Gloria Pires produz e atua em A Suspeita: Me identifico com a personagem que busca deixar legado de vida irrepreensível


No longa-metragem, Gloria, que foi premiada no Festival de Cinema de Gramado por sua atuação, vive a policial civil diagnosticada com Alzheimer e que vira suspeita durante um caso e precisa provar a sua inocência. Em entrevista exclusiva, ela comenta sobre se identificar “com essa busca da Lúcia em deixar o legado dela intacto, em deixar irrepreensível a vida que ela construiu. Em ter a certeza que ela não poderia sair da Polícia com o nome sujo, sendo acusada de algo pelo qual se dedicou a vida toda a combater: a corrupção”. A atriz fala ainda sobre a potência dos atores experientes no país; a personagem que irá interpretar na novela das sete, “Fuzuê”, na Globo, e já que o filme que produz trata da questão da memória, ela emocionou-se ao lembrar de seu melhor amigo, o ator Lauro Corona (1957-1989), que, no dia 6 de julho, completaria 65 anos

Gloria Pires atua e assina a produção de “A Suspeita” (Foto: Desirée do Valle)

*Por Vítor Antunes

Uma carreira plena em desafios. Assim podemos definir a trajetória profissional de Gloria Pires. A atriz lançou-se em nova empreitada ao produzir e atuar em “A Suspeita”, com direção Pedro Peregrino. No filme, Gloria interpreta Lúcia, comissária da inteligência da Polícia Civil do Rio que é diagnosticada com Alzheimer e está em vias de se aposentar. No entanto, durante aquele que seria o seu último caso, descobre um esquema do qual ela vira suspeita. Com lapsos de memória, a policial terá que lutar por sua própria vida. “A Suspeita” é o primeiro filme de Gloria no gênero de suspense-policial. A experimentação acabou por não ficar restrita ao gênero, mas também na montagem do filme e na sua construção narrativa, que não é linear. Conversamos com exclusividade com a atriz logo após a sessão debate-exibição do filme no Estação NET Botafogo.

Gloria Pires interpreta Lúcia, comissária da inteligência da Polícia Civil que é diagnosticada com Alzheimer (Foto: Desirée do Valle)

“Inicialmente, quando tínhamos somente o argumento e, depois, com o filme em seus três primeiros tratamentos, ele tinha um perfil mais ‘de ação’, e era, sobretudo, um filme extenso”, pontua. Sob este contexto, as cenas nas quais se evidenciava a questão da corrupção policial eram mais evidentes, razão pela qual optou-se por um outro olhar. É o que Gloria sinaliza: “A corrupção não é uma novidade, a aproximação do crime com a lei também não é algo novo. Pra mim, a grande novidade é estar dentro da cabeça desta mulher. A experiência com o Pedro foi determinante, especialmente por conta do desafio de filmar algo que não está escrito, que não é linear. Era vivenciar toda essa experiência com a personagem. Esta montanha russa de sensações, de estar em vários lugares simultaneamente e não lembrar a razão que a fez parar ali. É interessante e faz com que a “ação” do filme deixe de ser algo ‘externo’ para ser ‘interno'”.

Com uma extensa participação no cinema, iniciada em 1981, com “Índia, a filha do Sol”, Gloria Pires resolveu investir também na seara da produção por perceber que poderia contribuir diante de anos de expertise nos sets de filmagem: “Há tempos, eu procurava um projeto para assinar a produção. Quando se é apenas ator, você entra praticamente na hora do seu trabalho, na parte final da produção. Às vezes, você tem o conhecimento sobre aquele tema e não pode intervir. Fiquei com isso na minha cabeça. Estava na hora de produzir e de que eu tinha bagagem suficiente para ocupar este espaço. Quando o Peregrino me trouxe essa história tudo isso se armou ali”, explica.

