* Por Vítor Antunes
Uma das maiores frustrações de José de Alencar (1829-1877) era nunca ter virado ópera ou receber o devido reconhecimento popular por uma de suas mais importantes obras, “Iracema”. Iracema só ganharia contornos populares em 2017, quando a Beija Flor de Nilópolis transformou a beleza do livro numa exuberância em desfile de carnaval. Algo semelhante aconteceu com Dona Vitória, ou melhor, com Dona Joana Zeferino da Paz (1925-2023). Falecida em 2023, quando finalmente pôde deixar de usar a alcunha que a fez famosa no início da década por haver ajudado a desbaratar o crime organizado em Copacabana. Dona Vitória/Joana será interpretada por Fernanda Montenegro no filme “Vitória”, livremente inspirado na vida da idosa que por dois anos filmou da sua janela a consolidação do tráfico de drogas na Ladeira dos Tabajaras, via de acesso à comunidade existente no bairro.
Após entrar para o Programa de Proteção à Testemunha e transitar por diversas cidades brasileiras, Vitória/Joana só tinha um desejo, segundo o jornalista Fábio Gusmão, que lhe tornou conhecida a história: “Ter o reconhecimento público”. Vitória/Joana não viveu a tempo de ver Fernanda Montenegro, única atriz brasileira indicada ao Oscar, voltar a atuar no cinema com protagonismo, sendo o principal nome de “Vitória“, longa de Andrucha Waddington e Breno Silveira (1964-2022).
COMPASSO DE VITÓRIA
Toda vida, quando olhada por olhos sublimes, pode ser transformada em filme. No caso de Dona Vitória/Joana, não era preciso sequer uma ótica profundamente sensível. Nascida no Alagoas, ela foi violentada pelo filho de um fazendeiro da cidade onde nasceu e dele engravidou Com sacrifício, transitou por algumas outras cidades nordestinas até chegar no Rio de Janeiro. Aqui, juntou dinheiro e conseguiu financiar um apartamento em Copacabana, em 1967. Local onde morou por 38 anos e viu crescer a desigualdade social e o tráfico de drogas. O movimento da biqueira acontecia diante dos seus olhos. E a cada vez se avolumava. Foi quando resolveu comprar uma câmera filmadora – parcelada em 12 vezes numa loja de departamentos – e se pôs a filmar, escondida, tudo o que via. E não só a filmar, mas a indignar-se:
Olha aí o futuro do Brasil. Não é possível, minha gente, essas crianças cheirando pó e ninguém fazer nada! Não vou dizer que não tenho medo delas, mas deixar de filmar esses bandidos, isso não vou mesmo! Estão enganados, estão enganados… – Dona Vitória/Joana
Em março de 2004, há 20 anos portanto, o repórter Fábio Gusmão teve acesso a esse material. Gravado por dois anos, eram 22 fitas que, somadas, chegavam a 33 horas de gravações. Na impossibilidade de chamá-la pelo nome real, o ex-editor executivo do Jornal Extra, Octavio Guedes batizou a com o nome que a fez famosa. Entre março e a publicação da reportagem 18 meses se passaram. A Polícia aconselhou Dona Vitória a mudar de endereço para a garantia de sua segurança. A história de Dona Vitória ganhou o mundo. “Aquele era o mais impressionante relato em vídeo feito sobre a rotina do tráfico e o impacto disso na vida de uma pessoa que não aceitou ficar calada”, disse Fábio Gusmão em O Globo. A filmagem foi o último ato desesperado de Vitória/Joana. Anteriormente a isso ela já havia processado o Estado, cobrando indenização pela desvalorização de seu imóvel.
Dirigido por Andrucha Waddington e Breno Silveira (1964-2022), com roteiro de Paula Fiúza, o longa “Vitória” é o primeiro filme Original Globoplay. E uma estreia luxuosa, com Fernanda Montenegro dando vida à personagem principal. O filme tem estreia prevista nos cinemas para 15 de agosto.
A FORÇA DAS COISAS
“A impressão que tenho é a de não ter envelhecido, ainda que eu esteja instalada na velhice”. Tanto a frase acima quanto a que nomeia este trecho da matéria – “A força das coisas” – são de Simone de Beauvoir (1908-1986). Fernanda Montenegro apresentará a leitura dramática extraída da obra “A Cerimônia do Adeus“, de Simone de Beauvoir, autora fundamental do feminismo contemporâneo. O Teatro Prio, na Gávea, em comemoração ao Mês da Mulher, apresentará, entre os dias 8 e 31 de Março uma programação voltada a elas. E entre as atrações também estará Fernanda Montenegro, fazendo uma leitura dramática de trechos do livro “A Cerimônia do Adeus”, da pensadora francesa. A adaptação, direção, pesquisa e seleção musical, são da própria Fernanda, que é, importante ressaltar, imortal da Academia Brasileira de Letras.
No livro, Beauvoir toma por base o próprio diário e sua vivência com seu marido, o filósofo Jean-Paul Sartre (1905-1980) para abordar, reflexões acerca da velhice e da morte, algo que a imortal Fernanda também o fará, nesta obra poderosa, estruturada por Simone de Beauvoir para falar do feminismo. “A Cerimônia do Adeus” já inspirou outra obra, homônima, escrita por Mauro Rasi (1949-2003) que, recentemente, foi encenada no Teatro Copacabana e dirigida por Beth Goulart. Esse encontro de Fernanda e Simone não é exatamente novo, já que há alguns anos a atriz faz a leitura de “Viver sem Tempos Mortos”, baseado em cartas da filósofa.
Antes disso, em 1977, em entrevista à Manchete, Fernanda foi perguntada pela jornalista – e feminista Heloneida Studart – sobre como conciliou a vida de grande atriz com a de dona de casa, e ela diz “Não conciliei. Fui fazendo. Fui no desmancha aqui, recomeça ali”. Mas a frase definitiva de Fernanda, e que poderia encerrar esta matéria, é aquela na qual compara o fazer teatral às mulheres: “Teatro é um espaço perfeito para as mulheres: Sempre marginalizado e posto em questão, ele é como nós. E sempre estão questionando o nosso papel. Não é mesmo?” Teria essa pergunta envelhecido quarenta e tantos anos depois? E, com a ousadia dos deuses equivalentes, Fernanda questiona a assertiva de Beauvoir quando diz que a maternidade não faz parte da essência feminina. “Discordo. Pois faz. (…) Simone não sabe, porque não experimentou”. Fernanda e Simone têm a força mais atávica das coisas de serem seres: Têm a força de serem mulheres.
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