Gina Le Feu: vedete do teatro de revista que trabalhou com Elvis Presley está em situação de rua, em SP


Vedete do teatro de Revista, Gina Le Feu, fez filmes de Elvis Presley e trabalhou na televisão, fazendo números musicais na TV dos Anos 1960 e 1970. Moradores de um condomínio de São Paulo e funcionários de um restaurante da região da Consolação estão ajudando a artista de 87 anos, que está em situação de vulnerabilidade social. Atriz residia na Rua Bela Cintra, em São Paulo, moradia da qual fora despejada. Mudou-se para o Jardim Nakamura, Zona Sul de São Paulo e, por não conseguir pagar o aluguel, perdera o teto. Hoje transita pela Rua Augusta e adjacências, local onde residiu e trabalhou, na extinta boate Beco. Localizada, a família diz estar tentando ajudá-la de acordo com o possível, inclusive tentou abrigo no Retiro dos Artistas (Rio), mas a artista negou mudar-se para a capital fluminense

*Por Vítor Antunes

“Pensando bem, a vida da gente até que é um negócio engraçado. A pessoa vai vivendo normalmente, de repente, puf, muda tudo. A gente começa a viver diferente”. Desta maneira, Gina Le Feu foi apresentada em uma matéria assinada por Liba Frydman com ensaio fotográfico de Manoel Motta para o extinto semanário “O Cruzeiro”, em 1968. Cinquenta e quatro anos depois, nenhuma frase poderia ser melhor adequada. A ‘vedete’ que trabalhou com Elvis Presley (1935-1977), Carlos Machado (1908-1922) e Grande Otelo (1915-1993), vive as dificuldades de uma pessoa em situação de rua. Transita por pontos como a Rua Costa, no bairro da Consolação, região Central de São Paulo, e por logradouros vizinhos, como as ruas Augusta e Bela Cintra. Residia em um apartamento nesta última rua citada, mas foi despejada. Após haver deixado este local, ela morou no bairro Jardim Nakamura, Zona Sul da capital paulistana, casa humilde da qual também fora despejada junto aos seus cachorros, por não haver conseguido pagar o aluguel. A atriz que, no passado, “faturava 100 mil cruzeiros por mês e frequentava a Praia de Copacabana, nos Postos 2 e 3, e detestava aglomerações quando ia à praia”, vive com dificuldades. Como disse Frydman, “de repente, puf, muda tudo”.

Gina Le Feu em ensaio para “O Cruzeiro”, de 1968. (Foto: Biblioteca Nacional/O Cruzeiro)

Gina Le Feu. Vedete participou de momentos importantes da história, do cinema e da televisão (Foto: Biblioteca Nacional/O Cruzeiro)

Sabendo-a em situação de rua, Ricardo Klesck, seu sobrinho, pensou em formas de ampara-la, mas encontrou dificuldades: “Fizemos um esforço para tê-la no Retiro dos Artistas, no Rio. Depois de muita conversa com a instituição, conseguimos com que ela fizesse uma entrevista de avaliação – onde é estudado o grau de autonomia do interno – e ela se recusou completamente, ameaçando inclusive de fugir caso fosse destinada até lá. Tentamos então um acolhimento residencial no Palacete dos Artistas, equipamento público equivalente ao Retiro carioca, mas havia ali um outro problema. Gina, que recebia um benefício do INSS, teve-o sequestrado por alguém de má fé e ela não tem nenhuma renda”, explicou. A contrário do Retiro dos Artistas carioca, onde a estadia é gratuita, no paulistano não. É necessário que o interno tenha uma renda mínima e através dela pague uma espécie de mensalidade. Ainda que seja um preço módico, é valor considerável àqueles que não têm nada. Fato que torna mais difícil conseguir abrigo para a atriz.

Segundo Ricardo, é difícil conseguir convencer sua tia a deixar São Paulo: “Gina se considera uma pessoa mais paulistana que carioca. Por volta dos 18 anos, ela ingressou no meio artístico e algum tempo depois foi para São Paulo”. Ele prossegue dizendo que “tivemos, eu e ela, pouco contato. Um quando eu tinha por volta dos 6, 7 anos de idade e, depois, quando eu já tinha cerca de 25 anos, e isso aqui no Rio”. Ricardo diz que este distanciamento se dá por “razões particulares e familiares”. Tendo ele 71 anos, trata-se do sobrinho mais velho, entre os outros que Gina possui.