“Tem algo autorreferente por conta de eu me identificar com a busca da Lúcia em deixar o legado dela intacto, em deixar irrepreensível a vida que ela construiu” (Foto: Desirée do Valle)

Ainda, segundo a atriz, de alguma maneira a personagem dialoga consigo, já que ambas têm a mesma idade. Todavia, além desta razão, Gloria sentiu-se tocada pela possibilidade de as pessoas poderem perder as memórias que as compõem enquanto ‘ser-existente’: “O assunto memória me tocou especialmente depois de eu haver completado 50 anos. A partir daquele momento comecei a revisitar a minha vida, em razão de haver sido questionada por coisas que deixei pra trás. Daí, comecei a fazer essa busca, essa pesquisa (em mim). Tem algo autorreferente por conta de eu me identificar com essa busca da Lúcia em deixar o legado dela intacto, em deixar irrepreensível a vida que ela construiu. Em ter a certeza que ela não poderia sair da Polícia com o nome sujo, sendo acusada de algo pelo qual se dedicou a vida toda a combater: a corrupção. Mais ainda, pelo fato de ela ter abdicado de questões que lhe eram caras como o filho que ela não teve, o casamento que não vivera. Ela achou por bem ser coerente com a vida e a trajetória que escolheu. O trabalho enquanto policial é perigoso, é um ofício que suga as pessoas de uma forma intensa. E sendo mulher é ainda mais difícil já que trata-se de um ambiente que é muito opressor. Quando a gente começou a falar do filme ainda era algo que recaía muito sobre essa questão feminina, de modo que este é um trabalho que tem muito de mim. Essa questão do legado foi definitiva, um grande empurrão para que eu me lançasse à ideia de produzir um filme”.

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A atriz exaltou a parceria estabelecida com os colegas e a equipe técnica: “Trata-se de um encontro. Uma equipe que se admira, que se conhece, que tem um bom entendimento, além de haver admiração e confiança mútuas”. Muitos do staff de “A Suspeita” têm uma parceria longeva com Gloria. Fabrício Tadeu, o diretor de fotografia, trabalhou com a atriz n’O Quatrilho, por exemplo. O longa foi indicado ao Oscar em 1994, na categoria Melhor Filme Estrangeiro. Talvez a parceria e a afinidade presente nas filmagens de “A Suspeita“, além do talento incontestável de Gloria, possam haver colaborado para que ela recebesse o prêmio de Melhor Atriz do Festival de Gramado em 2021. Sobre o prêmio, a atriz afirma: “Divido-o com a equipe. Não tratou-se de um trabalho só meu. Pra mim não tem muito essa de ‘dono da bola’. A ‘bola’ é de todo mundo”.

Pedro Peregrino, o diretor de “A Suspeita“, salienta que o gatilho que o levou a realizar o filme foi poder abordar a questão da memória. “É um assunto importante de se falar e sobre o qual devemos ficar atentos, especialmente com a possibilidade de estarmos vivendo uma crise da memória”, disse ele, acerca da seletividade das lembranças. A peculiaridade temática trouxe ao diretor o interesse em continuar se aprofundando neste assunto em seus próximos projetos: “Esse tema da memória vai estar sempre comigo e eu vou querer contar histórias que passem por este lugar”, garante.

Lúcia, a protagonista de “A Suspeita” tem, coincidentemente, o mesmo nome da ex-policial civil Lúcia Fernandes Core, que prestou consultoria à atriz durante o processo de preparação para a personagem. Além da experiência como policial e psicóloga, Lúcia Fernandes também vivencia o Alzheimer em casa, já que a sua mãe foi diagnosticada com a doença. Durante o debate após a exibição do filme, a ex-policial Lúcia Fernandes fez referência ao autor do argumento do filme, Luiz Eduardo Soares, um dos maiores especialistas em segurança pública no país. “Eu acho que a primeira reflexão que posso fazer sobre o filme é o de observar a atualidade da ação da personagem protagonista. Ela é uma mulher focada nos Direitos Humanos, na mediação e na solução dos conflitos. Afinal, já está provado que à bala não vamos resolver os problemas do Rio de Janeiro. Recentemente houve duas intervenções policiais – no Jacarezinho, que resultou em 28 mortes, e outra na Vila Cruzeiro, com 25 – e não houve investigação”, analisa.

