Flavia Tygel: compositora de trilhas sonoras fala sobre o machismo no cinema e a questão alarmante para as mulheres


Pianista e compositora da trilha de série e filmes, como a da Globoplay sobre a pandemia ‘Por Um Respiro’ ou ‘Rotas do Ódio’, em exibição no Universal Channel ou ainda, ‘Os Ausentes’, nova série da HBO Max, que começou a carreira dando aulas para Marco Nanini em longa, se destaca no ambiente musical predominantemente masculino e cria o tom de suspense policial em produções recentes. Sem frisar o machismo estrutural, mas com total consciência dele, Flavia destaca a importância de se divulgar a ocupação dos espaços: “A figura da mulher como protagonista criadora neste mundo ainda é carente. Há compositoras, mas estão sempre à sombra dos profissionais homens que dominam – e sempre dominaram a cena. As mulheres que aparecem são as que estão na ponta, como intérpretes, mas as compositoras, técnicas, aquelas que estão no estúdio fazendo acontecer, criando, só agora estão ganhando força e conquistando mais espaço. Acredito que é sobre trazer cada vez mais estas profissionais para a ação e não cair no lugar mais confortável de escalar aqueles que sempre fazem e já estão figurados no mercado”

Flavia Tygel: compositora de trilhas sonoras fala sobre o machismo no cinema e a questão alarmante para as mulheres

*Por Brunna Condini

Imagine o seu filme preferido. Agora imagine esse mesmo filme sem sua trilha sonora. Difícil, não é mesmo? A música, além de causar emoções, também cria memórias afetivas no espectador. Isso somado à potência e sensibilidade feminina, tanto para criar, quanto para ocupar espaços que eram territórios dominados por homens anteriormente, pode fazer a diferença em resultado e representatividade no mundo. Viva o som que vem delas para embalar nossas histórias!

Você conhece Flavia Tygel? Se não conhece a profissional, certamente conhece as trilhas para cinema e séries que ela compôs. Flavia é uma das responsáveis por embalar as narrativas de algumas produções que você provavelmente já assistiu ou estão na sua ‘lista’, como a série da Globoplay sobre a pandemia ‘Por Um Respiro‘ ou ‘Rotas do Ódio‘, em exibição no Universal Channel ou ainda, ‘Os Ausentes‘, nova série da HBO Max. A história dos detetives Maria Julia (Maria Flor) e Raul (Erom Cordeiro), em Os Ausentes’, que saem em busca de pessoas desaparecidas teria outro ritmo se não fosse a impactante trilha composta por ela.

“É uma produção que tem cuidado musical, misturando todas as nuances do thriller policial, músicas para as perseguições e cenas de ação e toda a delicadeza com os temas da dor das famílias que procuram por seus desaparecidos. Tem essa diversidade de climas que potencializam muito a narrativa”, explica Flavia, que se destaca cada vez mais nesse ambiente musical ainda altamente dominado pelos homens. “A figura da mulher como protagonista criadora neste mundo ainda é carente. Há compositoras, mas estão sempre à sombra dos profissionais homens que dominam – e sempre dominaram a cena. As mulheres que aparecem são as que estão na ponta, como intérpretes, mas as compositoras, técnicas, aquelas que estão no estúdio fazendo acontecer, criando, só agora estão ganhando força e conquistando mais espaço. Acredito que é sobre trazer cada vez mais estas profissionais para a ação e não cair no lugar mais confortável de escalar aqueles que sempre fazem e já estão figurados no mercado. É um esforço produtivo e criativo de olhar além, de buscar alternativas mesmo, de se permitir. É sobre seguir em frente e acreditar que estamos amplificando nossas vozes, sobretudo por merecimento, conquistando os lugares”.

"O mundo musical relacionado à figura da mulher como protagonista criadora é carente. Há compositoras, mas estão sempre à sombra dos profissionais homens que dominam – e sempre dominaram a cena" (Foto: Leo Aversa)

“O mundo musical relacionado à figura da mulher como protagonista criadora é carente. Há compositoras, mas estão sempre à sombra dos profissionais homens que dominam – e sempre dominaram a cena” (Foto: Leo Aversa)

Historicamente, o audiovisual nasceu e se desenvolveu voltando-se para narrativas masculinas. Também sempre foi produzido por homens, reservando para as mulheres um lugar secundário, que vem sendo questionado e transformado ao longo do tempo. A luta das mulheres no cinema persiste firme e forte por resistência e destaque. E embora a representação feminina tenha ganhado espaço nos últimos anos, o quadro da mulher na indústria cinematográfica ainda é alarmante. Mas quando analisa esse cenário, Flavia prefere jogar luz nas conquistas. “Ainda é uma montanha a ser escalada, mas eu diria que estamos subindo. Junto às redes de apoio e coletivos femininos há cada vez mais projetos e portas se abrindo para estas profissionais”, salienta Flavia. “Em uma série que estou compondo a trilha original agora , por exemplo, formei uma equipe só de mulheres, da engenheira de som à preparadora vocal, assistente, arranjadora, musicistas. Estamos gravando inclusive um samba enredo e fizemos questão de chamar apenas ritmistas mulheres. Foi incrível, um estúdio repleto de pessoas super competentes”.

