Festival de Veneza começa hoje: Abel Ferrara e Alejandro Iñarritu polemizam, enquanto a diva dos Irmãos Coen é homenageada!


Segundo maior festival mundial do cinema, Veneza apresenta na sua 71ª edição, prestando tributos a Frances McDormand e James Franco. HT cobre o evento in loco e Flávio Di Cola conta tudo de lá!

* Por Flávio Di Cola, direto de Veneza

A cada ano, a responsabilidade de encerrar o verão europeu através da retomada dos eventos cinematográficos, em todas as suas vertentes e possibilidades, é entregue à tradicional La Biennale del Cinema de Venezia que vai ocupar – de 27 de agosto a 6 de setembro – a ilha-distrito do Lido de Veneza, que abriga o mitológico Hôtel des Bains, cenário do filme “Morte em Veneza” onde o próprio Thomas Mann escreveu a novela original que inspirou a obra-prima de Luchino Visconti.

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Mas as luminárias Art Nouveau com motivos florais, as portas forradas com vidro bizotê, as escadarias em forma de ondas e as estátuas de ninfas esvoaçantes dos grandes hotéis da ilhota que foi o destino da fina flor da sociedade internacional durante a Belle Époque, vão tremer diante da seleção competitiva da mostra cinematográfica deste ano: para começar, a abertura dos trabalhos do júri do festival foi reservada para o último trabalho do desencantado diretor mexicano Alejandro González Iñárritu Birdman or (The Unespected Virtue of Ignorance), com elenco estelar composto por Michael Keaton, Zach Galifianakis, Edward Norton, Amy Ryan, Emma Stone e Naomi Watts.

O filme chama a atenção por ser a primeira comédia de um autor que construiu a sua filmografia com títulos tão fortes e viscerais como Amores brutos (Amores perros, 2000), “Babel” (Idem, 2006), e “Biutiful” (Idem, 2010), e aclamado pelo público e pela crítica exatamente pelas virulências destas obras. Mas os fãs do cinema provocador de Iñárritu não precisam se preocupar. Embora Birdman – ambientado no supercompetitivo meio teatral da Broadway – possa provocar alguns risos, o objetivo do diretor é demonstrar como a existência humana não passa mesmo de uma “ridícula comédia de erros” e que o culto ao ego conduz necessariamente à miséria e à solidão. Depois de Veneza, Iñárritu voa para o Canadá para iniciar as filmagens do seu novo filme “The Revenant” com Leonardo DiCaprio.

Teaser oficial de “Birdman”

Já “Pasolini” de Abel Ferrara, também presente na mostra competitiva, promete revolver antigas e dolorosas feridas da vida política e pública da Itália doS anos 1970 através da reconstrução do último dia da vida de Pier Paolo Pasolini (1932-1975), brilhante poeta, escritor, jornalista, filósofo, ator, pintor, político e diretor de filmes – como os escandalosos “Teorema” (1968) e “Saló” (1975). Pasolini é vivido na tela pelo ator norte-americano Willem Dafoe o que já constitui uma boa promessa de fidelidade à aparência física e ao pathos do controvertido artista e polemista. No dia 2 de novembro de 1975, o corpo de Pasolini foi encontrado completamente desfigurado, depois de ter sido atropelado várias vezes pelo seu próprio automóvel numa praia de Óstia, balneário popular próximo de Roma. Giuseppe Pelosi, um michê de 17 anos, foi preso e acabou confessando o crime, o que parecia coerente com o estilo da vida sexual de Pasolini. Quase trinta anos depois, Giuseppe veio a público desmentir as acusações de que fora objeto, denunciando a polícia italiana de tê-lo ameaçado com represálias violentas à sua família caso ele não assumisse o crime. Essa trama estaria ligada a tenebrosas conspirações dos poderes da direita e da esquerda da Itália para calar Pasolini e sufocar suas denúncias sobre os rumos da vida político-social do seu país.

Willem Dafoe como Pasolini

Willem Dafoe como Pasolini (Foto: Divulgação)

Outros dois destaques entre os competidores da Mostra originários da França, Itália, Estados Unidos, Irã e Turquia, são o drama estrelado por Al Pacino e Holly Hunter Manglehorn, dirigido por David Gordon Green, sobre a possibilidade do amor no fim da vida como antídoto à rotina e à desesperança que nos esperam antes da morte, além de mais um exemplar do festejado cinema iraniano: Ghessena (“Histórias”, numa tradução livre do idioma persa), filme-painel da diretora Rakihshan Banietemad sobre a vida iraniana e seus vários estratos humanos, de onde sai uma miríade de personagens formada por trabalhadores, intelectuais, funcionários públicos, donas de casa que têm em comum o ímpeto de superação das dificuldades cada vez maiores de uma sociedade em crise aguda.