No longa, além de lidar com o Alzheimer precoce, Lúcia precisa provar a própria inocência diante de um crime (Foto: Desirée do Valle)

FUZUÊ

Presença bissexta nas novelas do horário das sete, no qual só fizera três produções, Gloria Pires vai integrar o elenco de “Fuzuê”, primeira obra de Gustavo Reiz na Globo. O début do autor, que desde 2011 escrevia para a Record, está previsto para 2023. Gloria conta-nos sobre sua personagem: “Ela é uma mulher misteriosa. Ela foi cantora no bairro da Lapa, uma pessoa explosiva, temperamental e que, às vezes, é mal compreendida por rompantes”. Ao descrevê-la, Glória foi perguntada se a personagem trazia algum elemento que remetesse à igualmente voluntariosa Sarita, de “Mico Preto”, o que foi negado pela atriz: “(Sarita) toda tinha um tom almodovariano. Sobre a nova personagem, trata-se de uma experiência nova, algo que eu ainda não fiz”.

LAURO CORONA E A VERVE CANTORA

Em razão do filme “A Suspeita” tratar, sobremaneira, do diálogo existente entre memória, legado e construção de identidade, perguntamos sobre Lauro Corona (1957-1989), um dos melhores amigos da atriz, falecido precocemente aos 32 anos, e que, mês que vem, completaria 65 anos. Sobre esta lembrança em específico, Gloria confidencia: “O Laurinho foi um irmão pra mim (emociona-se). Ele era oito anos mais velho que eu, ele me protegia, tinha comigo um cuidado, a gente tinha muita admiração um pelo outro, a gente se adorava. Eu o levei para desfilar na Portela, ele se mudou para uma casa que era ao lado da minha, no Recreio dos Bandeirantes. Nós morávamos quase que no mesmo terreno. O que fica de recordação é que em determinadas situações eu fico pensando ‘e se o Laurinho estivesse aqui o que a gente estaria falando sobre isso?’. Outra lembrança recorrente por que tem muito a ver comigo atualmente é o apelido pelo qual ele me chamava: ‘Vovó Glorinha’. Ele dizia que enquanto todo mundo estava pirando, enlouquecendo, a Vovó Glorinha estava lá, na ‘charretezinha’ devagarzinho, no canto dela… Ele era uma pessoa de visão”. Sobre Lauro, finaliza dizendo “não se tratar de uma lembrança, mas de uma presença”. Ratificando a visão de Corona, está prevista para o fim do segundo semestre de 2022 a estreia do filme “Vovó Ninja“, direção de Bruno Barreto, no qual Gloria vive Arlete, uma avó com “misteriosas habilidades”.

Diante do escandaloso sucesso da novela “Dancin’ Days”, na qual viviam o casal Marisa e Beto e quando a amizade entre eles começou, a dupla gravou um clipe especial para o Fantástico, cantando “João e Maria”, a música tema dos personagens. A experiência, contanto, não foi a única. Mais tarde, a atriz teve participações episódicas como cantora, inclusive gravando canções com seu marido, Orlando Morais – chegando a ser diretora em um clipe. Porém, uma de suas primeiras atuações no segmento se deu por intermédio de Oswaldo Montenegro, quando gravaram “Drops de Hortelã”, em 1985. O intérprete de “Bandolins” queria que Gloria fizesse teatro junto a ele e diante das várias negativas da atriz, que só teve uma incursão neste gênero, Montenegro convidou-a para os estúdios. Ela conta: “Oswaldo vivia me convidando para que fizéssemos uma peça. Depois de muito convidar, resolveu mudar a abordagem e antecipou: ‘olha, vou te chamar para uma coisa mas não é para fazer teatro. É para cantar uma música comigo’. Assim fizemos. A prioridade era o prazer e a alegria”, relembra.

Lauro Corona e Gloria Pires em “Louco Amor”. Os atores foram par romântico em “Dancin’ Days” e em “Direito de Amar”, além de terem uma amizade profunda: “Era um irmão” (Foto: Reprodução/Instagram)

