* Por Flávio Di Cola
Um dos recursos mais apreciados por escritores e roteiristas – e também pelo público em geral – para contar uma história é o “ensemble dramas”, ou seja, o expediente de juntar um grupo de personagens esquisitos num mesmo espaço em que são obrigados a se interagir e a se digladiar até a redenção de uns e a eliminação de outros. O clássico de John Ford “No tempo das diligências” (Stagecoach,1939, com John Wayne) é um bom exemplo: os roteiristas Dudley Nichols e Ben Hecht reuniram na mesma diligência uma prostituta expulsa da cidade pela “liga da moral”, um médico bêbado, um banqueiro inescrupuloso, um cavaleiro sulista arrogante, um ingênuo vendedor de uísque, a esposa grávida de um oficial, um cowboy foragido da lei (Wayne), um delegado íntegro e um condutor-bufão. Para apimentar ainda mais essa feijoada dramática, a diligência é obrigada a cruzar um inóspito e perigoso território apache. É claro que no meio das maiores dificuldades, a grávida inventa de dar à luz ao seu bebê que vai para os braços solícitos da prostituta, desprezada pela ala “distinta” dos passageiros. Quando finalmente a desconjuntada diligência chega o seu destino, alguns personagens estão mortos, os bons e humildes redimidos, os presunçosos punidos e o amor triunfante nas almas regeneradas do cowboy e da prostituta.
Mas foi em outro “ensemble drama” clássico do início dos thirties – “Grande Hotel” (Idem) – que o indie darling da crítica cinematográfica contemporânea – o texano Wes Anderson – foi buscar o modelo para o festejado “O Grande Hotel Budapeste”, desde já um dos mais fortes candidatos em várias categorias de premiação da Academia de Hollywood, safra 2014.
Featurette sobre o desenho de produção que criou o lobby de “O Grand Hotel Budapeste”
Baseado numa adaptação teatral de William Drake do romance best-seller da escritora alemã Vicki Baum que – inclusive – trabalhou como camareira a fim de captar o “clima” de um grande hotel de Berlim e colher idéias para criar os dramas secretos que eventualmente poderiam ser vividos pelos seus personagens-hóspedes, “Grande Hotel” reuniu um elenco all star encabeçado pela mais prestigiada estrela do cinema mundial da época – Greta Garbo – no papel de uma bailarina decadente que se envolve com um aristocrata ladrão de jóias (John Barrymore) que, por sua vez, cruza em luxuosos corredores com outros hóspedes tão suspeitos quanto ele: um contador (Lionel Barrymore, irmão de John na vida real) que resolve passar no luxo os últimos dias da sua vida sem graça, uma ambiciosa estenógrafa (Joan Crawford) indecisa entre essa profissão e aquela outra muito mais antiga, além de um industrial cafajeste (Wallace Beery) às portas da falência. Além deles, há toda uma constelação de funcionários de hotel interpretados magistralmente por grandes atores como Lewis Stone e Jean Hersholt. Mais “ensemble drama”, impossível.
“Grande Hotel” também é considerado o exemplo mais bem acabado daquilo que se chamava “high style romance”, um tipo muito especial de produto cinematográfico, inevitavelmente ambientado no topo da pirâmide social européia e emoldurado pelo mais glamoroso luxo art déco. Nesse Olimpo fotografado em cintilante preto-e-branco, sempre transitava uma galeria de personagens elegantérrimos, mas profundamente infelizes e entediados. O “high style romance” com seu brilho de superfície foi um dos gêneros mais rendosos da Metro-Goldwin-Mayer, a Vênus Platinada entre os estúdios da era de ouro do cinema, mas também da época da mais negra miséria para dezenas de milhões de pessoas desempregadas e abatidas pela Grande Depressão e que se refugiavam no escurinho dos 22.000 cinemas dos Estados Unidos para sonhar com as vicissitudes dos ricos.
Wes Anderson, em sucessivas entrevistas de divulgação de “O Grande Hotel Budapeste”, tem reconhecido a sua dívida para com esse momento tão peculiar do cinema em que floresceram – além dos “melodramas de prestígio” recheados de estrelas como “Grande Hotel” – as screwball comedies e as madcap zany comedies, que podem ser livremente traduzidas como “comédias malucas de correria”. O diretor admite: “Eu acho que os filmes dos anos 1930 tinham um tipo diferente de ritmo e energia. Sem que eu tivesse planejado, na parte dessa década da minha história em “Budapeste”, obtive o ritmo daquele período do cinema”. Sim, é verdade: essa foi uma época em que os filmes de Hollywood conseguiram processar e exalar um cosmopolitismo continental, passar um touch centro-europeu meio decadente trazido por diretores alemães, austríacos, húngaros ou russos como Ernst Lubitsch, Billy Wilder, Michael Curtiz, Douglas Sirk, Rouben Mamoulian ou William Dieterle.