Teaser oficial de “Manglehorn”

No campo das homenagens e tributos, os Estados Unidos já são os vencedores em Veneza: James Franco, um contumaz participante da Mostra não só através de filmes como também de videoinstalações, receberá o prêmio “Glory to the Filmmaker 2014” destinado às personalidades que tenham trazido uma “contribuição original para a inovação do cinema contemporâneo”. Esse galardão já foi entregue em anos anteriores a figuras de peso como Takeshi Kitano (2007), Abbas Kiarostami e Agnès Varda (2008), Sylvester Stallone (2009), Al Pacino (2011), Spike Lee (2012) e Ettore Scola (2013). Diante desse time, deve ser mesmo uma honra para o multimídia Franco ser consagrado tão jovem e com toda uma carreira ainda pela frente, tendo o seu último filme The sound and the fury sido programado para uma seção de gala na categoria hors concours. Já o “Visionary Talent Award 2014” vai para a atriz – também norte-americana – Frances McDormand que viveu a impagável chefe de polícia Marge Gunderson no filme Fargo (Idem, 1996), dirigido pelos geniais irmãos Coen, com um dos quais – Joel – ela se casou em 1984. Para o grande público, Frances é mais conhecida pelo seu trabalho cinematográfico que lhe valeu várias nominações para os prêmios Oscar, Globo de Ouro ou BAFTA. Mas ela também desenvolve uma tão produtiva como consagrada carreira no teatro.

Para os cinéfilos de carteirinha, a Mostra de Clássicos de Veneza, exibe as cópias restauradas e tinindo de novas de dez obras-primas da Sétima Arte, incluindo o mais assustador filme de terror gótico de todos os tempos, “Os inocentes” (The innocents, 1961) dirigida por Jack Clayton, com Deborah Kerr no papel que lhe permitiu fazer um dos mais intrigantes estudos sobre a repressão sexual vitoriana como a governanta que enfrenta fantasmas enquanto mistura o erotismo com o medo. Entre os títulos cujos restauros terão sua première em Veneza destacam-se os italianos “Umberto D.” (Idem, 1952) de Vittorio De Sica – jóia do neorrealismo que aborda o drama dos idosos numa sociedade que não tem mais lugar para eles -, e A audiência (L’audienza, 1971), crítica feroz à burocracia papal do iconoclasta diretor Marco Ferreri que provocou escândalos, além de “O Máscara de Ferro” (The Iron Mask, 1929) um dos mais populares clássicos de um dos fundadores de Hollywood e hoje esquecido diretor Alan Dwan, estrelado pela diva do cinema mudo Marguerite De La Motte.

O Festival Internacional do Filme de Veneza ainda se desdobra em inúmeras outras mostras e eventos paralelos à galeria competitiva principal, como a Orizzonti dedicada às produções com corte mais experimental sob o ponto de vista estético e que apontam tendências do futuro cinematográfico. Alguns dos filmes selecionados na Orizzonti ganham divulgação mundial através de seções on line screenings. O filme de abertura dessa mostra enfatiza o bom momento do cinema iraniano: “The president” do festejado diretor Mohsen Makhmalbaf. Já nesta terceira edição do Venice Film Market os organizadores de La Biennale – seguindo o modelo mercadológico de Cannes – esperam reunir centenas de distribuidores, produtores e agentes internacionais para dinamizar os negócios da indústria audiovisual, principalmente os da própria Itália, cuja cinematografia patina, em meio a um ou outro surto de sucesso como o de “A grande beleza” (La grande bellezza , 2013) de Paolo Sorrentino, Oscar de ‘Melhor Filme Estrangeiro’ do ano passado. Mas bela mesmo é a eterna Veneza, outrora capital dos doges e, hoje – durante os próximos 10 dias, da arte e do mundanismo cinematográficos.

* Flávio Di Cola é publicitário, jornalista e professor, mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ e coordenador do Curso de Cinema da Universidade Estácio de Sá. Apaixonado pela sétima arte em geral, não chega a se encantar com blockbusters, mas é inveterado fã de Liz Taylor – talvez o maior do Cone Sul –, capaz de ter em sua cabeceira um porta-retratos com fotografia autografada pela própria