Quanto à ausência de moradia, Klesck relatou-nos a parte que sabe da história: “Ela morava numa casa na Rua Bela Cintra, que, depois, deu a vez a um estacionamento e hoje terá um prédio de alto padrão em seu lugar. Por volta dos anos 2000, quando ainda havia ali uma casa, e por uma razão que desconheço, ela foi defenestrada do local, por iniciativa de uma família de posses. Não sei ao certo como se deu esse direito de ocupação. Depois, surgiu uma pessoa da Espanha que se apresentou como dona do imóvel e que permitiu que ela continuasse residindo. Depois disso, por razões que desconheço, ela foi novamente despejada”.

Tive um contato muito eventual com ela já que, por conta da situação de rua, era feito por pessoas que a amparavam e davam meu nome. Acabam me encontrando. Espero que esta reportagem possa sensibilizar alguém que tenha tido um contato estreito com ela e que possa ajudá-la a ficar em São Paulo, que é a cidade que ela deseja permanecer” – Ricardo Klesck, sobrinho de Gina Le Feu

Em agosto deste ano, a atriz esteve na Santa Casa de Misericórdia, onde foi atendida pela Ortopedia após acidentar-se na rua. Gina dizia querer permanecer no local, segundo afirma seu sobrinho. Disse-lhe ela que  “aqui é muito bonito, estou muito feliz, tem um jardim e um prédio bonito”. Inclusive, as assistentes sociais estavam procurando uma forma de encaixá-la em um abrigo. Contudo, Klesck soube através desta reportagem que a senhora havia voltado para as ruas: “Não teriam permitido que ela tivesse saído da Santa Casa sem autorização”. Ao certificar-se junto à Casa, Ricardo descobriu que a senhora deixou-a no domingo, dia 18. Tanto que esta matéria se deve ao fato de um morador da região haver amparado Gina Le Feu na última quinta-feira, 21, abrigada sob uma árvore na Rua Costa, no bairro da Consolação. Neste logradouro, a artista costuma ser amparada por um restaurante nordestino, o Digaê, que lhe cede algumas refeições.

Gina Le Feu na Rua Costa, em São Paulo. Um dos locais por onde circula. O fotógrafo optou por não ser identificado

Klesck diz acreditar que esta exposição possa chamar a atenção de outras pessoas que, assim como ele e a família, possam, também, ajudá-la a sair desta situação de vulnerabilidade social: “A Assistente Social me assegurou que ela, retornando à Santa Casa, será acolhida e internada. Nesse momento  é o lugar de mínimo conforto e dignidade. Eles ficariam com ela por um tempo indefinido até que alguma outra solução possa surgir”, frisa.

Esta não é a primeira vez que há uma tentativa de auxílio a Le Feu. No início dos anos 2000, segundo Ricardo, o jornalista José Luiz Datena exibiu em seu telejornal uma matéria sobre Gina, quando esta saíra do apartamento da Bela Cintra. Em 2020, o jornalista e pesquisador Mário Gordilho fez um vídeo reportagem visando ajudá-la em razão de a artista estar às raias de ser despejada, junto a seus cachorros, da casa humilde onde morava, no Jardim Nakamura, Zona Sul de São Paulo. Klesck diz que “naquele bairro ela foi amparada por membros da Igreja Católica [mas deixou o lugar].

No artigo “Me Chamam Rua, População, Uma Situação: Os Nomes Da Rua E As Políticas Da Cidade”, de Mateus Cunda e Rosane Silva, escrito para a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), os acadêmicos dizem que as pessoas em situação de rua (…) “são tão diversas em sua composição, que seria difícil criar perfis sobre modos de vida ou hábitos. Há uma série de nomeações que se formam em torno do habitante da rua, elencadas, não ao acaso, numa política estética que enuncia o “não-lugar” na cidade”, ou seja há várias origens e histórias possíveis para os habitantes da rua, que ocupam uma espécie de não-espaço. Não são vistos, não são plenamente contemplados em direitos por não terem comprovante de residência e suas histórias costumam ser invisibilizadas. Assim como o fato de terem hábitos diferentes, costuma dificultar sua localização.

