*Por Flávio Di Cola, diretamente de Cannes
No mundo dos contos de fada, o politicamente correto não existe. O exercício dos privilégios da nobreza não encontra obstáculos e os seus desejos mais tresloucados devem ser atendidos sem pestanejar, pois essas narrativas que embalaram a nossa infância estão enraizadas numa parte tão secreta da vida psíquica que só podem ser traduzidas em fantasias tão poéticas quanto assustadoras e violentas.
Essa matéria-prima sempre foi a força motriz do cinema desde George Méliès, o primeiro artista que misturou magia com cinema, razão suficiente para que Martin Scorsese lhe prestasse uma bela homenagem em “A invenção de Hugo Cabret” (Hugo, 2012). Além disso, a própria logomarca musical escolhida pelo Festival de Cannes neste ano parece corroborar com a idéia do cinema como porta de entrada para o mistério e o inesperado, pois alguém teve a feliz idéia de aproveitar um dos mais belos e estranhos trechos de “O carnaval dos animais” de Camille Saint-Saëns para excitar a imaginação no escurinho das salas logo no início de cada seção do evento.
Talvez tudo isso explique como o público presente nesta edição do Festival de Cannes se rendeu de forma tão fulminante ao poder do fantástico e do delirante da grande tela. No mesmo dia em que as aventuras de Charlize Theron no tenebroso cenário pós-tudo de “Mad Max – Estrada da fúria” deixou a platéia de joelhos, o diretor napolitano Matteo Garrone – que já arrebatou em Cannes dois Grandes Prêmios do Júri, por “Gomorra” (2008) e “Reality” (2012) – também deu uma bela cartada com a sua adaptação para o cinema de três contos de Giambattista Basile, entre outros 50 que ele escreveu ou recolheu do folclore do sul da Itália no início do século 17 e que inspiraram profundamente Charles Perrault (1628-1703) e os irmãos Grimm, no século 19.
Os contos escolhidos por Garrone, ambientados em três reinos diferentes, são narrados simultaneamente, mas de forma fluida e muito bem organizada. Ainda sim são difíceis de serem resumidos, pois as peripécias e reviravoltas são muitas e seus desdobramentos cada vez mais fabulosos. Mesmo assim, seguem algumas linhas gerais do enredo e que ilustram a imaginação fértil de Basile: nos domínios de Selvascura, o rei (John C. Reilly) e a rainha (a maravilhosa Salma Hayek) estão tristes por que não conseguem gerar um herdeiro, até que resolvem apelar para a magia negra e com consequências funestas, como a morte do rei depois de ter caçado um dragão no fundo do mar e o nascimento súbito de dois gêmeos albinos inseparáveis; nas possessões de Roccaforte, um rei devasso (Vincent Cassel) apaixona-se inadvertidamente pela voz de uma mulher que julga ser linda, mas que é – na verdade – uma anciã decrépita e esperta que pretende se aproveitar da situação modificando o seu corpo por todos os meios; já no longínquo Altomonte, o amoroso rei (Toby Jones) faz de tudo para protelar o casamento da sua linda e loura herdeira (Bebe Cave) enquanto alimenta secretamente nos seus aposentos uma simpática pulga a ponto desta chegar ao tamanho de um imenso porco, e é forçado a dar a mão da sua desesperada filha a um ogro (Guillaume Delaunay) como prêmio de um concurso de adivinhação.
Muitos jornalistas em Cannes têm perguntado a Matteo Garrone o porquê dessa aparente guinada para a fantasia no contexto de uma filmografia marcada por obras de um realismo cortante. A resposta é simples: por trás da exuberância do fantástico, os contos falam de temas que caracterizam o mundo de hoje, como a obsessão pela beleza e pelas cirurgias plásticas, a inseminação artificial ou a centralidade do corpo na vida das pessoas. O resultado obtido por “Il racconto dei racconti” é quase inédito no contexto da cinematografia italiana e européia, embora sejam bem visíveis influências de diretores seminais como Mario Bava, Pier Paolo Pasolini (principalmente os que formam a sua “trilologia da vida”), Federico Fellini, ou mesmo Jules Verne, e – principalmente – de mestres da pintura barroca, uma vez que Garrone também já foi pintor.
