Carolina Ferraz tem participado de uma verdadeira maratona de eventos de divulgação de seu novo longa “A Glória e a Graça”. A atriz juntamente com o diretor Flávio Tambellini, o roteirista Mikael Albuquerque e as atrizes Sandra Corveloni e Carol Marra tem aproveitado as oportunidades para contar um pouco da dificuldade de captar verbas para que a produção acontecesse. O elenco esperou nove anos para que o dia da exibição chegasse – ele estreou há duas semanas. A trama se baseia em duas irmãs que se reencontram depois de 15 anos. Graça, interpretada por Sandra Corveloni, agora é mãe de dois filhos e descobre logo no início da história que possui um aneurisma. Com poucos dias de vida, procura o irmão Luiz Carlos para cuidar das crianças quando ela falecesse. O irmão agora se chama Glória, uma travesti bem-sucedida e dona de um restaurante em Santa Teresa. O fato de Carolina Ferraz atuar como transexual é visto como um ponto positivo por toda a produção. Para a atriz transexual Carol Marra é uma forma, inclusive, de mostrar que todo o artista deveria poder atuar em qualquer papel. Carolina Ferraz comprou os direitos do roteiro e se empenhou muito como atriz e como pessoa para que a obra mostrasse a realidade. Chegou a colher 62 depoimentos de diferentes transgêneros nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro. Confira um pouco mais dessa trajetória.
HT: Foram nove anos descobrindo novas realidades, pesquisando e produzindo um material rico para o filme. Mudou alguma coisa dentro de você por causa desse projeto?
CF: Acho que eu sou a mesma pessoa, mas me aprimorei. Estou melhorando e evoluindo como ser humano. Eu tenho um irmão homossexual que faleceu por causa da AIDS, na década de 80. Ainda era uma menina e via como era uma barra pesada se assumir. Imagina a realidade de um transgênero no universo preconceituoso brasileiro. Eu me deparei com a situação precária dessas pessoas e a falta de recursos que elas possuem. Muitas foram expulsas de casa com 7 e 8 anos.
HT: Por isso algumas pessoas, às vezes, não se assumem. O preconceito é muito grande. A sua personagem Penélope de “Haja Coração” tinha medo de sofrer pela idade, por exemplo.
CF: Eu estava lendo uma pesquisa sobre isso. A maioria das mulheres com mais de cinquenta anos se sentem invisíveis na sociedade brasileira. Existe preconceito em todas as idades e em todos os meios. É muito maior do que a gente imagina. Esse projeto visa fazer o bem. Para mim como artista e para o resto das pessoas. Não tenho a expectativa de que esse filme mude algo. Seria lindo. Mas o que eu quero é abrir o debate. Trazer luz a essas pessoas e a essa realidade. Ninguém nunca pensaria em mim para atuar nesse papel. Foram anos me dedicando e me esforçando.
HT: Em uma de suas entrevistas sobre o filme, você fala que queria fazer papel de uma mulher que por acaso é um homem. Qual foi a maior mensagem que você buscou trazer atuando como Glória?
CF: Eu queria muito fazer esse personagem. Sempre tenho muito respeito por todos as pessoas que eu interpreto. E, no caso da Glória, me vi apaixonada pelo ser humano que ela é. Sua vida é admirável. A trajetória é linda. Eu apenas a abracei e fiz o papel de coração aberto e com muito respeito. Não quero ocupar o lugar de ninguém.
HT: Recentemente foi divulgado na internet um manifesto chamado “Representatividade trans já! Diga não ao trans fake”. Você leu o manifesto? O que achou?
CF: Eu li o manifesto que eles falam da falta de representatividade. Acho muito triste que você não possa interpretar sua realidade. Espero que os artistas um dia não tenham sexo e sejam vistos pelo o que são. Acho que é muito difícil uma travesti conseguir se representar. Retratar a si mesma. O dia que uma atriz como Carol Marra, que atuou no filme “A Glória e a Graça” comigo, tiver o papel principal da novela das oito esse movimento perderá o sentindo. Mas, por enquanto, é um debate extremamente válido. É preciso trazer luz para essa situação. Enquanto isso, legitimo e tento dar visibilidade a essa questão.
HT: A sua personagem passou por muitos momentos complicados. Você teve alguma dificuldade em atuar em alguma cena?
CF: Não. Eu tive medo de fazer algo que não fosse verdadeiro. Queria muito fugir de qualquer caricatura. Na hora que começou a rodar, tentei esquecer de tudo isso. Ficava doze horas no set vestida como Glória e só pensava em mostrar a realidade para o público. Só parava para alimentar a Bebel (risos).
