Guthierry Sotero, sobre pedido de namoro sem beijo em “Vai na Fé”: “Acabam por comprometer o nosso trabalho”


O Vini de “Vai na Fé” é voz ativa do posicionamento negro. Em sua primeira novela, o ator já trouxe a si a relevância de dar vida ao primeiro casal gay e preto na teledramaturgia global. Ainda que tenham torcedores para o sucesso do casal Vini e Yuri (Jean Paulo Campos), os beijos homoafetivos na trama vem sendo vetados em face de uma postura conservadora da Globo quanto a esse contexto. Na opinião de Sotero “Um pedido de namoro que não tem beijo é algo que não acontece na vida real, isso não é verdadeiro. É difícil entender”. Na última semana, os personagens iniciaram um namoro e, nos capítulos exibidos entre sexta e sábado, Yuri assumiu-se bissexual. Além da trama, Guthierry fala sobre sua outra paixão, o rap, e o preconceito que o gênero costuma sofrer junto à classe média. O artista promete, igualmente, que, neste segundo semestre, estreará uma montagem teatral sobre paternidade, junto ao ator Henrique Barreira, o Fred da mesma novela em que atua

*por Vítor Antunes

Indiscutivelmente, “Vai na Fé” é um dos maiores sucessos recentes da Globo. A novela de Rosane Svartman é um case bem sucedido tanto em audiência como em repercussão e crítica. Na última semana, o folhetim assinalou como a maior audiência da casa – à frente, inclusive, do Jornal Nacional e de “Terra e Paixão”, respectivamente segundo e terceiro lugares. Além desses índices expressivos, “Fé” também consta de algum pioneirismo. É a primeira trama a trazer um casal preto homoafetivo, composto por Jean Paulo Campos (Yuri) e Guthierry Sotero (Vini). Além destes, há outro casal LGBT, composto por Priscila Sztejnman e Regiane Alves. Ainda que ambos os casais sejam largamente aceitos pelo público, que os shippa nas redes sociais, uma ausência tem gerado discussões acaloradas: Os casais não se beijam.

Cria-se que esta problemática estivesse ultrapassada, especialmente depois de todos os horários dedicados à teledramaturgia global terem sido contemplados com manifestações homoafetivas. Todavia, em “Vai na Fé”, cenas com este teor são escritas, algumas chegam a ser gravadas, e não exibidas, ao passo que outras nem são gravadas. Sobre os vetos, Guthierry, o intérprete de Vini se diz surpreso: “De inicio eu não entendi o que estava acontecendo. Acho que [os cortes] acabam por comprometer o nosso trabalho, especialmente por tratar-se de algo que faz sentido na cena. Um pedido de namoro que não tem beijo é algo que não acontece na vida real, isso não é verdadeiro”.

O ator é muito grato ao destino por lhe haver presenteado com Vini , seu primeiro papel na teledramaturgia diária. Além da novidade com o reconhecimento e o sucesso do projeto, ele se vê diante de uma produção artística intensa pra edificar a novela, volume que é muito diferente de uma série ou um filme: “Na série ‘Verônika’ eram, no máximo, 6 cenas por dia. Na novela, em minha primeira diária, 8. Já cheguei a fazer 15 e estou conseguindo acompanhar”, celebrou. Ante o sucesso, e a representatividade, o artista também comemora o fato de que “Vai na Fé” tem um extenso e numeroso elenco preto, algo que sempre foi raro na TV. Junto aos outros atores pretos, diz aprender muito “Paro e ouço o que eles têm a dizer. Elisa Lucinda é uma força ancestral. Jonathan Haagensen, uma referência, assim como Sharon Menezes e Samuel de Assis“.

