Heloisa Jorge vive pastora em novela, fala de fé, inclusão e rodará filme da saga da família que veio da Angola


Ela é a pastora Dagmar em “Mar do Sertão”, e está em inúmeras produções no streaming. Nesta entrevista, fala do respeito às pluralidades de fé, revisita sua trajetória, desde que saiu de Angola por conta das questões políticas no país, e diz o que espera daqui para frente: “Quero cada vez mais contar boas histórias, para que as pessoas possam refletir sobre suas realidades. Histórias plurais. Não me interessa mais falar de dor no audiovisual, estar em um ambiente de trabalho de falta de respeito e opressão. E tenho deixado isso claro, sem medo. Me empoderando do que posso fazer, contribuir”

*Por Brunna Condini

A história de Heloisa Jorge, que interpreta a pastora evangélica Dagmar em ‘Mar do Sertão’, trama das 18h da Globo, e está em ‘Sentença‘, série brasileira Amazon Prime Video, dava um filme. E dará. Na verdade, a história de sua família. Partindo da mãe, a angolana Palmira Tereza, que deu origem a tudo, ao lado do pai, o médico brasileiro Paulo Amorim. Os dois se conheceram em Angola, na África, onde ele fazia trabalho humanitário. Tiveram juntos a atriz e seu irmão, Paulinho, que anos depois vieram para o Brasil protegendo-se da guerra. “É um sonho fazer um documentário da história da minha mãe e da nossa família. É uma forma de homenagem e também de tomar as rédeas da minha vida. Sou eu que sei o que passei para estar aqui, o que construí. Como artista tenho o desejo de contar histórias relevantes, que contribuam para o mundo ficar melhor do que está”, compartilha a atriz.

Não me interessa mais contar histórias de dor no audiovisual, estar num ambiente de trabalho de falta de respeito e opressão – Heloisa Jorge, atriz

Heloisa veio do continente africano aos 12 anos e nos conta uma história de resiliência e inspiração, mas já avisa que não quer ficar na ‘prateleira’ da refugiada que veio para o Brasil e anos mais tarde se tornou atriz. A vida dela é bem mais. “Foi mais complexo do que o que tem saído na imprensa. A adaptação foi difícil muito por conta da idade que eu tinha, do não entendimento do que estava acontecendo. Não sabia que estava vindo como uma refugiada. Fui tomando consciência disso conforme fui escutando em casa. Fui vendo a ajuda financeira da ONU que recebíamos todo mês. E tive que construir uma relação com meu pai aqui, já que nos separamos cedo. Era tudo novo, aprendi a me virar”, recorda.

Heloisa Jorge fala da sua história que dá e vai virar filme, e da importância do respeito à diversidade humana e de crenças (Foto: Pedro Napolinário)

Heloisa Jorge fala da sua história que dá e vai virar filme, e da importância do respeito à diversidade humana e de crenças (Foto: Pedro Napolinário)

Nesta entrevista, ela revisita sua história. “Quando a guerra em Angola tomou proporções maiores e ficou em uma situação mais crítica, todos os estrangeiros voltaram para o Brasil, meu pai foi um deles. Eu e o meu irmão ficamos, meus pais já estavam separados. Passados alguns anos, meu pai entrou em contato com o Itamaraty para nos procurar em Angola. Nos localizaram e viemos para a cidade de Montes Claros (MG). Minha mãe já era casada com um angolano e tinha outros três filhos. Nesta época não dava para ela sair do país. Mas quando a guerra acabou, minha mãe veio com meus três irmãos para o Brasil também. Ela era uma batalhadora, empreendedora, e só estudou até a quarta série. Fazia compras no Brasil e ia vender em Angola, proporcionou muita coisa para gente assim. Era o que chamamos de sacoleira por aqui”, conta.

Não tenho religião e sou uma pessoa muito espiritualizada. E simpatizante do candomblé – Heloisa Jorge, atriz

"É um sonho fazer um documentário da história da minha mãe e da nossa família" (Foto: Pedro Napolinário)

“É um sonho fazer um documentário da história da minha mãe e da nossa família” (Foto: Pedro Napolinário)

“Ela morreu cedo, aos 35 anos, de Malária, quando estava em Angola. Tenho 38 anos e não consigo conceber o que era ter cinco filhos aos 35, ela foi incrível. Minha mãe foi uma das mulheres mais resilientes que conheci. Passei minha adolescência com muita raiva dela por ter mandado a gente para o Brasil, mas vi que tem que ter muita coragem para fazer o que ela fez: separar os filhos. Até por que era tudo uma tentativa dela, de um jeito meio torto, de salvar a gente. Era corajosa, resiliente, mesmo com poucas ferramentas emocionais, intelectuais. Foi a pessoa mais sábia que conheci na vida, uma grande referência, um norte. Deixou marcas profundas em nós cinco. Ela está muito viva na forma como cada um foi conduzindo a própria vida, nesta força. Era uma mulher solar, festeira. Engraçado, que teve filhos tímidos… até sou mais reservada, mas dos irmãos, sou a mais extrovertida. Ela não chegou a me ver atriz, sei que por ela eu tinha sido médica, já que se preocupava como eu sobreviveria. Mas me sinto conectada, ligada a ela até hoje. Converso com minha mãe e sinto que está em muitas das minhas conquistas”, se emociona.