Maria Flor e Erom Cordeiro em 'Os Ausentes', série da HBO Max com trilha de Flavia Tygel (Divulgação)

Maria Flor e Erom Cordeiro em ‘Os Ausentes’, série da HBO Max com trilha de Flavia Tygel (Divulgação)

A produção da HBO Max não foi a primeira incursão de Flavia no mundo das perseguições, tiroteios e violência. Ela também assina a trilha de ‘Rotas do Ódio’, exibida no Canal Universal, série dirigida por Susanna Lira, que fala sobre a apuração de crimes de intolerância na cidade de São Paulo. A trama é protagonizada pela atriz Mayana Neiva. “Tive o desafio de compor para estas duas séries policiais, ambos os projetos fortíssimos, porque trazem para o debate questões sociais importantes. A série ‘Rotas do Ódio’, sobre a investigação de crimes de intolerância e ‘Os Ausentes’, série que aborda a questão de pessoas desaparecidas. Ou seja, temas recorrentes e graves da nossa sociedade e para os quais eu fiz questão de compor e produzir uma música que respeitasse todas estas nuances , seja pelo acolhimento, seja pela denúncia, mais uma vez , a arte como propósito de dar voz a todas estas esferas sociais que precisam ganhar foco. Além disso,  ambas têm como protagonistas mulheres – uma delegada e outra investigadora, que ganham a cena também da dramaturgia de ação”, analisa ela, que além das séries, vai dar expediente no documentário ‘Mãe de Todas as Lutas’, sobre mulheres que estão no front da luta pela terra no Brasil.

Começando em grande estilo com Marco Nanini

Com uma carreira que começou cedo, aos 12 anos, compondo canções e se apresentando na cena musical carioca, Flavia se especializou na composição de trilhas sonoras para cinema, teatro e TV. E já começou trabalhando em grandes filmes. “Um dos meus primeiros trabalhos em cinema foi no filme ‘Apôlonio Brasil’, longa metragem solar do Hugo Carvana. Ali, menina ainda, tinha que ensinar o Marco Nanini a ser um pianista no filme. Foram meses de imersão, a gente destrinchando o piano, eu presente no set , gravando os arranjos, foi uma vivência arrebatadora de início de carreira. Daí, não larguei mais a trilha sonora”, recorda. “A música sempre foi algo presente em mim de forma criativa. Quando cursei jornalismo tomei contato com essa mistura de linguagens, a televisão, o cinema e me encantei com a trilha sonora. Contar histórias através da música , a noção de equipe , de conversa entre diferentes linguagens, é um universo que me envolveu completamente”.

"Acho que a mulher tem uma escuta muito receptiva. Isso vale tanto para o processo intuitivo e criativo quanto para a produção musical" (Foto: Leo Aversa)

“Acho que a mulher tem uma escuta muito receptiva. Isso vale tanto para o processo intuitivo e criativo quanto para a produção musical” (Foto: Leo Aversa)

Tem diferença ou alguma especificidade do ouvido e da criação feminina para uma trilha? “Acho que a mulher tem uma escuta muito receptiva. Isso vale tanto para o processo intuitivo e criativo quanto para a produção musical. Por exemplo, para uma trilha sonora original que compus durante a pandemia , para uma série da Globoplay, eu precisava criar uma música incidental para um reality a ser passado dentro do hospital, acompanhando os pacientes de covid – casos gravíssimos, um projeto difícil de executar. E o que eu poderia ter resolvido de forma prática com trilhas mais tristes ou graves, uma biblioteca padrão para trilhas de hospitais e afins … não me soou algo que fizesse sentido pra mim… eu queria compor uma trilha que tivesse : propósito. E daí foi uma viagem intensa e profunda, descobrindo as frequências curativas, escalas pregressas e ancestrais que de fato curam quando você as escuta. Desta forma, compus toda a trilha me utilizando destas notas, destas sonoridades e quem escutar este trabalho e assistir, de fato estará sendo ativado por esta música. Eu acho que isso fala muito de uma alma feminina, de se permitir beber nesta fonte sensível”.

Desde que fez a trilha sonora de ‘Torre das Donzelas’ sobre as prisioneiras políticas na época da ditadura militar brasileira, Flavia afirma que só participa de trabalhos que tenham uma pauta na qual acredite e que sirvam de alguma forma para trazer mais clareza e consciência para as pessoas. Neste contexto, se fosse criar uma trilha para o Brasil de hoje, o que não poderia faltar nela? “Acho que certamente me utilizaria novamente das frequências curativas das quais lhe contei. Porque é sobre curar uma sociedade fragmentada, deixar cicatrizar tanto ódio e agressividade, que foi o que nos trouxe a este estágio limítrofe de tantos absurdos. Não reforçaria a narrativa pelo perverso, ou seja, não faria uma trilha de terror como seria o esperado. Prefiro seguir com a esperança teimosa de que logo ali adiante, a gente vai poder assistir a novos créditos iniciais, com cada vez mais arte e mais música voltando à cena brasileira”.

"Prefiro seguir com a esperança teimosa de que logo ali adiante, a gente vai poder assistir a novos créditos iniciais, com cada vez mais arte e mais música voltando à cena brasileira" (Foto: Leo Aversa)

“Prefiro seguir com a esperança teimosa de que logo ali adiante, a gente vai poder assistir a novos créditos iniciais, com cada vez mais arte e mais música voltando à cena brasileira” (Foto: Leo Aversa)