*por Vítor Antunes
Desde que a Globo resolveu investir no Globoplay, sua principal ferramenta de streaming, o player foi ganhando mais solidez e aceitação no mercado. E quando começou a incluir novelas em seu catálogo, a plataforma passou a ser alvo de comentários – por vezes ferinos – dos espectadores. Não são poucas as novelas que estão incompletas. Assim como não são poucas as aquelas que jamais poderão ser exibidas, por estarem tecnicamente imprestáveis – Com capítulos faltantes ou defeituosos, quer em imagem, quer em som. De igual forma, muitas tramas sequer existem mais. Entre as incompletas, algumas estão na plataforma. A primeira a ser disponibilizada desta forma foi “Roda de Fogo” (1986), sem o capítulo 90. Depois dela, entre as que figuraram incompletas, consta “Guerra dos Sexos” (1983), sem o capítulo 113 e a versão original de “Elas por Elas“, sem os capítulos 37 e 160, por exemplo. Nesta semana, gerou ruído o fato de a minissérie “Avenida Paulista” haver sido disponibilizada sob a mesma condição: O capítulo 6 da minissérie, que tem 17 episódios, foi dado como perdido, até que um telespectador o disponibilizou no X/Twitter e a Globo upou o capítulo ao Globoplay.
Porém, estes não são os casos mais graves. Muitas novelas exibidas pela Globo entre o tempo de sua fundação, 1965, e o início dos anos 1970 são tidas como perdidas. Destas, apenas “Irmãos Coragem” se manteve, porém numa versão compacta, distante dos seus mais de 300 capítulos. Das tramas exbidas entre 1970 e 1976, muito também foi perdido, já que exatamente em 1976, a emissora sofreu um incêndio. É louvavel o fato de “O Bem Amado” (1973) haver sido mantida praticamente na íntegra. Após isto, muitos são os motivos alegados para as lost-medias. Novelas como “Sol de Verão” e “Coração Alado” têm poucos capítulos disponíveis, o que torna inviável a disponibilização no Globoplay. Para o professor de teatro e crítico Matheus Guelsi do Rio de Janeiro (RJ), que também é do canal Nosso Drama, do YouTube, “O resgate que o Globoplay vem fazendo é maravilhoso. Ainda que algumas obras não sejam resgatadas na íntegra, isso gera curiosidade sobre os porquês da não (ou da má) preservação, aprofundando também o conhecimento a respeito da época em que a obra foi produzida. É claro que queremos ver tudo na íntegra, mas é uma maneira menos frustrante de pensar.
Afinal, é mais importante haver novelas inéditas, msmo que incompletas ou inviabiliza-las à exibição por isso? E quanto às perdidas? O que se perde junto ao desaparecimento de novelas fundamentais como “O Cafona” (1971) ou “Os Ossos do Barão” (1973)? Para o vendedor Rodrigo Cunha, de Sorocaba (SP), haver novelas com capítulos faltantes não é um problema: “Acho ruim faltar capítulos, mas é melhor um capítulo faltando do que ficar sem rever a novela, ainda que, por vezes, a gente perca do fio [narrativo]. Mas é preciso levar em conta que no passado não havia uma preocupação em se preservar esse material. Temos que dar graças a Deus por podermos ver essas obras, mesmo com um ou dois capítulos faltando”. No que tange às obras perdidas, ele diz que “É uma pena. Demonstra até um certo descaso. Eles [da TV] teriam como ter preservado, mas não quiseram, talvez pela novela não ter feito o sucesso esperado, ou ter sido marcada por um fato triste, como é o caso de ‘Sol de Verão‘ (1982), ou ‘De corpo e alma‘ (1992), que talvez possam até estar guardadas, mas não é interessante exibir, por motivos óbvios”. Ambas as novelas citadas por Rodrigo tem em comum o fato de atores nela escalados haverem morrido enquanto a obra estava no ar. “Sol de Verão“, Jardel Filho (1927-1983) e “De Corpo e Alma“, Daniella Perez (1970-1992). Segundo inormações do próprio diretor da Globoplay Erick Brêtas, “Sol de Verão” está praticamente perdida: “Dos 137 capítulos originais temos apenas 8”.
TEM, MAS ACABOU
Conforme citado, “Roda de Fogo” e “Elas por Elas” têm algo em comum que é a falta dos capítulos originais. “Dancin’Days” e “Vereda Tropical” também têm similaridades. Ambas as novelas não estão na íntegra em suas versões originais, exibidas no Brasil. A primeira, exibida em 1978, quando foi ao ar no Viva, teve sua transmissão feita através de uma versão internacional. Já a que está no Globoplay é um mix da versão original com a para o público estrangeiro. Há de se notar o esforço da Globo em oferecer os produtos o mais próximo do original possível, porém, a vontade esbarra no pouco zelo que a emissora – e não apenas ela, mas todas as outras, incluídas aí as extintas Manchete e Tupi – em manter o seu aqruivo. Tramas como “O Amor é Nosso” (1981) não estão disponíveis no acervo da Globo mais.
Segundo Matheus Guelsi, “Historicamente, não faz muito tempo que a arte passou a ser considerada um objeto de estudo. Sobretudo em se tratando de uma arte popular e que, para muitos, está em uma linha tênue entre arte e comércio, caso das telenovelas. Sua relevância social, histórica e até mesmo política foi descoberta há pouquíssimas décadas. Durante esse processo de transformação da conscientização da preservação, parte da história se perdeu, mas isso, infelizmente, não é exclusividade das telenovelas. Importantes filmes, até então considerados com quase – ou nenhum – valor artístico, passaram a ter sua importância reconhecida apenas recentemente. Para alguns, tarde demais. Nestes casos, “não adianta chorar pelo leite derramado”’.