Como artista tenho o desejo de contar histórias relevantes, que contribuam para o mundo ficar melhor do que está – Heloisa Jorge, atriz

"Sei o que passei para estar aqui, o que construí. Como artista tenho o desejo de contar histórias relevantes, que contribuam para o mundo ficar melhor do que está" (Foto: Pedro Napolinário)

“Sei o que passei para estar aqui, o que construí. Como artista tenho o desejo de contar histórias relevantes, que contribuam para o mundo ficar melhor do que está” (Foto: Pedro Napolinário)

Respeitando a pluralidade e construindo pontes para o diálogo

Sobre a personagem que vive na novela, Heloisa observa: “Fiquei bem intrigada quando fui convidada para o papel de uma pastora. Por conta do momento que vivemos em nosso país. Por tudo o que lemos e vemos sobre a religião, que pode envolver fanatismo, fundamentalismo e até o ódio ao diferente muitas vezes. Então, pensei que seria uma oportunidade boa de mostrar um outro lado que não chega na mídia. Mostro o lado humano desta pastora e para isso fui atrás de referências legais, como o pastor Henrique Vieira. Tive contato com ele quando fiz um espetáculo baseado em uma história real, que se chamava ‘O Jornal – The Rolling Stone’, dirigido pelo Kiko Mascarenhas e pelo Lázaro Ramos, e tinha como pano de fundo a violência contra os homossexuais em Uganda, a coisa da não aceitação ao diverso, plural”, lembra.

Nos bastidores de 'Mar do Sertão': Nanego Lira, Mariana Sena e Heloisa Jorge, que fala da pastora evangélica que vive na trama (Divulgação/ Globo)

Nos bastidores de ‘Mar do Sertão’: Nanego Lira, Mariana Sena e Heloisa Jorge, que fala da pastora evangélica que vive na trama (Divulgação/ Globo)

“O Lázaro trouxe o pastor Henrique Vieira para conversar com a gente. Ele tem um trabalho social lindíssimo, que traz respiro, jovialidade, alma para a religião. Foi a maior inspiração para a minha personagem. Também conversei com uma pastora, porque queria saber como é esse lado feminino. Ela também nada conservadora, trabalhando com paixão, com esse senso de comunidade, e me falou do preconceito que existe, já que é uma religião basicamente ancorada no patriarcalismo, então as líderes religiosas encontram desafios”.

Quero contar histórias plurais. Não me interessa mais contar histórias de dor no audiovisual – Heloisa Jorge, atriz

Heloisa aproveita para falar da própria espiritualidade. “Não tenho religião e sou uma pessoa muito espiritualizada. E simpatizante do candomblé, mas não iniciada. Tenho profundo respeito por ser uma religião de matriz africana, acho que se comunica muito com a minha identidade. Faço as minhas rezas, não acredito que estamos aqui a passeio. Me cuido espiritualmente, emocionalmente. Acredito que isso aqui é uma grande passagem. Tenho fé nas pessoas, na natureza, nas coisas boas que somos capazes de fazer enquanto ainda estamos por aqui”, diz.

“Não tenho religião e sou uma pessoa muito espiritualizada. E simpatizante do candomblé" (Foto: Pedro Napolinário)

“Não tenho religião e sou uma pessoa muito espiritualizada. E simpatizante do candomblé” (Foto: Pedro Napolinário)

“Acredito na empatia, no respeito, na inclusão. Posso ser simpatizante do pastor Vieira e ser simpatizante do candomblé. Está tudo certo. Demonizam as religiões de matizes africanas por conta do racismo, que também respinga na religião. Como tudo que veio do continente africano. Estamos caminhando para um lugar mais justo, embora ainda falte muito chão ainda. Tudo isso é reflexo da estrutura racista que vivemos no Brasil. Muito da dificuldade de algumas religiões abraçarem a diversidade, inclusive de fé do outros, é por manutenção de poder. Acho muito cruel quando você utiliza a religião para manipular as pessoas. E quanto mais frágil socialmente se é, mais se encontra brechas para isso”, acrescenta.

"Não me interessa mais contar histórias de dor no audiovisual, estar num ambiente de trabalho de falta de respeito e opressão" (Foto: Pedro Napolinário)

“Não me interessa mais contar histórias de dor no audiovisual, estar num ambiente de trabalho de falta de respeito e opressão” (Foto: Pedro Napolinário)

Heloisa também tem brilhado no streaming, ela está na série ‘Jogo da Corrupção’, do Prime Video, ‘Fim‘, ‘Cilada’ e ‘Cine Holliudy‘ no Globoplay, e ‘How to be a carioca‘, no Star+; todas com previsão de estreia no próximo ano. E, finalizando e refletindo sobre o que espera da sua trajetória nos próximos anos, ela diz: “Acho que chegamos em um lugar de transição e isso é desconfortável mesmo. Para mim, como atriz, para o público, que começa a ver muitas histórias interpretadas por quem não costumam ver, como por exemplo uma atriz negra fazendo uma pastora não estereotipada. Em nossa novela, temos 11 atrizes e atores negros, e cada um tem tramas pessoais interessantes, que questionam coisas importantes na sociedade. Então, quero cada vez mais contar boas histórias, para que as pessoas possam refletir sobre suas realidades. Histórias plurais. Não me interessa mais falar de dor no audiovisual, estar num ambiente de trabalho de falta de respeito e opressão. E tenho deixado isso claro, sem medo. Me empoderando do que posso fazer, contribuir”.