Gina Le Feu: “Acho que o mundo é mesmo das mulheres que são felizes e dos homens que sabem dar felicidades às mulheres que amam. ” (Foto: Biblioteca Nacional/Revista Manchete)

“A ÚLTIMA GRANDE VEDETE”

Nascida Jorgina Ribeiro, a artista desde sempre foi Gina, segundo relatou em entrevista à Revista do Rádio. Já o pseudônimo “Le Feu” – o fogo, em francês – deu-se por sugestão de “um jornalista quando ingressei no teatro da madrugada”. Teatro da madrugada era o nome pelo qual eram conhecidas as apresentações de Teatro de Revista e/ou Rebolado. Importante ressaltar que naquela época, plenos anos 1950, a profissão de atriz ainda não era regulamentada, coisa que só viria a acontecer em 1978. Até aquele momento, as artistas eram registradas com carteirinhas que eram assemelhadas àquelas usadas pelas prostitutas, e a sociedade moralista da época via com maus olhares as meninas que resolviam trabalhar com arte. Razão pela qual muitas lançavam mão de pseudônimos. Maneira de não “envergonhar a família”.

Gina Le Feu na boate “Fred’s” apresentando Mr. Momo, espetáculo dirigido por Paulo Gracindo (Foto: Biblioteca Nacional/Revista Manchete)

Jorgina Ribeiro, nasceu em 1935, segundo disse-nos seu sobrinho, Ricardo Klesck. Foi criada no bairro de São Cristóvão, Zona Norte do Rio, “inteiramente dedicada ao desejo de um dia ser notada como artista”, como disse ela, na juventude. Matérias especiais da época diziam que a moça trabalhava como “auxiliar de escritório, batia à máquina e quebrava os galhos”. Até que apareceu-lhe o dramaturgo Silveira Sampaio (1914-1964) que convidou-a a trabalhar como girl, ou seja, a compor o corpo de baile das suas revistas, em “É fogo na Jaca”, de 1953, e foi eleita uma “Certinha do Lalau” em 1955. O concurso em questão, elaborado por Stanislaw Ponte Preta (1923-1968) visava premiar as mais belas mulheres da sociedade.

Quando menina achava que tinha o corpo mal feito. Pouco tempo depois [em 1955] estive na lista “das certinhas [do Lalau]” e das “Mais bem despidas. O tempo faz dessas coisas” – Gina Le Feu

Pouco tempo depois de sua estreia, cerca de três anos, já era vedete – personalidade feminina mais importante nos números musicais em uma Revista chamada “Quem comeu foi Pai Adão”, que contava com um jovem Daniel Filho e com a experiente Dinorah Marzullo (1919-2013), mãe de Marília Pêra (1943- 2015), em seu elenco. Gina aconteceu e badalou nas boates “Fred’s”, do Rio, e “Beco” de São Paulo. Não satisfeita, foi aos Estados Unidos e esteve em filmes como “Amor à Toda velocidade” (Viva Las Vegas), estrelado por Elvis Presley (1935-1977) e Ann-Margret. Com saudades do Brasil, depois “de a coisa engrossar por lá”, voltou e trabalhou com Grande Otelo (1915-1993). Como muitas das vedetas de sua época, negava-se a revelar sua idade. Mas diante de um currículo robusto deste, disse: “Parece que os meus sonhos se realizaram”.

Gina Le Feu no corpo de baile do filme “Viva Las Vegas”, protagonizado por Elvis Presley (Foto: Reprodução)

Em reportagem da extinta Manchete, de 1961, dizia-se que “a atriz faturava 100 mil cruzeiros por mês”, época em que o salário mínimo, segundo a OAB-SP, era de Cr$ 13.440,00. Além de ser bem paga, Le Feu dizia gostar de frequentar a Praia de Copacabana. Entre seus crushes, homens mais maduros: “Rapazes novos me cansam (…) Queria um noivo simpático como o presidente Juscelino Kubitscheck (1902-1976), elegante como Alencastro Guimarães (1899-1964), valente como Leonel Brizola (1922-2004) e entendido em modas como Oleg Cassini (1913-2006)”. A Revista do Rádio de 1961 chegou a colocá-la, inclusive, como uma das “namoradas” de Cauby Peixoto (1931-2016). Porém, em conversa com familiares, ela confidenciou-lhes haver namorado os atores Paulo Gracindo (1911-1995), seu filho Gracindo Junior e o apresentador Sílvio Santos.