A EXPERIÊNCIA DA MATERNIDADE

Em 1980 durante entrevista ao extinto programa TV Mulher, a apresentadora Marília Gabriela perguntou sobre filhos e Gloria afirmou que não queria ter filhos. Ao relembrarmos este episódio, a atriz solta uma sonora gargalhada por conta de, 42 anos após haver dado a declaração, ter quatro filhos – Cleo, Ana, Antônia e Bento: “Eu acho uma graça (esse depoimento). Como a gente se ilude com alguns conceitos! Eu realmente me lembro de haver dito isso, por que havia em mim, desde cedo, essa ideia de não ter filhos. Mas, a maternidade chega até mim como uma espécie de chamado”. Com efeito, quando Cleo nasceu, Gloria estava com 19 anos. “Índia, a filha do Sol”, seu primeiro filme, foi lançado em maio e a primogênita nasceu em outubro. Às raias de iniciar as gravações de “Mulheres de Areia”, Gloria descobriu-se grávida de Antônia. Um desafio conciliar carreira e maternidade? “Foi bem complicado. Primeiro por que tem todo o lance da culpa, de deixar o filho em casa mesmo que seja para o sustento dele próprio, há uma cobrança. Minha mãe foi muito parceira. Eu tive a sorte de ter mulheres que me ajudaram muito cuidando dos meus filhos, pessoas às quais sou muito grata como a Téia, que tinha uma profunda relação de afeto com a Cleo, a levava pra casa, assim como a minha sobrinha. A Dona Wilma que chegou para cuidar da minha filha Ana e está conosco até hoje e ninguém quer que ela vá embora”.

Gloria, Cleo, Ana, Bento, Dona Wilma. Com o conjunto estampado em preto e branco, Antônia Morais. Entre Cleo e Gloria, o cantor Orlando Morais, marido da atriz (Foto: Reprodução/Instagram)

A presença feminina é marcante na biografia da atriz, que tem três filhas mulheres, Cleo, Ana, Antônia e Bento. Porém, ela destaca o poder também de dois nomes masculinos nessa trajetória: Orlando, seu marido, e Bento, o filho caçula: “Orlando, que é o que a gente chama de “pãe”. Ele é um agregador, um parceirão”. Quanto ao filho caçula, único de uma prole de moças, ela diz não haver pensado “muito na questão se ele seria um menino ou uma menina, mas sim, em sua saúde e na própria condição da maternidade”. Mas conta-nos um fato curioso que o une à Cleo, sua irmã mais velha: “Bento nasce 22 anos e dois dias depois da Cleo. Ambos são librianos: Ela do dia 2, ele do dia 4. A data no nascimento da Cleo acabou sendo dez dias depois da prevista, já quanto ao Bento, foram 10 dias anteriores à inicialmente cotada. Ela nasceu às 15:16 e ela às 16:15. Os dois são muito complementares em tudo, especialmente no temperamento. Cléo é desbravadora, ele contemporizador”. Ou seja, a balança, símbolo do signo que os rege, é física. O equilíbrio se dá através da própria condição de existir de ambos.

QUANTO AO TEMPO

O etarismo para os homens e para as mulheres se manifesta de maneira diferente. Quando amadurecem, os homens “ficam” grisalhos. Quanto a elas, “assumem” o grisalho. Forma sutil de manifestar a pressão estética a qual passam as mulheres em todas as fases da vida e que se radicaliza quando da maturidade. “Assumir o meu grisalho foi algo libertador. Nada impede que eu pinte os meus cabelos para fazer um trabalho, mas é algo maravilhoso pra mim me ver dessa forma, olhar pra trás e observar que foi um caminho, uma trajetória, uma vida. Acredito que a tendência seja que olhem para os grisalhos masculinos e femininos da mesma maneira”.

Sobre o mercado de trabalho, Gloria salienta que os atores possivelmente sofrem um tanto menos já que há personagens de todas as idades, mas ela diz observar algo relevante neste cenário: “A valorização da experiência. Com a idade a gente perde algumas coisas, mas ganha outras tantas. A idade não é só problemática ou difícil”. Aos 58 anos, com uma carreira consolidada, perguntamos à Gloria Pires o que ela diria para Gloria Maria – primeiro nome artístico que usou e que só mudaria para o atual em 1976, quando atuou em “Duas Vidas”. “Não se levar tão a sério, divertir-se mais, jogar-se no mundo. A não sofrer tanto com a preocupação de fazer direito e não errar”.

Gloria comentou acerca de uma especificidade astrológica sua: Disse ser “cúspide de Leão com Virgem”. São poucos os que podem, assim como ela, estar nesse ponto intermediário em que o Sol está em transição. Coube a ela ser o misto do perfeccionismo de um signo com a expressividade e poder de comunicação do outro. O inevitável trocadilho se faz necessário quando apontamos que, entre esses poucos, apenas ela tem a glória de ser o que é: atriz, produtora, mãe, mulher, casada com o “aquariano Orlando”…. e ser brasileira.