*por Vítor Antunes
Um turbilhão de novidades. Poderíamos assim definir a entrevista com Giovanni Venturini. O ator está com trabalhos em várias plataformas – tanto no streaming como no cinema – algumas indicações a prêmio, além de outros trabalhos já realizados na TV. Mas, além das novas diretrizes de trabalho, o artista os traz outros elementos que nos ajudam a compreender o universo e a configuração que envolve as pessoas que trabalham com arte e, como ele, convivem com o nanismo. Por anos, a referência foi única e exclusiva o cantor Nelson Ned (1947-2014), cantor tão talentoso como controverso. De igual forma, as pessoas com essa deficiência – sim, eles são PCD’s – conviveram também com a pilhéria sob sua condição sob o verniz do humor e com a segmentação de seus trabalhos, sempre recortados sob a ótica do exótico, do estereótipo, do circense. Nesta entrevista, Giovanni Venturini revela-nos a importância da centralidade do debate sobre a questão do PCD (Pessoa com Deficiência) com nanismo.
Além do ativismo pela causa PCD direcionada ao nanismo, o ator também falou sobre um de seus trabalhos, o documentário ‘Assexybilidade’ , dirigido por Daniel Gonçalves, que como o próprio nome sugere, trata sobre a sexualidade de pessoas com deficiência – do flerte ao sexo, desmistificando a ideia de que eles são pessoas assexuais, especiais ou sem desejo, bem como falando sobre os devotees, pessoas que sentem atração exclusivamente com PCD’s. Outro projeto é o curta “Big Bang“, cujo protagonista é uma pessoa que conserta fornos e cujo conflito perpassa sobre questões relacionadas ao preconceito e solidão. O filme está entre os pré-selecionados tanto para o Oscar como para César (premiação francesa). Outro investimento no audiovisual é a série “Justiça 2“, da Globoplay, no qual o seu personagem não era tipificado como PCD. Há ainda a série “Dias Perfeitos“, também em pré-produção para o streaming.
“Quem também convive com esta condição se flagra diante do fato de que esta é a única deficiência sobre a qual ainda é permitido ser risível. Uma das poucas que ainda é tratada com humor ou através da deslegitimação e que não nos representa como pessoa. O grande avanço que tem acontecido nas artes brasileiras é reflexo do recado de Hollywood e dos grandes mercados. Depois que o Peter Dinklage, de “Game of Thrones“, ganhou muitos prêmios, a coisa mudou de figura. Mas, no Brasil, os convites ainda estão no lugar do estereótipo”, observa.
Outra questão que o ator trouxe à tona é a inadequação do uso da palavra “anão” [sic]. Para ele, o uso desta palavra “tem uma questão histórica e momentânea. É importante discutir isso e falarmos sobre o termo correto, do momento atual da linguagem. Afinal, o idioma é mutável. A cada geração se modifica. E esta outra palavra, inadequada, tem forte tom pejorativo. Sempre foi usada como adjetivo de inferioridade ou como forma de inferiorizar alguém. Quando falamos pessoa com nanismo, considera-se a pessoa primeiro e não a sua deficiência.
Talvez em algum momento a gente se reaproprie da palavra “anão” de forma positiva, assim como houve com as palavras travesti ou gordo, que hoje são um símbolo e empoderamento, e de lutas, mas é preciso, sim, a sociedade aprender que a expressão correta é ‘pessoa com nanismo’ – Giovani Venturini
TUDO PASSARÁ?
Uma das últimas novelas das quais Giovanni participou na TV foi a infanto-juvenil “Cúmplices de Um Resgate“. Anteriormente a esta, ele fez “Chiquititas” (2013), ambas com uma linguagem que vez por outra acaba por encaixar a pessoa com nanismo num estereótipo. Neste caso, ainda que as tramas tenham se voltado a outras prerrogativas, por vezes, o clichê prevaleceu. Algo não muito diferente do que aconteceu com a atriz Juliana Caldas em “O Outro Lado do Paraíso” (2017), da Globo. A novela não foi poupada ante o pouco zelo com a personagem, que como dissemos anteriormente, ocupava-se a queixar-se por conviver com o nanismo, através do quase bordão – incorretíssimo, inclusive – o “só por que eu sou anã?“.
Para o ator, é “importante quebrar estereótipos e esse lugar nos quais costumamos ser colocados na mídia. Na indústria do entretenimento temos autonomia até certo ponto, ou seja, ela não é total. Foi de grande importância os nossos personagens – meu e de Juliana – mas compreendo as críticas, já que passo na pele isso. Na minha novela tentei mudar algumas coisas que eu achava estereotipadas e excessivamente cômicas mas não consegui em todas as vezes. É uma luta constante”. O ator, contudo, pondera: “Estar ali e é um grande avanço, especialmente no entretenimento de TV. A grande massa reproduz o que foi construído historicamente na arte. As pessoas com nanismo sempre foram retratadas no agressivo, no cômico, desde a Grécia antiga aos freaks shows. É uma construção social dessa imagem”, contextualiza.