Trailer oficial de “Il racconto del racconti (Divulgação)
Mas a grande atração do filme são mesmo os fabulosos cenários e figurinos, que certamente farão um arrastão de prêmios mundo afora. Os primeiros a cargo de Dimitri Capuano, que soube casar com equilíbrio e bom gosto os cenários naturais e arquitetônicos encontrados nas regiões da Toscana, Apúlia, Sicília e Lácio com efeitos computadorizados (CGI) de última geração, sem transformar a obra num catálogo de acrobacias técnicas. Essa intervenção tecnológica provocou uma importante mudança no estilo cinematográfico de Garrone: “Às vezes, trabalhar com fundo azul mate para permitir a aplicação posterior dos efeitos especiais é frustrante, pois tive de renunciar ao uso da câmera na mão de que gosto muito”, confessou.
Já as indumentárias do jovem florentino Massimo Cartini Parrini merecem um destaque especial, pois revelam a emergência de mais um talento formado nos ateliês da Tirelli, tradicional laboratório de criação e de conservação de figurinos sediado em Roma que vem contribuindo há 50 anos para o cinema mundial através de nomes oscarizados como Piero Tosi, Milena Canonero, Gabriella Pescucci e Maurizio Millenotti. Para obter esse impacto, Parrini admitiu que precisou libertar-se do rigor estilístico da época de Giambattista Basile (a passagem do maneirismo para o barroco) e dar asas à imaginação mais extravagante e que só o cinema pode materializar.
Confira abaixo alguns detalhes e croquis do deslumbrante figurino criado por Massimo Cartini Parrini para “Il racconto dei racconti” (Fotos: Divulgação)
Este retorno retumbante das fábulas clássicas em versões live action, como atestam os êxitos seguidos de “Malévola” (Maleficent, 2014, de Robert Stromberg) e de “Cinderela” (Cinderella, 2015, de Kenneth Branagh) – ambos produzidos pela Disney – provam, uma vez mais, a genialidade do fundador do estúdio, Walt Disney (1901-1966). Embora estivesse vivendo o auge do seu reconhecimento artístico, Disney percebeu já no início dos anos 1940 que ele logo perderia a hegemonia no campo da animação, pois tinha a certeza de que o futuro do seu estúdio iria repousar nas narrativas live action (filmadas com atores e cenários reais) e não nas desenhadas.
Confira abaixo o documentário “Magic in the Making”, sobre a produção da recente versão live action de “Cinderela” (Reprodução)
Em 1947, a bem-sucedida estréia nos Estados Unidos da obra-prima do escritor e diretor Jean Cocteau “A bela e a fera” (La belle et la bête, 1946) – atualmente listada entre os 100 mais importantes filmes da história do cinema – confirmou as suspeitas do genial artista americano. Hoje, os estúdios Disney já estão planejando toda uma linha de versões live dos seus antigos sucessos em desenho, como “Pinóquio” (Pinocchio, 1940), “Dumbo” (Idem, 1941), “A bela e a fera” (Beauty and the beast, 1991), “Mulan” (Idem, 1998), e “O ursinho Pooh” (Winnie the Pooh, 2011).
Confira abaixo trecho da versão de “A bela e a fera” (1946), de Jean Cocteau, que tanto inspirou Walt Disney (Reprodução)
Todavia, se não militassem no cinema alguns artistas europeus de altíssimo nível como a dupla Capuano-Parrini, do filme de Matteo Garrone, ou a dobradinha ítalo-inglesa Dante Ferretti (cenógrafo)-Sandy Powell (figurinista) – no caso de “Cinderela” –, o cinema mainstream não poderia sacramentar essa união entre o apuro artístico e a tecnologia. São criadores como esses que continuarão garantindo às futuras produções “reais” o arrebatador clima feérico que é o ingrediente principal no processo de sedução do gênero “fantasia”, depois – é claro – dos poderosos arquétipos das fábulas chamadas ingenuamente de “infantis”. Afinal, só mesmo o cinema para imaginar uma pulga gigante de estimação que morre nos braços de um rei.
Conheça abaixo um pouco mais sobre o trabalho do diretor de arte Dante Ferretti – um dos mais importantes do cinema atual e criador da concepção visual de “Cinderela” (2015), de Kenneth Branagh – através do documentário “Dante Ferretti: scenografo italiano” (Reprodução)
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