Para Guelsi, “O estudo da importância de tal obra somado à ciência de que jamais a veremos concretizada é também um registro histórico importante. Um estático de como, naquele momento, aquela obra era vista por aqueles que a produziam e a arquivavam. Um retrato de como, ainda que hoje considerada um clássico, aquelas pessoas lidavam com, não só a telenovela em si, mas com o fenômeno telenovela, de maneira geral. Por que não houve a conscientização de preservar? Havia a noção de que aquilo que estava acontecendo era arte e possuía um valor estético, histórico, conceitual? Tudo isso é retrato do tempo dos nossos anos 1950 e 1960, onde o conceito de arte explodia de novos significados e entendimentos. É um pensamento triste, sem dúvidas, mas se pensarmos que hoje os esforços pela preservação são outros, há uma ponta de esperança”
A forma como lidamos com nossas memórias artísticas é precária e desleixada. Políticas públicas, além de pouco incentivarem, por vezes até dificultam o trabalho de preservação – Matheus Guelsi, professor.
As falas de Guelsi se coadunam com as do pesquisador de teledramaturgia Sebastião Uellington Pereira, do Site Mofista. Ele lastima especialmente a perda definitiva de novelas. “Junto à perda desses folhetins perde-se muita coisa. Não só o registro de uma época mas o registro comportamental de um período histórico no Brasil, já que algumas tramas se passavam durante a Ditadura Militar (…). São tramas que sempre serão lembradas como bem sucedidas mas que não poderão ser vistas. É uma pena que uma emissora do porte da TV Globo não tenha preservado algumas obras , a contrário de outras que foram guardadas”. Sebastião aponta para alguns motivos que possam ter dado origem a essas lost-medias: “Óbvio que toda empresa passou por períodos complicados de ordem financeira. Era muito caro comprar fitas de videotape, então coisas foram gravadas umas por cima das outras. Não deixa de ser revoltante saber que muita coisa se perdeu, especialmente em razão de isso afetar também os pesquisadores da área. Pessoas que estudam a teledramaturgia, não só como um produto, mas como base histórica. É muito triste saber que não vamos ter acesso às novelas “Bandeira 2″ (1973), “O Homem que Deve Morrer” (1971), “O Semideus (1973), “Cuca Legal” (1975) ou “O Grito” (1976)”
No momento em que as novelas atuais em todas as emissoras que estão passando por um período bastante complicado de audiência e de repercussão, uma coisa ou outra ainda faz sucesso, é muito interessante ver que as novelas no streaming tem despertado mais o interesse do público do que as próprias novelas recentes – Sebastião Uellington Pereira, pesquisador
O roteirista e pesquisador de teledramaturgia Theodoro Castro, de Porto Alegre (RS), discorda parcialmente: “No caso do Globoplay, que é o braço de streaming da TV Globo, disponibilizar essas obras com capítulos faltando denuncia as más práticas do passado. A Globo sempre obteve hegemonia na audiência e sempre teve para si uma fatia desproporcionalmente superior de receita publicitária, portanto, não me parece que a questão financeira seja realmente a preponderante”. Quanto às lost-medias, ele lastima. “Quando comparamos o trabalho constante e permanente de preservação audiovisual de outros países, como os EUA, cuja programação é majoritariamente comercial, percebemos que estamos diante de uma questão que é eminentemente cultural nossa, brasileira. Reaproveitar fitas com programação para se economizar – essa alegação faz com que nos perguntemos quanto vale o patrimônio cultural para empresas comerciais daqui”. Theodoro, inclusive, está realizando um Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) da Pós Graduação, justamente, sobre mídias perdidas.
Theodoro porém, exalta a iniciativa da Globo em tirar esse material dos arquivos: “A iniciativa de resgatar essas obras, de uma vez por todas, é evidentemente louvável, já que são obras de interesse público. Há espaço para muitas melhorias, no entanto, a começar por pessoal qualificado na área de teledramaturgia que possa assessorar na hora de organizar capítulos e episódios. Não raras as vezes, novelas e minisséries são disponibilizadas com ganchos diferentes do original e mesmo episódios fora de ordem – o caso mais recente foi a minissérie Avenida Paulista, no qual o Globoplay contou com a assessoria de pesquisadores e fãs para perceber o erro e consertá-lo. Além do capítulo faltante, a Globoplay inverteu os capítulos 11 e 17.
Sebastião não problematiza o fato de novelas estarem incompletas na plataforma. Pelo contrário. “Acho que só de ter acesso a essas tramas, mesmo um capítulo faltando, já é um deleite pro público. Já é uma oportunidade das pessoas pelo menos conhecer o trabalho de autores como Janete Clair, Bráulio Pedroso, Alcides Nogueira, Walter Negrão, Cassiano Gabus Mendes, Gilberto Braga. Não é só o prazer de se conhecer uma história que fez sucesso mas também revisitar um tempo onde as coisas eram mais criativas e não um copia-e-cola de hoje, onde remakes (acontecem) – não que seja contra, acho que os remakes são válidos quando há uma releitura, quando se atualizam algumas coisas que ficaram defasadas ou novelas de emissoras que não conseguiríamos assistir à obra original”. Sebastião finaliza dizendo que “A Globo é a pioneira no streaming a disponibilizar novelas antigas. Ano que vem teremos “O Espigão”, que completará cinquenta anos da sua estreia. (…) É muito bacana o público poder ter acesso a essas obras magníficas, acho louvável e creio que deveria ser algo cada vez mais comum promovido, divulgado, exibido para que as pessoas possam conhecer esses títulos”.
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