Portanto, no fundo, é a mesma nostalgia melancólica que se propaga tanto no “Grande Hotel” de 1932 como em “O Grande Hotel Budapeste” de 2014. É a mesma celebração do suicídio da grande cultura européia que anima a ambos os filmes, ambientados em magníficos hotéis que mais parecem catedrais. É o mesmo apelo ao “ensemble drama” hoteleiro cujo pelotão de personagens só encontra espaço para circular nos seus dois espetaculares lobbies. É a mesma narração – no quadro do antigo triunfo da elegância suprema – de personagens trágico-cômicos fracassados, arruinados ou derrotados pela marcha do tempo e seus horrores. E é esse mesmo fator tempo que dirá se “O Grande Hotel Budapeste” se transformará num clássico do cinema e se o inconfundível estilo meio cartoon-meio retrô de Wes Anderson não vai acabar desaguando na repetição caricatural como já aconteceu com outros geniais estilistas do cinema contemporâneo, especialmente Pedro Almodóvar e Tim Burton.
Já “Grande Hotel” tem o seu lugar garantido na história do cinema: se não bastassem o Oscar que recebeu de ‘Melhor Filme’ de 1932 e o fato de inaugurar o subgênero “ensemble drama” no contexto do velho cinemão norte-americano com toda a categoria de um “high style romance” da lavra do maior produtor hollywoodiano de todos os tempos – Irving Thalberg –, o filme acabou entrando de vez no altar sagrado da Sétima Arte por que nele é proferido o mais famoso mote da tela – “I want to be alone” – por uma Garbo que quase esbarra na canastrice. Mas o grande barato do longa é saber que esse monumento cinematográfico foi dirigido pela mais libidinosa e desaforada figura gay de Hollywood antes do império do Código de Produção e Censura de 1934 – Edmund Goulding.
Ao lado de George Cukor, Goulding é considerado o maior “diretor de mulheres” de todos os tempos a ponto de ter sido apelidado de “o domador de leões” pela facilidade com que se impunha perante as divas mais temperamentais e excêntricas do cinema como a já referida Greta Garbo, além de Gloria Swanson, Joan Crawford, Norma Shearer, Gene Tierney, Joan Fontaine, Anne Baxter e – é claro – Bette Davis.
A pré-estreia de “Grand Hotel” (1932), típica de Hollywood em seu apogeu
Goulding era mestre em divertir as estrelas que dirigia ao mesmo tempo em que debochava delas, através de imitações exageradas e rebolativas que fazia dos seus respectivos cacoetes durante os ensaios, levando as equipes presentes nos sets de filmagem às lágrimas de tanto rir. Chegava ao extremo de mostrar exatamente o que queria de uma cena, vestido com os figurinos das próprias atrizes. Suas festas e orgias de arromba à beira da piscina de sua mansão em Beverly Hills eram tão famosas quanto disputadas, e preocupavam os chefões dos estúdios pelas suas repercussões nas revistas de escândalo. Assim como muitos diretores de hoje, ele não hesitava em usar como isca para levar para cama jovens candidatos ao estrelato, as famigeradas promessas de testes e de pontas em filmes.
É nesse plano da crônica das fofocas que “Grande Hotel” e “O Grande Hotel Budapeste” se separam, que Edmundo Goulding – o louco e sensualista inglês da antiga Hollywood – se distancia de Wes Anderson – o ruivo tímido e estranhamente infantil do Texas contemporâneo. Enquanto o primeiro ensaiava seus atores trajando vestidos de gala, o segundo prepara o seu elenco indicando suas posições exatas em maquetes minuciosamente construídas. Ainda assim, apesar dos 82 anos que separam suas respectivas obras, eles parecem mais unidos do que nunca pela forma como eternizaram os grandes hotéis como o “teatro do mundo”.
Trailer oficial de “Grande Hotel”
* Flávio Di Cola é publicitário, jornalista e professor, mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ e coordenador do Curso de Cinema da Universidade Estácio de Sá. Apaixonado pela sétima arte em geral, não chega a se encantar com blockbusters, mas é inveterado fã de Liz Taylor – talvez o maior do Cone Sul -, capaz de ter em sua cabeceira um porta-retratos com fotografia autografada pela própria
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