Além do trabalho como ator, Sotero relata que no segundo semestre estreará junto com o ator Henrique Barreira e grande elenco uma peça teatral sobre a paternidade. Além disto, pretende investir mais no segmento musical. Cantor de rap, o rapaz acredita que o gênero ainda é alvo de algum preconceito. “O nosso discurso afeta a vida deles a Classe Média, os privilégios. A galera rica não vai abrir mão do privilégio delas para promover a igualdade. O rap toca nessa ferida, toca no sistema”.

Guthierry Sotero é o Vini de “Vai na Fé”. Trama se propõe a discutir a descoberta da homossexualidade (Foto: Lukas Alencar)

LEAL, REAL

Os personagens de Guthierry Sotero, Jean Paulo Campos, Regiane Alves e Priscila Sztejnman centralizam o debate sobre a questão LGBTQIAPN+. No caso dos rapazes, a responsabilidade é ainda maior. São os primeiros a darem vida a um casal preto e homoafetivo nas novelas da Globo. Algo que Sotero comemora. “É importante retratar o amor de dois caras pretos na TV. Dediquei-me muito na composição deste personagem, para que ele não ficasse estereotipado, para que as pessoas pudessem se identificar e quando isso aconteceu, da identificação, foi um ganho. Representatividade importa, sim. E eu sinto que este é um passo importante na TV, ainda que seja algo recorrente na sociedade”, afirma.

No início da novela, os telespectadores reconheceram uma identificação entre os personagens de Henrique Barreira (Fred) e Yuri. Viam tanta química entre eles que passaram a shippa-los como #fryuri. A entrada de Vini frustrou a expectativa dos telespectadores num primeiro momento. É o que Sotero nos conta: “Nessa época entrei no Twitter para ver o que estava acontecendo e vi que muita gente tinha resistência ao personagem antes mesmo que eu entrasse na trama”. Guthierry crê ser isso algo não muito distante do que acontece na vida real, em que “as pessoas têm dificuldade de ver duas pessoas pretas diferentemente da forma como esperam. Já há um olhar de estranheza. Porém, conseguimos fazer um bom trabalho e a nossa história já está sendo escrita na tela. Isso é o mais importante”.

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Uma das questões que vem sido trazidas à tona por causa da novela em decorrência dos casais LGBT são os vetos às cenas de afeto, especialmente os beijos. Sotero diz que “De início eu não entendi o que estava acontecendo. Acho que [os cortes] acabam por comprometer o nosso trabalho, especialmente porque isso precisa fazer sentido [na trama]. Um pedido de namoro que não tem beijo é algo que não acontece na vida real, isso não é verdadeiro. É difícil entender, mas vamos ver o que acontece daqui pra frente,  se melhora e o beijo acontece. Eu torço que sim. Pra mim seria interessante ver acontecendo e as pessoas vibrarem por ver esses dois caras trocando afeto”, aponta.

A trama de Rosane Svartman é a primeira de Sotero, que se absurdou com a quantidade de trabalho e a demanda de gravações decorrentes de uma novela diária: “É um ritmo muito acelerado. Na série “Veronika”, na qual trabalhei, eram cerca de 6 cenas por dia. Na novela, em minha primeira diária, 8. Cheguei a fazer 15 num dia. Deu tudo certo. Foi uma virada de chave para mim”.

Jean Paulo Campos e Guthierry Sotero em “Vai na Fé”. Homossexualidade em pauta (Foto: Reprodução/TV Globo)

NÃO É O SOM DOS MILHÕES, É O SOM DO REAL

“Cê não sabe o que é acordar com a responsa. Pros menor daqui eu sou espelho”. A citação, da música Hat-Trick, do rapper Djonga, ainda poderia, também, servir a Guthierry. Cria da Maré, complexo favelizado do Rio, o ator quer dedicar-se a cantar seus raps e sua realidade, mandando às favas o preconceito do qual o gênero costuma ser alvo, especialmente junto à classe média: “O rap é visto com preconceito, especialmente por eles. Acho que o motivador desse desprezo é o nosso discurso, que afeta-lhes a vida. A galera mais rica não vai abrir mão dos seus privilégios em favor da igualdade. O rap toca nessa ferida, toca no sistema”.

