Chapolin‘ voltam para televisão, há uma celebração por parte dos fãs. Então, é claro que justamente dentro desse novo ecossistema midiático, é possível a criação de comunidades online que vão estar compartilhando, conversando e promovendo discussões ao redor dessas produções”.
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A caracterização de Christiane Torloni em “Gina”, equivocada novela dos Anos 70 (Foto: Nelson di Rago/Globo)
Pesa também a idealização nostálgica. Muitos acreditam que “antigamente as novelas e programas eram melhores”, refletindo a síndrome do “que saudades que tenho da aurora da minha vida”. De fato, há que se reconhecer que algumas novelas do passado eram mais ousadas. “Os Gigantes“, por exemplo, abordou a eutanásia e teve um final polêmico em que a protagonista se mata. “Espelho Mágico” apresentava pelo menos quatro camadas de metalinguagem. Nenhuma dessas tramas provavelmente seria produzida hoje.
Entretanto, a digitalização de novelas no Globoplay também revelou que nem tudo no passado era grandioso. Muitas produções eram feitas de forma apressada e descuidada. “Sinhazinha Flô” e “Gina” são exemplos disso. Até mesmo “Escrava Isaura“, considerada primorosa, era uma novela barata, com cenários simples e protagonizada por uma atriz então desconhecida. Durante uma pesquisa para a escrita de “O Astro“, foram encontradas matérias de 1977 que decretavam o “fim da TV” devido à suposta baixa qualidade das produções daquela época. Nos anos 80, a situação não foi diferente. “Voltei Pra Você” é lembrada como um erro, tanto que sua própria protagonista, Cristina Mullins, confessou em entrevista que não acreditava no projeto.
Segundo Néia, é uma temeridade destinar ao passado a primazia da qualidade. “Pensando nessa generalização, a gente pode tecer comparações com produções específicas e talvez o resultado dessas produções antigas seja mais interessante quando se somam os fatores e as esferas de produção. O que talvez falte hoje seja coragem das empresas na totalidade, porque também não é só a TV aberta, não é só a televisão que está apostando naquilo que ela considera seguro, mas também os streamings”.
Há muito mais medo de errar hoje em dia. Há muitas produções inéditas um tanto tímidas nessa questão de burlar ou se aventurar na abordagem de certos temas. Porque hoje pensa-se primeiro nessa em preservar e agradar esse espectador. Há toda uma ideia de público-alvo que é desenhada pelos executivos e há um temor em desagradar esse público. Isso acaba reforçando a qualidade de algumas obras feitas numa época em que não se tinha tanto medo de arriscar – Lucas Martins Néia, doutor em comunicação
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Tarcísio Meira e Glória Menezes eram os protagonistas de “Espelho Mágico” e de “Coquetel de Amor”. Metalinguagem (Foto: Nelson di Rago/Globo)
A MATURIDADE COMO UM ATIVO
Para Lucas Martins Néia, junto ao envelhecimento do público de TV aberta, há a valorização de artistas igualmente maduros nessas obras em reprise. Isso também explicaria o sucesso. “Os títulos mencionados, como História de Amor e Tieta, são exemplos bem construídos de telenovelas, tanto no aspecto da carpintaria dramática quanto na produção. Elas fazem parte do Star System que a Globo consolidou ao longo dos anos. Ambas as produções trazem protagonistas experientes, como Regina Duarte e Betty Faria, que já eram figuras consolidadas na televisão. Nos últimos anos, a Globo tem adotado uma postura mais cautelosa na construção de seu elenco fixo. Além da perda de grandes nomes, o atual cenário midiático levou a emissora a reavaliar sua política de contratos, resultando em elencos menos estelares e mais enxutos. Assim, a nostalgia provocada por essas tramas não se relaciona apenas à memória afetiva do público, mas também ao próprio passado da emissora. O mesmo fenômeno pode ser observado em Chaves e Chapolin, produções que marcaram a identidade do SBT. Roberto Gómez Bolaños (1929-2014), criador e protagonista das séries, interpretava um personagem infantil, mas na vida real estava na faixa dos 40 aos 60 anos. Isso reforça a força da maturidade na televisão”.
Embora o público da TV aberta seja majoritariamente mais velho, o sucesso de protagonistas maduros desafia a ideia de que apenas personagens jovens devem ocupar esse espaço. O equilíbrio entre diferentes gerações é essencial para manter a conexão com o público fiel e, ao mesmo tempo, atrair novos espectadores, sem a obsessão de conquistar exclusivamente os mais jovens – Lucas Martins Néia, doutor em Comunicação.
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Carla Marins e Nuno Leal Maia em “História de Amor” (Foto: Divulgação/Globo)
Diante desse cenário, a TV aberta parece seguir dois caminhos principais. O primeiro é a priorização dos programas ao vivo, que seguem registrando altos índices de audiência, como telejornais e transmissões esportivas. Na semana em que este artigo foi escrito, Band e Record chegaram a ultrapassar a Globo na audiência graças à exibição de partidas dos Campeonatos Carioca e Paulista, respectivamente. Esse tipo de conteúdo continua a mobilizar grandes públicos, evidenciando que a experiência ao vivo ainda é um diferencial competitivo para a TV tradicional. E que, dicotomicamente, o ao vivo rivaliza com o passado, com o “mofo” afetivo e confortável.
Decididamente, a TV aberta não acabará, e nem não cedo. Basta lembrar que “Beleza Fatal“, sucesso do MAX, vai estrear na Band em março, experimentando um público novo. Mas, sem sombra de dúvida, a TV experimenta um momento de reencontro e descoberta de linguagem. Os “mofos” ressurgem como relíquias televisivas, desafiando o tempo e conquistando corações saudosos. Em um cenário onde o presente se fragmenta entre telas e distrações, novelas clássicas como Tieta, História de Amor e Cabocla reafirmam seu espaço, superando até gigantes contemporâneos como Big Brother Brasil. O público, guiado pela nostalgia e pelo hábito, encontra refúgio na memória afetiva, enquanto a TV aberta caminha entre a efemeridade do ao vivo e a segurança do passado. Entre revolução e tradição, a audiência dita o rumo: o mofo brilha e segue vivo.
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