HT: Há algum traço da Glória que foi inspirado no seu irmão?
CF: Não. Embora, se ele tivesse vivo amaria ela.
HT: A Glória é uma pessoa com muitas camadas. Ela já foi um menino, um homem. É um travesti, gerente de um bar e mulher transexual. Sofreu preconceito na família e saiu de casa. Qual inspiração podemos tirar desse personagem?
CF: É tão difícil responder essa pergunta. A Glória mostra que as coisas podem ser diferentes e mesmo os erros podem ser reparados. Acho que essa é a maior lição do filme. As pessoas podem, sim, se reencontrar com coisas importantes que antes não tinham mais sentido. Podemos ter outras oportunidades. Cada um sabe de si. Sabe das dificuldades de ser quem é. É tão bom poder mostrar um pouco de esperança para as pessoas. Nosso mundo está cheio de tragédias. Coréia do Norte, na África, na Síria…. É tão bom que dentro do meu mundinho poder levar um pouco de esperança para as pessoas.
HT: Há uma cena muito forte no filme envolvendo um quase estupro. Como foi a produzi-la?
CF: Quem contracenou comigo foi o meu marido, que também é ator, Marcelo Marins. Quando eu li pela primeira vez, fiquei com o estômago embrulhado. Há algo muito forte e verdadeiro nessa cena que o roteirista Mikael conseguiu escrever. É um abuso de poder. A Glória fala que se enganou, que não precisa do dinheiro. Tentei faze-la com muita verdade. Eu me entreguei. Tentei passar toda a dor que eu imagino que uma pessoa sente nessa situação.
HT: Quais são as suas expectativas quanto à repercussão nas telonas dessa obra?
CF: Eu queria tanto que esse filme alcançasse o público. Eu não acho que seja tão de nicho como as pessoas estão achando. Não é um filme pop, também, porque não tem carros explodindo (risos). É um filme que conta uma história. Espero muito me surpreender com a repercussão.
HT: O roteirista do filme Mikael Albuquerque contou que nunca teve a intenção de centralizar a trama em torno da sua personagem. Quis mostrar como ser travesti era normal que poderia ser apenas mais um elemento da história. Achei muito inteligente o filme não se basear nas questões dos transexuais.
CF: Claro. A trama fala sobre uma família moderna comum de classe média. O conceito mudou. A composição não se baseia mais em uma mãe e um pai. Se eu e a galera do site HT tivermos uma afinidade e esse sentimento for legítimo, por exemplo, porque isso não seria família? Às vezes, esses laços são mais fortes do que os sanguíneos. Quem disse que um casal de homossexual ou uma travesti não pode ser pai? Toda a forma de amor é válida. O bem é bom quando é para todos. Temos que deixar de contar com as instituições. Cada um deveria fazer a sua parte como cidadãos. As organizações têm outras preocupações que não podemos ajudar. Temos que trazer esse problema para nós. Se cada um ajudar um pouco, acho que podemos construí um mundo melhor para todos. Mais igualitário.
HT: E o seu programa de culinária no GNT, Receitas da Carolina. Tem alguma novidade para 2017?
CF: A gente vai estrear em agosto. Eu estava pensando em um projeto que envolvia viagens, mas acabou ficando muito caro. Com a correria das novelas, não conseguimos alinhar tudo antes do meio do ano. A verdade é que nunca achei que fosse dar certo. O canal insistiu por três anos e acabei cedendo. A ideia saiu do livro que eu lancei há nove anos “Na cozinha com Carolina Ferraz”. O que eu mais gostei do programa é ele ser totalmente autoral. É a Carolina ali e isso me humanizou muito. Sou aquela pessoa. Como atriz, passamos muito tempo atrás de personagens. Me mostrar um pouco foi bom.
HT: Como é ser atriz em época que a Lei rouanet é tão demonizada? Já teve alguma dificuldade com alguma produção?
CF: Seria lindo se houvesse uma situação diferente no país. São poucos os países onde o entretenimento é um mercado em si. Você investe e banca aquela história e esse universo funciona quase que unicamente por iniciativa privada. Mas, infelizmente, aqui não é assim. Até em países da Europa o Estado precisa ajudar na produção. Mas a gente precisa manter a chama da cultura viva. Está cada vez mais difícil fazer teatro. Até uma peça simples é caro. Como você vai fazer algo se não houver incentivo? Precisamos criar condições melhores para que o empresário possa aplicar o dinheiro de uma forma mais aberta. Graças a deus, nunca tive relação com nenhuma produção em que alguém foi acusado de roubar dinheiro.
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