O rap foi algo que mudou a minha vida, tanto no discurso como na percepção do mundo. Se eu sei o que sei, devo ao gênero, e às minhas referências, como Djonga, Mano Brown, Emicida… Caras que tem viés político e que trazem-nos autoestima. Trago isso nas minhas letras – Guthierry Sotero

Além disto, Guthierry estará fazendo uma montagem junto ao ator Henrique Barreira que aborda o tema da paternidade e que tem previsão de estreia em novembro. Guti também quer fazer outros trabalhos para o audiovisual e aguarda o lançamento da série “Veronika”, do Globoplay.

Guthierry Sotero. Dedo na ferida com a sua arte musical (Foto: Lukas Alencar)

Ao ver de Sotero: “Trago uma ótica crítica e social às minhas letras. O rap me cativou por isso. É uma ferramenta que nos permite um pensamento político e traz autoestima pro nosso povo. O rap no atual momento começa a ser mainstream deixando este discurso político de lado. Acho que ainda há muito preconceito para com o ritmo, ainda que seja menor do que há cinco ou dez anos atrás. Todavia, as pessoas estão descobrindo que esta música pode servir tanto para fazer pensar como para curtir”.

Cria da favela da Maré, o ator é profundamente crítico ao preconceito social do qual aquela comunidde é alvo. Geralmente vinculada, especialmente pela mídia, como sendo um lugar violento em razão de sua vulnerabilidade, negam a observar, também as flores que existem naquele bairro. “A Maré é composta por muitas comunidades. Aqui tem de tudo, talvez só nos falte um shopping”, destaca, com bom humor. E prossegue “Há atividades culturais como aulas de balé, de teatro, de luta… Mas cismam em restringir a favela à criminalidade, ainda que ela esteja presente. Há bandidos em todo o Brasil. A diferença é que lá há corpos favelados que as pessoas não querem deixar que vençam. Daqui saíram os digitais-influencers Raphahel Vicente e Bianca Andrade – a Boca Rosa, por exemplo. Também há paz na favela e pessoas que querem viver a sua vida e ter um futuro melhor. Trata-de se uma luta diária para que reconheçam a potência que há na Maré. Obviamente, não dá para romantizar a dificuldade. A gente luta em dobro por chances e oportunidades. Não sabemos quando vai acontecer outra. Não temos o privilégio de poder desperdiçar chances ou falhar em algum momento”, analisa.

Ver o reconhecimento na minha favela e as crianças tendo a mim como espelho é algo que me deixa muito satisfeito e me sensibilizar poder tocar as pessoas através da minha arte. É possível mostrar a estas crianças que é possível acreditar no sonho e que ele é real – Guthierry Sotero.

Para o ator, outro dado importante de “Vai na Fé” é não destacar o preto apenas no núcleo da escassez na novela, mas mostrando-os em condições financeiras diversas. “É uma mega conquista. É o que acontece na sociedade. Há o Benjamin (Samuel de Assis) que é estudado e vive uma boa condição financeira, bem como o Orfeu (Jonathan Haagensen) que vive o lado mais marginalizado, bem como o Vini e o Yuri, que são bolsistas. É uma abordagem real. Antigamente, nas novelas, os pretos eram figuras subalternas às brancas”.

Em seu primeiro grande papel na TV, outros pretos que compõem o elenco da trama viveram suas próprias experiências e histórias com a negritude, bem como outros tipos de ativismo. Sotero diz admirá-los, ouvi-los e respeita-los: “Adoro ouvir o que eles têm a dizer. Elisa Lucinda é uma força ancestral. Johnatan Haagensen, uma referência, e com Sheron Menezes e Samuel de Assis tenho um aprendizado incrível. Junto deles tenho a humildade em perguntar e ouvir”. A quem traz a noite na cor a vida e o compartilhamento de histórias faz (re)nascer a sua escrevivência.