A fala de Govanni, de fato, encontra eco na historiografia tanto da TV como das artes em geral. Antes dos personagens dele e de Juliana, todos aqueles que possuíam nanismo estavam ainda mais imersos num campo da folclorização. Por muitas das vezes não eram sequer atores PCD quem os interpretava. Um exemplo seria o personagem Reizinho, de Jô Soares (1938-2022). Outro exemplo, poderia ser o ator Tiago Abravanel, que no quadro “Show dos Famosos” do Domingão do Faustão imitou o cantor Nelson Ned. “Se forem fazer personagens com deficiência, que sejam atores com deficiência e não se recorra ao cripface”, ou seja, o artista ressalta que pessoas com deficiência devam viver pessoas com deficiência e não o contrário. E isso não se restringe àquelas com nanismo, mas também os que possuem outras condições como o autismo. “É um assunto pouco discutido o capacitismo, menos que o racismo e a LGBTfobia”. Outro exemplo de cripface seria o do ator Freddie Highmore, que interpreta o médico autista Shaun Murphy, em “The Good Doctor“.
Perguntamos ao Giovanni se ele ainda nota um olhar de exoticismo para ele e seus pares partido da classe artística. Ele diz que “Depende de quem olha. Nunca tive esse olhar para o Nelson Ned, por exemplo. Tinha a ele como referência pelo fato de ser igual a mim, com essa grande musicalidade e habilidade, por haver atingido vários países e ser mais econhecido lá fora do que aqui. Essa visão exótica é mais de quem está vendo do que a nós. Acho que temos, sim, uma sociedade preconceituosa e capacitista”. Ainda de acordo com o ator, “a única referência artística bem sucedida que eu conhecia era o Nelson. As outras não eram exatamente aquilo que eu queria seguir. Quando eu fiz uma novela no SBT, eu recebi abordagens de pais de filhos com nanismo que diziam que os filhos assistiam por mim e se sentiam representados. Hoje há presença de pessoas com nanismo em HQ da “Turma da Mônica” e eu farei um personagem na série “Justiça 2″ que não era inicialmente previsto para ter nanismo. A representatividade está mudando e a sociedade cobra por esse espaço, por uma representação digna de formas mais clara e limpa, e um artista mostrando-se como ele quer ser tratado como cidadão”.
Aponta-nos o ator de que o nanismo é, efetivamente, uma deficiência. Uma pessoa com nanismo tem os mesmos direitos de uma PCD, tem um CID (Código Internacional de Doenças) e, definitivamente, eles não são apenas uma pessoa de tamanho diferente, pelo contrario. “A sociedade não foi feita para gente. Precisamos nos adaptar a ela. Há mais de 400 tipos de nanismo e há problemas ósseos que precisam ser tratados, há questões de saúde que precisam ser acompanhadas para minimizar os danos do tempo e do passar da idade”É importante trabalhar essa imagem com naturalização e não só por ser uma pessoa com nanismo mas como uma pessoa. Cansa ter que falar sobre isso também na arte ou ser chamado para falar sobre isso [como personagem] – Giovanni Venturini
O grande motivo de ainda ser permitido rir e associar o nanismo à comédia é porque não somos vistos como PCD’s. Ver alguém na cadeira de rodas ou um Down e se rir delas é, de fato, algo inaceitável. Mas é algo que não se aplica às pessoas com nanismo – Giovanni Venturini
Outra questão na qual Giovanni está envolvido é a da moda. As pessoas com a mesma condição que a dele não eram contempladas com roupas para si. Hoje, a contrário, há uma. A Via Voice, que costuma fazer as roupas de festa do ator, inclusive. “Antes eu consumia linha infanto juvenil 12 e 14 anos e tinha que fazer ajustes. Já escolhi roupas não por que me serviam, mas por que eram as que me cabia”.
Durante toda esta matéria referenciamo-nos ao cantor Nelson Ned. Em 1972, Marino Delamare, na Revista Manchete apresentou-o indelicado epíteto: “Um grande cantor de bolso”. Porém, o mesmo jornalista, e na mesma edição da revista, dizia que o slogan do músico em Portugal era “um cantor que não se mede aos palmos. Se mede às palmas”. Surpreendentemente nas nossas pesquisas, poucas matérias desta publicação faziam referência à altura do Nelson Ned, mas ao seu talento na maior parte delas.
Porém, na extinta “O Cruzeiro”, um show de indelicadezas nesta seara. A primeira matéria sobre ele, inclusive trazia como título “90 centímetros de show”. Mas, se há uma coincidência entre as duas revistas é que não há entrevistas. Parece que Nelson nunca foi ouvido/lido. Ainda que tenha feito sucesso com ela, não parecem ter lhe dado voz.
Quinzinho (1935-1994) foi um ator com nanismo que nunca teve o rosto revelado na novela “Transas e Caretas“. Esteve durante toda a novela com um figurino que lhe cobria a face e chegou a ser esquecido no sol pela produção da trama, a ponto de ele desmaiar, desidratado. Por incrível que pareça, falar transformou-se em privilégio de uma nova geração como a de Venturini. “Num mundo ideal seria incrível não precisar falar sobre esse tema, mas sendo um corpo dissidente numa sociedade que impõe padrões estéticos e sociais vai ser sempre necessario se posicionar. Ter o meu corpo em cena já e um posicionamento. Meu corpo nas fotos da entrevista também. Esse é um tema que vai estar sempre comigo e ser sempre debatido”.
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