‘Fomos dos bicheiros para chefe do morro e milícia. Continuamos acreditando que haverá mudança’, diz Marcos Palmeira


O ator protagoniza três longas no Festival do Rio e fala sobre “Boca de ouro”, obra de Nelson Rodrigues nos dias de hoje: “Um personagem de 1959 superatual: fomos dos bicheiros, para o chefe do morro, a milícia. E nós continuamos acreditando que as coisas vão mudar. Isso se mistura com o empresariado”

*Por Brunna Condini

Marcos Palmeira está no Festival do Rio, que acontece até o dia 19 deste mês, em três tempos. No longa “A Divisão”, que estreou ontem no Cine Odeon, e retrata os bastidores do trabalho de um grupo de policiais da Divisão Antissequestro (DAAS), o ator vive o delegado Benício. Em “A Intervenção”, sobre a falência das Unidades de Polícia Pacificadora – as famosas UPPs cariocas, ele vive o major Douglas. E por fim, em “Boca de Ouro”, dirigido por Daniel Filho, que será exibido na mostra Hors-Concours da Première Brasil, ele faz o próprio Boca.

“O público vai me ver muito diferente. Os três personagens são bem distintos. Estou tendo a oportunidade, de uma vez só, de experimentar personagens tão diferentes e o público assistir isso”, diz. E salienta sobre os dois filmes com temáticas ligadas à realidade carioca e ao contexto da segurança pública no Rio de Janeiro: “O espectador pode esperar uma expressão da sociedade, dentro do que estamos vivendo. São dois filmes honestos, sobre esse universo”.

O ator com o delegado Benício em “A divisão”, que estreia hoje no Festival Do Rio (Crédito: Divulgação)

Ele revela que como conseguiu ter uma preparação maior durante as filmagens dos longas em que faz dois policias em posições diferentes, mas na mesma realidade. “Foi meio empírica, já que foi entre produções. Tudo foi fechado entre um trabalho e outro, tudo intercalado. Então, mergulhei nos sets, naquele universo, no maior tempo possível ali, com os atores e os diretores”, conta. “Também filmamos dentro de comunidades pacificadas, tinham sempre policiais por perto, o que ajudou na troca”.

Palmeira ao lado de Bianca Comparato e do elenco de”A intervenção” (Crédito: divulgação)

O ator exalta a importância do Festival do Rio, que por pouco, como perdeu seus principais patrocinadores, não se realizou, e só aconteceu, por engajamento de parceiros e do público. “Tem que ser valorizada uma mostra que está acontecendo acima de qualquer coisa. A sociedade assumiu o festival e sua realização. Isso é muito importante neste momento”, reflete. E completa: “Não sei nem como agradecer ao cosmos por me colocar, neste momento, neste festival, com três filmes. Num momento tão oportuno, já que estão querendo destruir a cultura e a gente está podendo mostrar o contrário, que a cultura resiste de forma digna, brilhante. E poder estar inserido é muito importante para mim. É como se estivesse dizendo: a opção foi certa lá atrás, esse é o trabalho que gosto de fazer: ser ator”.

No filme de Daniel Filho, “Boca de Ouro”, como o próprio Boca (Crédito: Ique Esteves)

Aos 56 anos, ele contabiliza mais de 30 produções no cinema e se diz um apaixonado pela Sétima Arte. “Olha, tenho que fazer essa conta, mas foi por aí. Tiveram décadas mais gordas, décadas menos gordas. E todas as produções me ajudaram a estar aqui hoje”.

Em vias de estrear “Boca De Ouro”, em que contracena com nomes como Malu Mader, Lorena Comparato e Fernanda Vasconcellos, Palmeira analisa porque Nelson Rodrigues continua despertando interesse: “Ele continua atual porque as nossas relações são as mesmas. O Boca de Ouro está no inconsciente popular, todo mundo acha que conheceu. Nelson foi na veia e é um personagem de 1959 superatual: fomos dos bicheiros, para o chefe do morro, a milícia. E nós continuamos acreditando que as coisas vão mudar. Isso se mistura com o empresariado. O filme mostra o quanto é atual”.

Ao lado de Malu Mader em “Boca de Ouro”, que estreia amanhã no Festival do Rio (Crédito: Ique Esteves)

Aproveitando a “deixa”, perguntamos a Marcos sobre a atual situação política do país e o quanto se envolve com o tema. “De alguma forma, me engajo em todas as eleições, estou sempre participando de alguma maneira. Vou seguir desta forma, apoiando quem acredito e lutando dentro de uma ética que acredito”, afirma.

Como o bicheiro de Madureira, “Boca de Ouro”, em cena com Lorena Comparato e Thiago Rodrigues (Crédito: Ique Esteves)

E quem seriam o s “inimigos da cultura” hoje? “Não sei se a cultura tem hoje um inimigo ou uma pessoa totalmente ignorante, que internamente deve achar que em algum lugar ele atinge, com suas ações, essa cultura que ele enxerga. Temos teoricamente um estado laico, entretanto um governo com um olhar totalmente evangélico. Mas acredito que a cultura resiste, acho importante também a gente repensar as relações entre todas as formas de expressão cultural do país. Nossa cultura é o Brasil, quem nós somos e isso tem força. A cultura não tem como ser parada, é água morro abaixo, vai atropelar”.

Recém-saído da TV e agora divulgando o Festival do Rio, Marcos Palmeira não deixa de lado o engajamento ambiental e revela seu maior desejo para 2020: “É que a “Vale das Palmeiras” esteja cada vez mais produtiva, com produtos de qualidade, para poder oferecer aos consumidores um alimento 100% saudável, poder formar essas redes com produtores, com conceito do orgânico, com a construção deste Brasil assim e que tudo isso reverbere na preservação ambiental e na preservação do índios, para entendermos a força que a natureza tem sobre a gente”

O ator fala sobre Nelson Rodrigues: “Ele continua atual porque as nossas relações são as mesmas” (Crédito: Ique Esteves)