Em entrevista à Manchete, Le Feu colocou o senador Alencastro Guimarães como uma pessoa com quem gostaria de casar. Gostava de homens maduros (Foto: Arquivo Nacional)

Le Feu esteve em momentos importantes do teatro brasileiro, como no musical Skindô, que promoveu uma grande revolução no Teatro de Revista ao estrear no Golden Room do Copacabana Palace, em 1961. Grandes nomes compunham o elenco como Haroldo Costa e Sylvinha Telles (1934-1966). Pela primeira vez, temas brasileiros e canções bem brasileiras, como o samba, estavam presentes na trilha musical de uma revista. E Gina era uma das principais vedetes.

 No íntimo, nem eu mesma me considero uma vedete para depois considerarem-me estrela. Quero subir, tal como fiz agora, sem força de pistolão. Não sou mascarada. Sou tímida” – Gina Le Feu

Era tão bonita que, em 1971, Carlos Machado, pai da atriz Djenane Machado (1951-2022), dizia que, além da sua filha, Gina era uma das mulheres mais fotogênicas que conhecera. Naquele início dos anos 1970, Gina já encontrava a carreira em descendência. As revistas teatrais não estavam mais em voga e o próprio Carlos Machado, que enriquecera nos anos 1950 e 1960, estava um momento pouco auspicioso financeiramente. Em matéria também da Revista O Cruzeiro, na qual abordava-se a noite de São Paulo daqueles idos, dizia-se que Le Feu era “A última grande vedete”. No “Beco” fizera, em 1970, uma montagem onde homenageava Carmen Miranda, e outra chamada “Gafieira num País Tropical“, nestas apresentava-se junto à cantora Rosemary. A casa ainda teria bons momentos, pois, no local, apresentaram-se artistas como Fafá de Belém e Maria Alcina.

Gina Le Feu apresentando-se n’O Beco, em 1971 (Foto: Biblioteca Nacional/O Cruzeiro)

Coincidentemente triste, a vedete cujo sobrenome era “o fogo”, viu incendiar a boate “Beco”. Desta vez, literalmente. A casa ardeu em chamas no fim daquela década e fechou. A artista tentou voltar ao teatro e à TV, com pouco sucesso. Em 1975 fez “Roda Viva Show“, com Elza Soares (1937-2022). Em 1979, segundo o pesquisador e jornalista Mário Gordilho, registrou-se seu último trabalho nos palcos, o show “As Damas do Baralho”. Um dos locais onde foi montado foi na boate The Fox, de Brasília. Depois desta ocasião, informações sobre ela se escasseiam. Localizamos apenas que ela participou de um baile de fantasias de luxo, também em Brasília, em 1983.

João do Rio (1881-1921), cronista fluminense, dizia que as “ruas tem alma”. Numa das entrevistas que dera à Revista do Rádio, em 1961, Le Feu dizia: “Gosto do meu apartamento muito bem limpo. É aquela história do ‘seja bem-vindo’ mas limpe bem os pés”. A alma de Gina reside ali, na Bela Cintra. Onde já teve uma casa. Onde trabalhou, na boate que, tal como seu nome, incendiou. Estar presente ali é buscar no filigrana da memória algum lugar de pertencimento. Como dito no início desta reportagem, “as coisas vão acontecendo, a gente vai vivendo, e quando vê, puf, está tudo mudado”. A quem escolheu o fogo como nome, é preciso observar que há sempre uma chama que não vai passar e que se sobrepõe. Quando tudo se esvai, urge a necessidade e a permanência de uma chama: a da dignidade.

Gina Le Feu (Foto: Biblioteca Nacional/O Cruzeiro)